Convidados – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Sat, 26 Mar 2022 14:46:44 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.1 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Convidados – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 Recensão: Música Negra, de Leroi Jones, por João Morales https://branmorrighan.com/2022/03/recensao-musica-negra-de-leroi-jones-por-joao-morales.html https://branmorrighan.com/2022/03/recensao-musica-negra-de-leroi-jones-por-joao-morales.html#respond Thu, 24 Mar 2022 14:10:52 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25244
Música Negra, de Leroi Jones (Amiri Baraka; trad. de João Berhan; ilustr. de Francisco Vidal)

Sons que fotografaram almas

Os escritos de LeRoi Jones são proféticos e perspicazes. A forma como nos fala no nascimento do Free Jazz, que acompanhou em tempo real, é também uma abordagem sagaz ao papel da música como real forma de expressão colectiva.

João Morales

A páginas tantas, lemos: “Pharoah e Coltrane são farinha do mesmo saco, um saco onde vão cabendo cada vez mais músicos, mais do que Trane alguma vez poderia ter imaginado. Sanders está a ficar cada vez melhor, ainda vamos ouvir falar dele” e percebemos um dos pontos mais interessantes deste livro, primeira tradução para português, pela mão da editora Orfeu Negro (traduzido por João Berhan). Música Negra, de Leroi Jones (que assumiria mais tarde o nome de Amiri Baraka) é composto por diversos textos nascidos em pleno período criativo do mais disruptivo jazz que pautou a década de 60, a génese do Free Jazz, da integração da música como expressão de uma forma de estar, de um tempo e de uma condição, mais evidente na cor da pele, muito mais profunda do que isso. 

“Acho que foi Martin Williams o primeiro a dar-lhe esse nome, quando estávamos no Five Spot a curtir a primeira aparição de Ornette Coleman”, recorda Jones (1934-2014), teórico, crítico musical, poeta, declamador, activista, ensaísta, figura de proa da New Thing, a Nova Cena, designação a que se refere.

O fascínio destes textos, autêntico mergulho na História, reside na sua simplicidade. Escritos no “olho do furacão”, ou seja, no centro das movimentações artísticas da década de 60 que consolidaram o Jazz como uma música devedora de tensões e ambições, acabam por enformar também a relação entre a negritude e o país das oportunidades: «Uma das coisas mais desconcertantes acerca da América é o facto de, apesar do seu perfil essencialmente desprezível, continuar a conter tanta beleza. Talvez seja como muitos pensadores disseram: que é graças ao seu carácter desprezível, ou chamemos-lhe adverso, que tamanha beleza existe. (Para equilibrar?)», assim começa um escrito de 1964, que encerra com uma esclarecedora provocação: «E se tivermos Sonny [Rollins], Trane e Ornette Coleman a tocar ao mesmo tempo, podem parar de me dizer que Paris é que está na moda».

Para Jones, a música que está a nascer é um manifesto resultado das contingências sociais e de toda uma conjuntura sociológica, económica, política, que deixará marcas e imporá mudanças. «Tento explicar a «vanguarda»: homens para quem a história existe para ser utilizada nas suas vidas, na sua arte, para fazer algo para si próprios e não como lembrança avassaladora das pessoas e das ideias que viveram, antes deles”.

O devir do Jazz é apresentado como uma tradução do próprio devir histórico, indissociável das transformações da sociedade. A música nunca é apenas arte, mas antes uma emanação da sociedade em que nasce, causa e consequência. “A primeira música que os negros fizeram neste país tinha de ser africana; a sua subsequente transmutação para aquilo que conhecemos como Blues e o desenvolvimento paralelo do Jazz demonstraram a espantosa flexibilidade do seu carácter inicial (…) O blues foi a música afro-americana inicial; o bebop uma nova ênfase na tradição não-ocidental. E se o último nos salvou dos resquícios insípidos do Swing, a nova vanguarda – e John Coltrane – sozinhos, salvam-nos agora de uns anos 50 comparativamente enfadonhos”.

Através de vários destes textos, autêntica arqueologia da crítica musical, podemos encontrar algumas pistas para uma análise mais detalhada, aprofundada, de toda a questão que rodeia a improvisação no jazz, como numa análise extraordinária a um álbum mais ou menos obscuro de Gil Evans e a sua orquestra, Into the Hot, disco de 1962 que integra no seu alinhamento algumas composições de um seminal Cecil Taylor: “O Cecil é um solista fantástico, mas as suas composições demonstram até que ponto a sua música poderá ser preservada enquanto música anotada. Parece estar muito mais consciente da possibilidade de esta ser tocada por outros além de Coleman”. 

Sun Ra, Albert Ayler, Arche Shepp, John Tchicai, Burton Greene, a editora ESP, os lofts onde ocorrem improvisações informais, são outras referências que habitam estes textos. E há ainda outros dois motivos de forte interesse, que engrandecem de modo indiscutível esta edição.

O prefácio de Kalaf Epalanga (mais conhecido pela sua prestação nos Buraka Som Sistema) bem informado e contagiante, é uma óptima porta de entrada para o que se segue, não escondendo a devoção, revelando a importância do Jazz na formação do músico (e até encontramos uma alusão certeira ao mundo dos melómanos e das lojas de discos usados). Começa logo por evocar a noite de 1 de Agosto de 2201, quando Amiri Baraka se apresentou no Jazz em Agosto, da Fundação Calouste Gulbenkian, adequadamente acompanhado pelo New York Art Quartet (John Tchicai, no saxofone, Roswell Rudd, no trombone, Reggie Workman, contrabaixo, e Milford Gravres, bateria).

Acrescenta como vê este livro, “um guia de como ouvir e entender este género musical tão complexo como a própria ideia da América, um movimento cultural que atravessou gerações, continentes, e que foi o protótipo para o rock & rol e o hip-hop”. Kalaf realça o carácter eminentemente político – no sentido lato do termo – que a visão transversal destes textos acarreta, citando Jones: “Já o músico negro, ele pega no seu instrumento e começa a tocar sons em que nunca ante havia pensado. Improvisa, cria, vem-lhe de dentro. É a sua alma, é a tal música soul… Logo, ele também consegue fazer o mesmo se lhe derem independência intelectual… Pode inventar uma sociedade, um sistema social, um sistema económico, um sistema político que seja diferente de tudo o que existe neste planeta. Vai improvisar, fazer nascê-lo de dentro de si. E é isto que todos queremos”.

A complementar tudo isto, é mais que justo referir as ilustrações de Francisco Vidal, sóbrias e estilizadas, adequam-se perfeitamente criando momentos de respiração, integrando-se na leitura de forma competente e personalizada. 

Em suma: um livro importante pela informação que nos traz sobre a fase inicial de um dos momentos em que o Jazz assumiu uma maior rotura, regressando, em certa medida, a uma raiz anterior, corporizando na música emergente toda a necessidade de consciência social, o que se viria a repetir em outras épocas. Mas também, um livro importante para descobrirmos um teórico e crítico musical atento e visionário, que teve a oportunidade de acompanhar alguns dos maiores nomes do Jazz no momento da sua ascensão inicial. E fixar esse momento. 

Música Negra
Leroi Jones (Amiri Baraka; trad. de João Berhan; ilustr. de Francisco Vidal). 
Orfeu Negro
296 págs

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Recensão: Em Todos os Sentidos, de Lídia Jorge, por João Morales https://branmorrighan.com/2021/02/recensao-em-todos-os-sentidos-de-lidia-jorge-por-joao-morales.html https://branmorrighan.com/2021/02/recensao-em-todos-os-sentidos-de-lidia-jorge-por-joao-morales.html#comments Tue, 02 Feb 2021 09:06:02 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24987
Em Todos os Sentidos

Em Todos os Sentidos
Lídia Jorge

Dom Quixote; 261 págs; 14,90 €

Partilhar memórias e pensamentos

A páginas tantas, lemos: «Mas o que sei é que se tem de encontrar uma palavra diferente para compaixão e solidariedade, palavras que supõem de um lado um sujeito salvo e, do outro, um sujeito para salvar. E não é mais assim. A cada dia que passa, o que acontece lá é como se acontecesse aqui, o que acontece aos outros é o mesmo que pode acontecer na nossa rua. A Terra é um só espaço, e todos os países estão unidos pelo mesmo traço de convivência necessária».

Em certa medida, palavras que remetem para o sentimento dominante nestas crónicas de Lídia Jorge, reunidas sob a designação Em Todos os Sentidos (edição da Dom Quixote), título suficientemente malicioso para remeter o leitor a uma múltipla interpretação que alguns dos relatos poderão conter, não se fechando na narrativa por si só, mas igualmente para as portas de entrada no universo que é cada ser humano, os canais de ligação ao mundo real, os nossos cinco polos de recepção sensorial, afinal, a ponte primeira com a realidade que nos circunda.

O título do livro nasce do espaço radiofónico homónimo que o antecedeu, juntando assim quarenta e uma crónicas lidas pela escritora Lídia ao longo de 2019, aos microfones da Antena 2.

Lídia Jorge não se coíbe de traçar algumas críticas, como a denúncia de um egocentrismo contemporâneo, exacerbado por uma utilização doentia e exaustiva das redes sociais; centrando na primeira pessoa o interesse, o valor e a bitola de comparação do próprio. O texto intitula-se “O Tubarão”: «As pessoas viram-se de costas para os quadros, põem-se a jeito, e tiram uma selfie que enviam para os amigos e para a nuvem. Não dizem, eu vi a Mona Lisa, dizem, eu até passei diante da Mona Lisa, e esta é a prova de que estive no Louvre».

Seja como for, tanto nos elogios como nas anotações menos abonatórias, este é um livro que assume a sua dimensão humanista, no sentido em que nos evoca o preceito clássico, tomando o Homem como a medida de todas abordagens, de todas as coisas. E este raciocínio, ao longo dos tempos, derivou em diversas metáforas subsequentes. Se Terêncio afirmava como “nada do que é humano me é estranho”, Jorge Luis Borges discorria como cada homem é todos os homens. Lídia metaforiza com a natureza, escrevendo como faz corresponder «todas as águas, uma só água, milhares de fontes de vida, só uma fonte de vida».

O contundente texto “Black Friday” marca fundo as contrariedades da nossa contemporaneidade, rendidos às opções tecnológicas, ao facilitismo de uma modernidade selectiva que oculta os sacrificados para a manutenção desse patamar de suposta qualidade de vida para uns, em troca da vida e da dignidade de outros. Partindo do dia em que o Ocidente celebra as compras compulsivas nas grandes cadeias comerciais, acaba por nos confrontar com o obscuro montante desses holofotes, «como no interior do Congo onde milhares de crianças aprisionadas, neste momento, estão a escavar rocha com as mãos nuas nas minas de cobalto para que tenhamos o Samsung barato».

A linguagem utilizada é rica e apoia-se na crueza das opiniões traçadas, mas igualmente recorre a uma sapiente galeria de imagens poéticas, cuja clareza também não é deixada ao acaso. São construções buriladas com perícia, criando imagens fortes numa formulação construída a partir de elementos simples e reconhecíveis.

Discorrendo sobre a brutalidade da Natureza, anterior ao nascimento, posterior à morte, de cada protagonista humano desta longa epopeia que é a Vida, no seu sentido mais amplo, reflete: «Mas a Liberdade é uma jovem grávida que caminha às costas de uma velha cínica, e custa a dar à luz. Refiro-me às dores da libertação, que nunca são amenas». A citação é retirada da crónica “A Cidade Traída”, a que pertence igualmente a primeira transcrição deste texto.

A escrita da autora serve-se de uma clareza que lhe permite uma leitura fácil, embora não se deva considerar por isso que o entendimento dos objectivos, das motivações, dos significados implícitos esteja facilitado. Escriba experiente e atenta a diferentes enfoques sobre uma mesma realidade, universal, transversal e resultante de diferentes vasos comunicantes, aproveita a sua crónica “Geografia partilhada” para desmistificar olhares ingénuos, acerca das virtualidades que a escrita, e a leitura, possibilitam e recompensam:

«Digam agora que a ficção não serve para nada. Proclamem melancolicamente que o romance é um objecto de museu, que a sua função terminou, que desse género já não sai coisa que valha a pena. Eu não concordo. Acho precisamente o contrário. Não só o romance espelha realidades que andam escondidas e que de outro modo permanecem invisíveis, como ainda por cima fornece ideias úteis que depois vêm a ser postas em prática. Outras vezes, o que acontece na realidade não teria interpretação possível se antes a ficção não o tivesse imaginado, ou, posteriormente, não viesse a esclarecer», sintetiza a autora, na crónica “Geografia partilhada”.

Em suma, neste conjunto de textos, quando acompanhamos as reflexões da autora, estamos também perante um evidente exemplo de como a arte de contar histórias desenvolvida ao longo de anos e com muitas provas dadas, acaba agora por fornecer o chão onde se plantam estas crónicas, também elas pequenos episódios narrativos, artilhados com camadas de entendimento à medida de cada um e um ritmo contagiante que nos convida a ler até ao fim. 

João Morales

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Sugestões de livros internacionais para o confinamento, pela Carina Pereira https://branmorrighan.com/2021/01/sugestoes-de-livros-internacionais-para-o-confinamento-pela-carina-pereira.html https://branmorrighan.com/2021/01/sugestoes-de-livros-internacionais-para-o-confinamento-pela-carina-pereira.html#respond Thu, 28 Jan 2021 17:06:57 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24961
Carina Pereira

Sugestões de livros internacionais para o confinamento, pela Carina Pereira

Quando a Sofia me desafiou a escrever uma lista de recomendação de leituras internacionais, duas coisas aconteceram: primeiro, esqueci todos e quaisquer livros que tinha lido até ao momento; segundo, quando me voltei a lembrar dos livros, descobri logo que a lista ia acabar com cem títulos, a não ser que a Sofia me colocasse um número máximo.

Dez livros, foi o que ela me pediu e, depois de alguns dias a reescrever a lista, espero ter conseguido encontrar algum equilibro naquele que é o meu objectivo ao partilhar estas leituras: que sejam diversas e inclusivas, que nos transportem para outros lugares, enquanto nos ensinam algo novo. Que nos expandam os horizontes e que consigamos, através delas, alcançar o outro, entendê-lo e ganhar empatia por ele. Enfim, que estas leituras sejam um abrir de olhos para o que ainda é preciso fazer no mundo para que tenhamos todos oportunidades iguais, uma motivação para ter um papel activo na criação de uma sociedade igualitária e justa. 

Espero que encontrem aqui leituras que vos entretenham, mas sobretudo, que vos transformem, mesmo sem vocês darem conta. 

Ficção:
Afterlife
The Death Of Vivek Oji
Cantoras
The House In The Cerulean Sea
The Vanishing Half 

Não ficção:
Disability Visibility
The Turnaway Study
So You want To Talk About Race
Know My Name
Braiding Sweetgrass

PS (da Sofia): A Carina Pereira é uma leitora portuguesa que vive no estrangeiro, escreve para o Book Riot e ainda tem um projecto que admiro muito A Story of Sorts. Começou por ser um podcast e agora estende-se também para uma zine online. Conheci-a por causa do BranMorrighan, mas tenho aprendido muito com ela e todas as discussões sobre leituras são sempre mais do que interessantes. Dada a diversidade da sua leitura, achei que era o momento ideal para a convidar a sugerir alguns livros. Qualquer um dos títulos pode ser comprado na Amazon (link afiliado) ou noutras lojas online como a Better World Books.

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Sala com vista, de Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2021/01/sala-com-vista-de-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2021/01/sala-com-vista-de-helena-ales-pereira.html#respond Tue, 26 Jan 2021 19:33:48 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24949
Sala com vista

Casa com vista

A janela da sala dava para a avenida mais movimentada da cidade. Um corrupio de pessoas, carros, motos, autocarros, camiões do lixo e vozes. As das pessoas, de dia, e as dos cães que rompiam de dia ou de noite, independentemente da hora, porque aos cãos tanto se lhes dá se tiveram de dar sinal de alguma coisa que os ameace ou perturbe.

Do outro lado da rua, a casa. Um prédio de três andares, quase sempre em silêncio. Varandas compostas com móveis modernos e uma absoluta quietude, excepto num andar, o último. Ali via o casal que, algumas vezes, assomava àquela varanda e se deixava ver, mais junto ou mais afastado, a dois ou um de cada vez. Ficava a olhá-los e a imaginar as conversas que teriam naqueles momentos fugazes que o ocaso poderia trazer, naquela hora e naquela luz que dá para as pessoas fazerem divagações sobre as suas vidas, sobre as suas próprias decisões, motivadas pelo momento contemplativo.

Estariam juntos há muitos anos, porque aquela hora do dia, que inspira abraços e promessas, raras vezes os aproximava de uma forma íntima e mesmo quando isso acontecia, havia naquele par um cansaço, uma normalidade que enche a vida que se partilha há muito. Imaginava as conversas sobre os filhos – se os havia, porque nunca os tinha visto naquela varanda –, o dia-a-dia do trabalho, da casa, dos conhecidos, da família, da rua, talvez de um livro que se andasse a ler ou de um filme que se teria visto na noite anterior ou se agendava para ver já há algum tempo.

A visão do casal, e da sua rotina, trazia, naqueles dias em que sentia mais a sua própria vida, uma inveja por não partilhar o mesmo com alguém, uma solidão que se colava mais à pele quando se toma consciência que independência pode também significar o estar-se só. Nos dias que ventava mais ou o sol se deixava esconder pelas nuvens mais escuras dos dias invernosos, o casal raramente assomava à janela e isso causava-lhe mais inveja do que o normal.

Imaginava-os a partilhar um sofá, uma manta a cobrir as pernas; ele talvez a ler um jornal ou um livro, ela dedicada a um livro ou a uma daquelas actividades caseiras que algumas mulheres gostam de experimentar, como fazer malha. O ruído de uma casa habitada por um casal tornaria o seu próprio silêncio ainda mais ensurdecedor, aquele movimento constante só lhe daria para notar como a sua própria casa era tão quieta.

Em casa, olharia para o seu computador e encheria a cabeça com as imagens de uma série ou de palavras de algum artigo que estivesse a ler na Internet, uma distração que fizesse esquecer a sua própria existência, mais vazia, sem histórias a dois num final de dia numa varanda com vista para a rua. Lá fora, a avenida continuaria a sua vida de sempre, enchendo-se de ruídos e de vozes, até que o sol levasse tudo com ele. 

Helena Ales Pereira

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Passar a montanha, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2021/01/passar-a-montanha-por-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2021/01/passar-a-montanha-por-helena-ales-pereira.html#comments Mon, 11 Jan 2021 21:04:19 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24889
Ilha de Santo Antão

Texto e fotografias por Helena Ales Pereira

Passar a montanha

Os passos ressoam na pedra, na terra, nas folhas caídas das árvores. Os pés, incansáveis, que sobem e descem a montanha, os braços e as cabeças carregando banana, cana, batata, estrume. A fruta esquecida no chão, alimentando os animais da noite, como pequenos ratos que confundem veneno com amêndoa e acabam mortos na beira de um caminho, ou ainda meio grogues na boca de um cão que brincará com esse ser quase inanimado até ele definhar de vez.

A gente que sobe e desce a montanha, porque é assim que se vive em Santo Antão, as mentes e as almas carregando ausências, saudades, mortes demasiado precoces, uma gravidez não planeada, um nascimento há muito desejado, os sonhos de uma criança, as recordações de um velho. 

O vento ecoa nos ouvidos desprotegidos do frio da manhã e faz-se ouvir nas folhas das bananeiras, nas espigas do milho, nos troncos despojados das papaeiras, estes restos de vida mortos de pé, numa terra onde os homens morrem de todas as maneiras, não raras vezes de suicídio. A mente quer divagar mas encontra limites nas paredes duras da montanha e nem mesmo a riqueza deste verde, albergue de tantas plantas, é suficiente para apaziguar as angústias que consomem a alma por dentro, com a mesma rapidez com que o vento e o sol curtem a pele, secando-a para uma idade não condizente com a marcada num pedaço de papel de um registo.

Os nomes que se perdem na memória, as histórias reais de descendências perdidas no tempo de outros tempos misturadas com as histórias irreais da ilha, os seres do sobrenatural que acompanham os passos das gentes na noite. O agitar das folhas da cana que parece transformar-se nas passadas ligeiras de alguém a sussurrar nos ouvidos de um distraído, um tronco velho e seco que range como uma porta velha numa casa esquecida na encosta da montanha, vazia de alegria e tristeza.

As folhas largas de bananeira que se agitam na noite são vozes de pessoas que chamam a gente da montanha para a escuridão das lendas. E é preciso ter na ponta da língua o saber para lidar com estes seres que, não bastando esconderem-se na montanha, procuram também refúgio dentro das casas, debaixo das camas. Vozes mais velhas confessam que não conhecem tais lendas, mas é o medo de as evocar, e com isso despertá-las, que as fazem negar tais mitos cabo-verdianos e não o privilégio de terem crescido na ignorância.

Ilha de Santo Antão

Bale a cabra, muge a vaca, ronca o porco, ladra o cão, canta o grilo, bebe o homem. O grogue escorre pela garganta e aquece o vazio que se cola por dentro da pele, amolecendo as carnes, enrijecendo a alma. O álcool serve as festas e serve o luto. É companheiro de batizados e casamentos, das conversas que se arrastam do sol para a lua, dos quartos vazios, das mesas de um único prato.

A calda que se espreme da cana mistura-se com laranja ou limão, o ligeiramente ácido para cortar todo aquele açúcar que se prefere deixar repousar, levar ao alambique e transformar em grogue, porque o açúcar que adoça a vida parece uma toalha que cobre a madeira estragada de uma mesa: disfarça, mas não consegue mentir quando destapada.

Os carros torneiam a montanha num vai e vem. A fuga diante dos olhos, numa volta à ilha sem fim, na beira de estrada junto ao mar que parece prolongar a sensação infinita e irónica desta imensidão, encurralada pela água que a cerca. A liberdade tem apenas o espaço de um quarto fechado, limitada por aquilo que nos dá a sensação de infinito: o mar. Liberdade e prisão numa imensidão incapaz de caber em todos os olhos da ilha.

Os risos, os choros, as mulheres, os homens, as crianças, os animais, as casas outrora cheias, agora cheias de nada, abertas apenas para dias de festa em férias gozadas por quem conseguiu perceber a prisão que a montanha negoceia com o mar, sempre que alguém nasce. Inventa uma lenda para que não se arrisquem muito na montanha; inventa outra para que não se arrisquem demasiado no mar que bate, imenso, contra a rocha, transformando-a numa bátega de areia negra, a cor dos homens e a cor da alma.

Alguns dias por ano, as casas renascem, as mesas enchem-se de comida, e os quartos, de corpos habituados a outros confortos. Nesses breves instantes, Santo Antão volta ao passado das famílias grandes e das casas que descansarão sozinhas quando o vento voltar a soprar mais frio. A luz apaga-se. E a montanha assiste a tudo, dominante.

Ilha de Santo Antão
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Recensão: Fernando Tordo: Não Houve Geração mais Rica que a Nossa, por João Morales https://branmorrighan.com/2020/01/recensao-fernando-tordo-nao-houve.html https://branmorrighan.com/2020/01/recensao-fernando-tordo-nao-houve.html#respond Mon, 13 Jan 2020 14:54:00 +0000
Fernando Tordo

Fernando Tordo: Não Houve Geração mais Rica que a Nossa
Diálogo com José Jorge Letria

Guerra & Paz
176 págs
13,99 euros

Há algum tempo que José Jorge Letria vem mantendo esta colecção, tirando partido do seu conhecimento antigo das várias das personalidades envolvidas, do seu passado de jornalista e da proximidade que partilha com os seus entrevistados, quer no campo profissional, quer em diversos encontros ao longo da vida, mais que naturais em quem sempre esteve ligado a actividades que, de uma forma ou de outra, acabam por se relacionar com a Cultura em diversas áreas e de diferentes formas.

Posto isto, é necessário deixar claro que este não será um dos livros mais conseguidos dessa colecção, uma vez que Letria poderia ter ido muito mais longe nas revelações (factos ou reflexeões) que, pelo atrás descrito, qualquer leitor espera encontrar num volume com estas características. Mais que traçar o percurso de Fernando Tordo (o que seria difícil num livro desta dimensão, compreende-se) ou fixar as suas ideias, o livro prende-se a meia dúzia de momentos do percurso do cantor e compositor, na sua maioria já do domínio público.

Não se julgue, contudo, que é tempo perdido ler este livro. Nada disso. A tal cumplicidade acaba por dar frutos na forma simples, mas directa, como ambos se referem a alguns pontos e Tordo deixa-nos alguns momentos emotivos na sua conversa com Letria.

«O meu pai era um homem que veio para Lisboa pobre, fazia recados ao Eng. Duarte Pacheco e ficava a trabalhar porque era trabalhador a tempo inteiro, não tinha outra hipótese de sobrevivência senão isto (….) Seria um descaramento da minha parte ir pedir ao meu pai que me comprasse uma guitarra Fender que custava os olhos da cara. Nem uma guitarra Fender nem coisa nenhuma. Era roubar, eventualmente, da mesa-de-cabeceira do meu pai, uma ou duas moedas de vinte e cinco tostões, ir a correr à Avenida João XXI, ao professor Duarte Costa e alugar uma viola».

Tocar em Albufeira para Tom Jones ou para os músicos dos Shadows, estávamos então no Verão de 1967, era uma alegria, uma honra e uma oportunidade para qualquer jovem músico, como se percebe da narrativa de Tordo, quando evoca esses dias em que ele e o grupo trocaram a segurança de um contrato chorudo para actuações diárias pelo calor que o Algarve sempre parecer ter tido.

Claro que um dos pontos mais intensos da sua carreira, da sua criatividade, da sua vida, é o encontro e cumplicidade com José Carlos Ary dos Santos. E esse é também um dos eixos do livro, aqui sim, explorando uma pespectiva mais pessoal, concedendo uma mais-valia ao leitor. «Eu sabia que o José Carlos Ary dos Santos era homossexual e, ao nível da opinião pública, fui tocado por tabela porque se trabalhava com ele todos os dias é porque também era homossexual. Não sou. E se fosse?».

A relação entre o álcool e a criação artística da dupla é abordada de forma descomplexada e aberta, mas, mais do que isso, as diferentes opções de cada um dos artistas – Tordo entende que a bebida iria ficar pelo caminho; José Carlos Ary dos Santos, como é público, leva-a de braço dado até às últimas consequências. E o cantor de “Tourada” não esconde que isso contribuiu em grande medida para a cisão, incorporada, de alguma forma, na última canção que fizeram em conjunto.

«Um gin tónico para ele, para mim zero. Isto foi tenso. Hoje, ao fim de uns anos de trabalho, pensar nisso é difícil. Há uma coisa que terminou ali. A gente tinha de fazer uma cantiga para terminar a peça. Mas não era só para terminar a peça, era para terminar uma parceria com imensa história», recorda Fernando Tordo. O simbólico título dessa canção era “O amigo que eu canto”…

João Morales

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Recensão: As Estações da Vida, de Agustina Bessa-Luís https://branmorrighan.com/2019/02/recensao-as-estacoes-da-vida-de.html https://branmorrighan.com/2019/02/recensao-as-estacoes-da-vida-de.html#respond Wed, 13 Feb 2019 10:50:00 +0000
As Estações da Vida

As Estações da Vida
Agustina Bessa-Luís

Relógio D’ Água
46 págs
14 euros

por João Morales

O alerta vem logo no prefácio de António Barreto porque “na verdade, Agustina não se perdeu de amores pelos azulejos, de que nunca diz mal, com certeza, mas o interesse dela vai directamente para as pessoas ali retratadas, trabalhadores e moçoilas, pescadores e ceifeiras. E mesmo essas imagens não são mais do que motivo para falar das pessoas reais, de quem ela sempre se ocupou com pormenor e finura. Das pessoas que povoavam as carruagens dos comboios que ela frequentava, mas que eram o transporte de todos”. Um prefácio intitulado “Agustina: Deus e Diabo”.

Escrito em 2002, este é um livro bastante peculiar, cruzando influências que resultam numa leitura abrangente e perspicaz, derivada dos interesses por diferentes disciplinas, ainda que não sentido específico e académico com que elas, vulgarmente, são encaradas. Bebendo na Antropologia, na História (dos acontecimentos e datas, mas igualmente das Ideias, da Arte), na Psicologia, Agustina Bessa-Luís consegue, num livro de dimensões reduzidas, produzir um objecto tão luminoso e cativante, que nos ajuda a fazer equacionar diferentes cambiantes do quotidiano, a pretexto da decoração pictórica das estações de caminho-de-ferro. Além de uma deambulação sentida pela melancolia, pelo ritmo muito seu, que as próprias viagens de comboio possuem e transmitem: “o comboio é um mundo. O comboio é o mundo”.

A bagagem associada à História da Literatura marca a sua presença, evocando, através da nomeação de uma paisagem clássica, um sentimento patente na escrita, no sentimento colectivo, de um conjunto de autores e temáticas que acabam por estar associados à alma de um povo e à sua concretização em tramas e personagens não apenas carismáticos, mas responsáveis por uma reconhecida densidade, imanente de uma geografia comum: “a ideia que eu tenho da Rússia é uma paisagem de neve onde passa um comboio. A neve cai e o fumo do comboio estende-se sobre o tejadilho e tudo tem um ar de tristeza pura e que conduz a alma para regiões que só a ela pertencem”.

Agustina, experimentada ficcionista e ensaísta, é observadora e perspicaz, sempre lhe foi apontada a acuidade com que traça as figuras protagonistas dos seus romances, plasmando heranças de outras artes e ciências, no fundo, a forma como a organização e vivência da Humanidade se alimentam dos seus ritos, tradições, iconografia em geral. Veja-se a relevância do culto aos mortos em regiões distintas do globo, e como a escritora tem plena consciência disso ao escrever que “os cemitérios portugueses merecem uma meditação escrita. Estão feitos à medida da gente que os habita, que são tanto os mortos como os vivos. Tudo são alusões ao que se passou no mundo, uma festa consoladora das suas tribulações”.

Parte-se dos azulejos que abrilhantam as estações e rapidamente espreitamos a alma dos passageiros, a lente foi sendo aplicada, se a ampliação da observação permite alargar o quadro de acção e sublinhar a evidência de pormenores, o foco intensificado num ponto quase deixa radiografá-lo, conhecer-lhe o âmago. “O microscópio aumenta o universo, o telescópio empequenece-o”, escreveu G. K. Chesterton (citado há poucas semanas por Fernando Sobral, na sua última crónica O Pulo do Gato).

A caracterização dos passageiros, agrupando-os na casta adequada, faz-se pela compartimentação nas três classes que percorrem o comboio, uma divisão, a uma primeira vista, algo evidente, mas cuja agudeza dos pormenores e o colorido da linguagem de Agustina lhe emprestam momentos de um escrutínio quase teatral, enumerando e fazendo corresponder gestos e posturas que dão corpo às personagens necessárias para traçar o retrato de família a que a escritora se predispôs desde o início, ancorada em pressupostos artísticos, mas sempre almejando um porto de abrigo habitado por gente viva, de carne, osso e sangue, como convém para genealogia.

Se, na primeira classe, selecta, onde “ninguém levava farnel”, o pretexto é um livro simbólico e os não menos simbólicos leitores que “levantavam os olhos de vez em quando para gozar as impressões que faziam”, já na segunda classe “faziam-se amizades, trocavam-se merendas, conselhos, as mães diziam coisas dos filhos e como os criavam”. A clarividência da estratificação completa-se com a terceira classe, plena de rebuliço e regozijo vividos em comum, um estado de alma partilhado e facilmente partilhado: “era a festa, diziam-se larachas, derramava-se vinho, ouvia-se o piar dos frangos nas cestas de vime vermelho. Eram os presentes para os padrinhos, para os protectores que livravam da tropa os filhos”.

Agustina escuda-se na arte para falar da vida: “os azulejos contam toda uma poesia que não é épica, é o viver de todos os dias, é um sermão sem sotaina, é um contrato social sem filosofia”. Ocupa diversas páginas enaltecendo estas peças de cerâmicas pensadas a produzidas para embelezar e abrigar os pontos de paragem, de entrada e saída, numa lógica maior e mais intensas que é o caminho-de-ferro, baluarte da modernidade e da conquista da técnica, mantendo um romantismo que outros meios de transporte, posteriores e mais avançados, tiverem de deixar cair.

O simbólico está no centro deste magnífico ensaio, oculto por uma primeira abordagem meramente artística ou estética, disponível para quem se permita mergulhar mais fundo na leitura e na incorporação de um texto inteligente que dissimula a emoção, mas não a renega. Como algumas pessoas que teimam em esconder os sentimentos, como se fosse possível deixar de tê-los.

“Falemos de comboios: as gares são pontos de apoio para a História. Acontecem coisas nas gares que não acontecem na avenida e na rua aberta. Por isso Pombal fez a Lisboa pombalina, para evitar as emboscadas e para não dar ocasião aos motins. Como fez Napoleão em Paris. Mas gares foram depois o que substituiu o beco e a encruzilhada. Mataram Sidónio na gare e, se houvesse uma gare em Roma, César morreria ao tomar o trem para as termas, em vez de ir cair no Senado, comprometendo todos os senadores”

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Another Shitty Day, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2018/02/another-shitty-day-por-helena-ales.html https://branmorrighan.com/2018/02/another-shitty-day-por-helena-ales.html#respond Mon, 12 Feb 2018 12:43:00 +0000 DR

Another shitty day

Está frio quando acordo.
Mais frio do que nos dias anteriores. “Mais um dia de merda”, penso. Olho pela
janela, não vejo um caralho. O nevoeiro abraça as árvores, os prédios, os
carros lá em baixo na rua. O eixo norte-sul, que vejo da janela da sala,
enquanto bebo o café, sempre a abarrotar de trânsito a esta hora da manhã, não
me surge à distância. A neblina transformou tudo numa página em branco.

Ouço a correria dos
miúdos do andar de baixo. Como se não me chegasse a vaca do andar de cima que
insiste em passear pela casa de saltos altos, mesmo de madrugada, quando chega.
“Mas eu venho do trabalho”, respondeu-me incrédula, numa noite que me pareceu
pior do que as outras. “Mas isso não lhe dá o direito de perturbar o sono dos
outros, não é verdade?”, respondi-lhe calmamente quando a única coisa que me
apetecia era esmurrá-la, partir-lhe o nariz, pegar nos sapatos de saltos alto e
esburacar-lhe a cara com eles, espetá-los no nariz, na boca, arrancar-lhe os
olhos, furar-lhe as mamas e enfiá-los nos ouvidos, por onde me entra aquele
maldito som durante a noite.

No emprego, arrasto os
bons dias à medida que arrasto os pés em direção ao meu cubículo, onde mal cabe
uma secretária e uma cadeira, mas onde cabem todas as queixas do mundo,
cuspidas naquele auricular que enfio no ouvido assim que me sento. No corredor
fica a minha paciência a torcer para que eu me mantenha calmo e não mande a
velha que agora se queixa foder-se. E eu ponho a máscara da normalidade e do
cinismo, os dois de mãos dadas dentro do bolso das calças, onde enfio a mão
para não me esquecer de ser o que todos esperam, de responder o que é normal,
ainda que algumas das minhas colegas achem que passo a vida a esfregar o sexo,
quando olho para elas, mas preciso de o fazer para aguentar as descrições
absurdas da vida dos subúrbios, o marido que mija a sanita toda, que insiste em
puxar as orelhas à cama, apesar de ela dizer que os lençóis devem ser sacudidos
e bem esticados. E eu esfrego, esfrego a normalidade e o cinismo dentro do
bolso das calças, enquanto elas olham de lado para mim, com nojo, um ligeiro
esgar nos lábios e vejo o que pensam nos olhos, “este gajo parece doido”.

Ao almoço, as conversas
cruzadas fazem doer-me a pele: a da esquerda que conversa com a direita em
frente na diagonal, a da direita que fala para outra mesa, a boca em frente a
mim que me dirige palavras que não ouço, mas com as quais vou concordando, a
cabeça a abanar que sim, os ouvidos a estourar, as artérias a entupirem-se com
este ruído infernal que me dá vontade de vomitar-lhes em cima.

O regresso à casa fria,
vazia, mas mais quente e cheia do que eu. O frigorífico para onde fico a olhar
longos minutos, que não me responde à pergunta “o que vou comer?”. O frio que
se espalha pela cozinha, a luz amarela que me hipnotiza, o motor que começa a
roncar à medida que a temperatura lá dentro vai subindo. Estendo-me no sofá e
deixo-me guiar pelas cores da televisão que me prometem um mundo cheio de
gargalhadas, acção, aventura, drama, tudo revelado em canais que vou mudando
meio adormecido sem perder mais tempo do que aquele que preciso para perceber
que não vou gastar um minuto a ver aquilo. Acabo por adormecer embrulhado numa
manta velha, esquecida o ano todo no sofá, porque até no verão sinto frio.
Acordo e dou-me conta daquela solidão incontornável: a de acordar a meio da
noite e mudar-me para uma cama vazia, fria. Foi só mais um dia de merda.


Helena Ales Pereira

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