Crónicas – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Wed, 25 May 2022 18:04:14 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.3 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Crónicas – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 Antevisão Jazz em Agosto 2022 – A semana dos nove dias… feita de improviso https://branmorrighan.com/2022/05/antevisao-jazz-em-agosto-2022-a-semana-dos-nove-dias-feita-de-improviso%ef%bf%bc.html https://branmorrighan.com/2022/05/antevisao-jazz-em-agosto-2022-a-semana-dos-nove-dias-feita-de-improviso%ef%bf%bc.html#respond Thu, 19 May 2022 13:01:26 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25276

A geografia da modernidade traçada em nove dias consecutivos. É o Jazz em Agosto 2022, na Fundação Calouste Gulbenkian, com propostas que nos chegam de Chicago, Londres ou Nova Iorque. Ou Lisboa.

João Morales

Está repleto de novidades, o Jazz em Agosto 2022. Vários são os nomes que prometem surpreender e trazer até nós o que de mais determinante se faz no jazz e pelo jazz. Sem interrupções, a ofensiva começa na noite de 30 de Julho, um Sábado, e prossegue durante toda a semana até dia 7 de Agosto, o Domingo da semana seguinte, com o anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian a receber novamente a maioria destes momentos. As escolhas são, como vem sendo hábito, de Rui Neves.

A noite inicial estará a cargo dos Irreversible Entanglements, colectivo criado em 2015, no âmbito das manifestações contra a violência policial nos EUA. São um dos emblemas da editora International Anthem, chancela em destaque na edição deste ano do festival.

Irreversible Entanglements © Bob Sweeney

A poesia de Moor Mother, que também oferece a sua voz, surgirá acompanhada por Keir Neuringer (saxofone alto, sintetizador e percussão), Aquiles Navarro (trompete e sintetizador), Luke Stewart (contrabaixo e sintetizador) e Tcheser Holmes (na bateria e percussão). No dia seguinte, 18h 30m, desta vez no Auditório 2, duas mulheres, a já referida Moor Mother (que, fora do palcos, assina Camae Ayewa), na voz, acompanhada pela flautista Nicollle Mitchell, com a electrónica a cargo de ambas: E às 21h 30m é a vez de Rob Mazurek, com a sua Exploding Star Orchestra (que em 2009 já nos visitou, então com Bill Dixon), um aglomerado sonoro baseado em Chicago, com ramificações pelo pós-Rock e pela experimentação que marcou gerações de músicos nessa cidade (ou não fosse ela a geografia que viu nascer a mítica AACM – Association for The Advancement of Creative Musicians).

Mazurek é secundado por uma respeitável comitiva, constituída por Damon Locks (autor dos textos, responsável pela voz e electrónica), Nicole Mitchell (em diferente flautas), Macie Stewart (no violino), Tomeka Reid (no violoncelo), Pasquale Mirra (vibrafone), Julien Desprez (guitarra Eléctrica, músico que nos visitou em 2017 com a impactante Coax Orchestra), Jaimie Branch (trompete), Angelica Sanchez (no piano e nos teclados), Ingebrigt Håker Flaten (em contrabaixo), Chad Taylor e Mikel Patrick Avery (ambos responsáveis pelas baterias e percussões), e ainda, John Herndon (anunciado como manipulador de uma máquina de ritmos). A ter em conta.

O trompete da referida Jaimie Branch e a bateria de Jason Nazary, acondicionados em manipulações electrónicas mútuas, inauguram o mês de Agosto, pelas 18h 30m, de regresso ao Auditório 2. A noite estará a cargo de Damon Locks Black Monument Ensemble, peculiar agrupamento que conta com a clarinetista Angel Bat Dawid, Dana Hall (bateria), Arif Smith (na percussão) e quatro cantores – Erica Nwachukwu, Monique Golding, Tramaine Parker e Phillip Armstrong. Tudo sob o comando de Damon Locks, que se ocupa dos samples e da eletrónica.

Turquoise Dream © João Miranda

Dia 2 de Agosto, Terça-feira, um guitarrista nascido no Butão cuja música foi fortemente delineada pela descoberta das técnicas e sonoridades de Dereck Bailey, Tashi Dorji, junta-se ao singular quarteto Turquoise Dream, composto pelo carismático violinista Carlos “Zíngaro” Marta Warelis (no piano), Helena Espvall (no violoncelo) e Marcelo dos Reis (em guitarra acústica). Uma conjugação suficientemente original (e bem creditada) para desencadear a curiosidade.

Na Quarta-feira, a noite é dividida entre duas propostas.  Primeiro, o Voltaic Trio (formação constituída por Luís Guerreiro, em trompete e electrónica; Jorge Nuno, na guitarra eléctrica, e João Valinho, que ocupa a bateria). Em seguida, o quarteto Ahmed, onde se encontram o histórico Pat Thomas (piano), Seymour Wright (saxofone alto), Joel Grip (baixo eléctrico) e Antonin Gerbal (na bateria), quarteto londrino que recupera a obra de Ahmed Abdul-Malik.

A noite de Quinta-feira, dia 4 de Agosto, acentua a dialéctica de formatos explorados. Ava Mendoza (ostentando colaborações com nomes como John Zorn, Matana Roberts ou Hamid Drake) e a sua guitarra elétrica ocupam o palco a solo, para, posteriormente, darem o lugar ao João Lencastre’s Communion, com alguns dos nomes mais importantes do novo jazz português. O baterista conta com Albert Cirera (nos saxofones tenor e soprano), Ricardo Toscano (no saxofone alto), o piano de Benny Lackner, duas guitarras eléctricas (André Fernandes e Pedro Branco), um baixo, igualmente eléctrico, dedilhado por João Hasselberg e um contrabaixo (curiosa dualidade, esta), a cargo de Nelson Cascais.

A noite de dia 5 arranca com um interessante e sugestivo dueto – Pedro Carneiro, na marimba e Rodrigo Pinheiro, no piano – alimentando expectativas, perante a conjugação de um ecléctico valor da música erudita e um dos mais celebrados portugueses da moderna improvisação, membro do Red Trio, entre outras prestações. E a proposta que se segue, não é menos curiosa. Sob a liderança do trompetista norte-americano Nate Wooley, Seven Storey Mountain é um colectivo que agrupa Samara Lubelski e C. Spencer Yeh (violino), três bateristas (o surpreendente Chris Corsano, Teun Verbruggen e Ryan Sawyer), as guitarras de Susan Alcorn, Julien Desprez e a já referida Ava Mendoza, com os teclados de Håvard Wiik e Rodrigo Pinheiro e a voz de Megan Schubert. Subindo ainda mais a fasquia, junta-se o Coro da Gulbenkian. A coisa promete…

Sara Schoenbeck e Matt Mitchell © DR

O segundo fim-de-semana começa em dueto, mais uma vez no Auditório 2. A guitarra eléctrica de Bill Orcutt e a bateria de Chris Corsano irão dialogar e surpreender-nos, como o fizeram no disco Made Out of Sound, registo lançado em 2021. Da introspecção à rtebeldia, muito podemos esperar. À noite, já ao ar livre, se o formato assenta num modelo clássico (piano, baixo e bateria), os elementos do Borderlans Trio podem ser acusados de tudo, menos disso mesmo: classicismo. A fantástica Kris Davis, que tem trabalhado com pessoas como John Zorn, Craig Taborn, Michael Formanek, Tony Malaby, Ingrid Laubrock, ou Mary Halvorson, acompanhada por Stephan Crump e Eric McPherson, auguram um serão inventivo e apelativo.

Tudo termina no dia 7 de Agosto, Domingo. Pelas 18h 30m, à semelhança dos restantes concertos de final da tarde, no Auditório 2, a função cumpre-se, mais uma vez, em dueto. Sara Schoenbeck é um dos novos valores do fagote contemporâneo, integrando a Tri-Centric Orchestra, projecto do profícuo Anthony Braxton, mas também com prestações no âmbito do hip-hop, rock, música eletrónica ou até mesmo incursões por abordagens contemporâneas da música clássica indiana. A seu lado estará o pianista Matt Mitchell, cujas influências detectadas por alguns críticos que já escreveram sobre o seu trabalho identificam nomes tão distintos como Keith Jarrett, Herbie Hancock, Bill Evans, Bud Powell, Cecil Taylor ou Don Pullen.

O encerramento desta maratona faz-se com um nome que dispensa apresentações, um autêntico símbolo da modernidade de Nova Iorque – e de como ela se estendeu pelo mundo. John Zorn está de regresso, para nos deliciar com o seu novo agrupamento, New Masada Quartet, onde o saxofonista se faz acompanhar por Julian Lage na guitarra eléctrica, Jorge Roeder no contrabaixo e o baterista Kenny Wollesen, um dos seus cúmplices habituais de há muito.

Em suma, à boa maneira de uma música que se quer inventiva e interventiva, esta será uma semana variada e bem frequentada, com alguns testemunhos das mais recentes apropriações do Jazz e seus derivados. Uma semana de nove dias e sem interrupções.

John Zorn
John Zorn © Petra Cvelbar – Gulbenkian Música
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Recensão: Música Negra, de Leroi Jones, por João Morales https://branmorrighan.com/2022/03/recensao-musica-negra-de-leroi-jones-por-joao-morales.html https://branmorrighan.com/2022/03/recensao-musica-negra-de-leroi-jones-por-joao-morales.html#respond Thu, 24 Mar 2022 14:10:52 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25244
Música Negra, de Leroi Jones (Amiri Baraka; trad. de João Berhan; ilustr. de Francisco Vidal)

Sons que fotografaram almas

Os escritos de LeRoi Jones são proféticos e perspicazes. A forma como nos fala no nascimento do Free Jazz, que acompanhou em tempo real, é também uma abordagem sagaz ao papel da música como real forma de expressão colectiva.

João Morales

A páginas tantas, lemos: “Pharoah e Coltrane são farinha do mesmo saco, um saco onde vão cabendo cada vez mais músicos, mais do que Trane alguma vez poderia ter imaginado. Sanders está a ficar cada vez melhor, ainda vamos ouvir falar dele” e percebemos um dos pontos mais interessantes deste livro, primeira tradução para português, pela mão da editora Orfeu Negro (traduzido por João Berhan). Música Negra, de Leroi Jones (que assumiria mais tarde o nome de Amiri Baraka) é composto por diversos textos nascidos em pleno período criativo do mais disruptivo jazz que pautou a década de 60, a génese do Free Jazz, da integração da música como expressão de uma forma de estar, de um tempo e de uma condição, mais evidente na cor da pele, muito mais profunda do que isso. 

“Acho que foi Martin Williams o primeiro a dar-lhe esse nome, quando estávamos no Five Spot a curtir a primeira aparição de Ornette Coleman”, recorda Jones (1934-2014), teórico, crítico musical, poeta, declamador, activista, ensaísta, figura de proa da New Thing, a Nova Cena, designação a que se refere.

O fascínio destes textos, autêntico mergulho na História, reside na sua simplicidade. Escritos no “olho do furacão”, ou seja, no centro das movimentações artísticas da década de 60 que consolidaram o Jazz como uma música devedora de tensões e ambições, acabam por enformar também a relação entre a negritude e o país das oportunidades: «Uma das coisas mais desconcertantes acerca da América é o facto de, apesar do seu perfil essencialmente desprezível, continuar a conter tanta beleza. Talvez seja como muitos pensadores disseram: que é graças ao seu carácter desprezível, ou chamemos-lhe adverso, que tamanha beleza existe. (Para equilibrar?)», assim começa um escrito de 1964, que encerra com uma esclarecedora provocação: «E se tivermos Sonny [Rollins], Trane e Ornette Coleman a tocar ao mesmo tempo, podem parar de me dizer que Paris é que está na moda».

Para Jones, a música que está a nascer é um manifesto resultado das contingências sociais e de toda uma conjuntura sociológica, económica, política, que deixará marcas e imporá mudanças. «Tento explicar a «vanguarda»: homens para quem a história existe para ser utilizada nas suas vidas, na sua arte, para fazer algo para si próprios e não como lembrança avassaladora das pessoas e das ideias que viveram, antes deles”.

O devir do Jazz é apresentado como uma tradução do próprio devir histórico, indissociável das transformações da sociedade. A música nunca é apenas arte, mas antes uma emanação da sociedade em que nasce, causa e consequência. “A primeira música que os negros fizeram neste país tinha de ser africana; a sua subsequente transmutação para aquilo que conhecemos como Blues e o desenvolvimento paralelo do Jazz demonstraram a espantosa flexibilidade do seu carácter inicial (…) O blues foi a música afro-americana inicial; o bebop uma nova ênfase na tradição não-ocidental. E se o último nos salvou dos resquícios insípidos do Swing, a nova vanguarda – e John Coltrane – sozinhos, salvam-nos agora de uns anos 50 comparativamente enfadonhos”.

Através de vários destes textos, autêntica arqueologia da crítica musical, podemos encontrar algumas pistas para uma análise mais detalhada, aprofundada, de toda a questão que rodeia a improvisação no jazz, como numa análise extraordinária a um álbum mais ou menos obscuro de Gil Evans e a sua orquestra, Into the Hot, disco de 1962 que integra no seu alinhamento algumas composições de um seminal Cecil Taylor: “O Cecil é um solista fantástico, mas as suas composições demonstram até que ponto a sua música poderá ser preservada enquanto música anotada. Parece estar muito mais consciente da possibilidade de esta ser tocada por outros além de Coleman”. 

Sun Ra, Albert Ayler, Arche Shepp, John Tchicai, Burton Greene, a editora ESP, os lofts onde ocorrem improvisações informais, são outras referências que habitam estes textos. E há ainda outros dois motivos de forte interesse, que engrandecem de modo indiscutível esta edição.

O prefácio de Kalaf Epalanga (mais conhecido pela sua prestação nos Buraka Som Sistema) bem informado e contagiante, é uma óptima porta de entrada para o que se segue, não escondendo a devoção, revelando a importância do Jazz na formação do músico (e até encontramos uma alusão certeira ao mundo dos melómanos e das lojas de discos usados). Começa logo por evocar a noite de 1 de Agosto de 2201, quando Amiri Baraka se apresentou no Jazz em Agosto, da Fundação Calouste Gulbenkian, adequadamente acompanhado pelo New York Art Quartet (John Tchicai, no saxofone, Roswell Rudd, no trombone, Reggie Workman, contrabaixo, e Milford Gravres, bateria).

Acrescenta como vê este livro, “um guia de como ouvir e entender este género musical tão complexo como a própria ideia da América, um movimento cultural que atravessou gerações, continentes, e que foi o protótipo para o rock & rol e o hip-hop”. Kalaf realça o carácter eminentemente político – no sentido lato do termo – que a visão transversal destes textos acarreta, citando Jones: “Já o músico negro, ele pega no seu instrumento e começa a tocar sons em que nunca ante havia pensado. Improvisa, cria, vem-lhe de dentro. É a sua alma, é a tal música soul… Logo, ele também consegue fazer o mesmo se lhe derem independência intelectual… Pode inventar uma sociedade, um sistema social, um sistema económico, um sistema político que seja diferente de tudo o que existe neste planeta. Vai improvisar, fazer nascê-lo de dentro de si. E é isto que todos queremos”.

A complementar tudo isto, é mais que justo referir as ilustrações de Francisco Vidal, sóbrias e estilizadas, adequam-se perfeitamente criando momentos de respiração, integrando-se na leitura de forma competente e personalizada. 

Em suma: um livro importante pela informação que nos traz sobre a fase inicial de um dos momentos em que o Jazz assumiu uma maior rotura, regressando, em certa medida, a uma raiz anterior, corporizando na música emergente toda a necessidade de consciência social, o que se viria a repetir em outras épocas. Mas também, um livro importante para descobrirmos um teórico e crítico musical atento e visionário, que teve a oportunidade de acompanhar alguns dos maiores nomes do Jazz no momento da sua ascensão inicial. E fixar esse momento. 

Música Negra
Leroi Jones (Amiri Baraka; trad. de João Berhan; ilustr. de Francisco Vidal). 
Orfeu Negro
296 págs

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Recensão: Tropel, de Manuel Jorge Marmelo, por João Morales https://branmorrighan.com/2021/04/recensao-tropel-de-manuel-jorge-marmelo-por-joao-morales.html https://branmorrighan.com/2021/04/recensao-tropel-de-manuel-jorge-marmelo-por-joao-morales.html#respond Sun, 18 Apr 2021 15:07:21 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25102

Tropel
Manuel Jorge Marmelo

Porto Editora
149 págs

Distopia? É melhor que sim…

Embora tentador, é difícil catalogar esta história como uma distopia, tal é a presença de elementos concretos e actuais, referências identificáveis por todos, e um assombroso desejo de que tudo não passe… de uma ficção.

Tropel, assim se designa o mais recente romance de Manuel Jorge Marmelo, demonstra mais uma vez a capacidade deste autor em criar narrativas apelativas, escritas de forma extremamente fluída, onde a intensidade das personagens e do seu devir substituem qualquer arquitectura intrincada de relações ou um discurso apoiado num vocabulário hermético. Sem que, com isto, se menospreze a escolha das palavras exactas e da sua carga simbólica. Pelo contrário – veja-se a referência repetida à “actividade venatória”, introduzindo um carácter ritualístico numa descrição de brutalidade: “Sim. Caço refugiados. É este, agora, o meru desporto., o meu modo de vida, aminha principal especialidade venatória. É o meu contributo para limpeza e para o progresso da minha pátria amada”.

Atanas Viktor é o jovem narrador, nome no qual, consciente ou inconscientemente, encontramos ecos a Thanatos, o Deus da morte – mas da morte pacífica. O seu pai é Hirónimo, tal como Hieronimus Wolf, historiador do séc. XVI, todavia, mais uma vez o pensamento do leitor vagueia e é impossível não pensar em Bosch, o pintor de As Tentações de Santo Antão, quadro que repousa no Museu Nacional de Arte Antiga. 

O Clube dos Caçadores ocupa-se de vigiar a fronteira, mas não apenas. O seu espírito voluntarioso leva-os a criar armadinhas e ciladas, aliciando refugados que acabam abatidos. A crueza do raciocínio que pauta o comportamento destes homens é notória e assumida. Logo nas primeiras páginas, a cena que põe termo à vida do avô de Atanas deixa bem clara a ausência de contemplações e a rigidez dos preceitos que norteiam esta comunidade, bem como a bestialidade dos comportamentos com as mulheres, tónica constante ao longo do livro. 

O livro é pontuado com algumas alusões literárias, absolutamente justificadas, consistindo em contributos inteligentes e adequados à consolidação do simbolismo de uma interpretação literária e filosófica de tudo o que nos é apresentado: O Estrangeiro, obra maior de Albert Camus, ou o igualmente icónico O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, estabelecendo um paralelismo interessante entre o conflito que se pressente, mas não eclode, e a ansiedade da personagem Krassimiro (“disse-lhe que estava a ler um livro em que um Tenente espera por um ataque dos tártaros. Limita-se, porém, a esperar. Espera e espera num forte erguido no meio de um deserto poeirento onde nada acontece”)

Um ambiente maléfico alimenta o pior de cada um e assegura a continuidade do mal. A moral nivela-se por baixo: “senti confusamente uma espécie daninha de triunfo e vingança, o alívio mesquinho de saber que Marguita não mais seria tratada com deferência especial e que provaria do mesmo veneno que a minha mãe há muito ingeria em grandes sorvos”.

Naturalmente, este livro é um alerta e uma denúncia, uma obra assumidamente política, nunca no restrito sentido partidário, mas tendo por base um olhar sobre alguns discursos da actualidade. Seria tão que o pudéssemos continuar a definir como distopia…

João Morales

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Recensão: Em Todos os Sentidos, de Lídia Jorge, por João Morales https://branmorrighan.com/2021/02/recensao-em-todos-os-sentidos-de-lidia-jorge-por-joao-morales.html https://branmorrighan.com/2021/02/recensao-em-todos-os-sentidos-de-lidia-jorge-por-joao-morales.html#comments Tue, 02 Feb 2021 09:06:02 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24987
Em Todos os Sentidos

Em Todos os Sentidos
Lídia Jorge

Dom Quixote; 261 págs; 14,90 €

Partilhar memórias e pensamentos

A páginas tantas, lemos: «Mas o que sei é que se tem de encontrar uma palavra diferente para compaixão e solidariedade, palavras que supõem de um lado um sujeito salvo e, do outro, um sujeito para salvar. E não é mais assim. A cada dia que passa, o que acontece lá é como se acontecesse aqui, o que acontece aos outros é o mesmo que pode acontecer na nossa rua. A Terra é um só espaço, e todos os países estão unidos pelo mesmo traço de convivência necessária».

Em certa medida, palavras que remetem para o sentimento dominante nestas crónicas de Lídia Jorge, reunidas sob a designação Em Todos os Sentidos (edição da Dom Quixote), título suficientemente malicioso para remeter o leitor a uma múltipla interpretação que alguns dos relatos poderão conter, não se fechando na narrativa por si só, mas igualmente para as portas de entrada no universo que é cada ser humano, os canais de ligação ao mundo real, os nossos cinco polos de recepção sensorial, afinal, a ponte primeira com a realidade que nos circunda.

O título do livro nasce do espaço radiofónico homónimo que o antecedeu, juntando assim quarenta e uma crónicas lidas pela escritora Lídia ao longo de 2019, aos microfones da Antena 2.

Lídia Jorge não se coíbe de traçar algumas críticas, como a denúncia de um egocentrismo contemporâneo, exacerbado por uma utilização doentia e exaustiva das redes sociais; centrando na primeira pessoa o interesse, o valor e a bitola de comparação do próprio. O texto intitula-se “O Tubarão”: «As pessoas viram-se de costas para os quadros, põem-se a jeito, e tiram uma selfie que enviam para os amigos e para a nuvem. Não dizem, eu vi a Mona Lisa, dizem, eu até passei diante da Mona Lisa, e esta é a prova de que estive no Louvre».

Seja como for, tanto nos elogios como nas anotações menos abonatórias, este é um livro que assume a sua dimensão humanista, no sentido em que nos evoca o preceito clássico, tomando o Homem como a medida de todas abordagens, de todas as coisas. E este raciocínio, ao longo dos tempos, derivou em diversas metáforas subsequentes. Se Terêncio afirmava como “nada do que é humano me é estranho”, Jorge Luis Borges discorria como cada homem é todos os homens. Lídia metaforiza com a natureza, escrevendo como faz corresponder «todas as águas, uma só água, milhares de fontes de vida, só uma fonte de vida».

O contundente texto “Black Friday” marca fundo as contrariedades da nossa contemporaneidade, rendidos às opções tecnológicas, ao facilitismo de uma modernidade selectiva que oculta os sacrificados para a manutenção desse patamar de suposta qualidade de vida para uns, em troca da vida e da dignidade de outros. Partindo do dia em que o Ocidente celebra as compras compulsivas nas grandes cadeias comerciais, acaba por nos confrontar com o obscuro montante desses holofotes, «como no interior do Congo onde milhares de crianças aprisionadas, neste momento, estão a escavar rocha com as mãos nuas nas minas de cobalto para que tenhamos o Samsung barato».

A linguagem utilizada é rica e apoia-se na crueza das opiniões traçadas, mas igualmente recorre a uma sapiente galeria de imagens poéticas, cuja clareza também não é deixada ao acaso. São construções buriladas com perícia, criando imagens fortes numa formulação construída a partir de elementos simples e reconhecíveis.

Discorrendo sobre a brutalidade da Natureza, anterior ao nascimento, posterior à morte, de cada protagonista humano desta longa epopeia que é a Vida, no seu sentido mais amplo, reflete: «Mas a Liberdade é uma jovem grávida que caminha às costas de uma velha cínica, e custa a dar à luz. Refiro-me às dores da libertação, que nunca são amenas». A citação é retirada da crónica “A Cidade Traída”, a que pertence igualmente a primeira transcrição deste texto.

A escrita da autora serve-se de uma clareza que lhe permite uma leitura fácil, embora não se deva considerar por isso que o entendimento dos objectivos, das motivações, dos significados implícitos esteja facilitado. Escriba experiente e atenta a diferentes enfoques sobre uma mesma realidade, universal, transversal e resultante de diferentes vasos comunicantes, aproveita a sua crónica “Geografia partilhada” para desmistificar olhares ingénuos, acerca das virtualidades que a escrita, e a leitura, possibilitam e recompensam:

«Digam agora que a ficção não serve para nada. Proclamem melancolicamente que o romance é um objecto de museu, que a sua função terminou, que desse género já não sai coisa que valha a pena. Eu não concordo. Acho precisamente o contrário. Não só o romance espelha realidades que andam escondidas e que de outro modo permanecem invisíveis, como ainda por cima fornece ideias úteis que depois vêm a ser postas em prática. Outras vezes, o que acontece na realidade não teria interpretação possível se antes a ficção não o tivesse imaginado, ou, posteriormente, não viesse a esclarecer», sintetiza a autora, na crónica “Geografia partilhada”.

Em suma, neste conjunto de textos, quando acompanhamos as reflexões da autora, estamos também perante um evidente exemplo de como a arte de contar histórias desenvolvida ao longo de anos e com muitas provas dadas, acaba agora por fornecer o chão onde se plantam estas crónicas, também elas pequenos episódios narrativos, artilhados com camadas de entendimento à medida de cada um e um ritmo contagiante que nos convida a ler até ao fim. 

João Morales

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Sala com vista, de Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2021/01/sala-com-vista-de-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2021/01/sala-com-vista-de-helena-ales-pereira.html#respond Tue, 26 Jan 2021 19:33:48 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24949
Sala com vista

Casa com vista

A janela da sala dava para a avenida mais movimentada da cidade. Um corrupio de pessoas, carros, motos, autocarros, camiões do lixo e vozes. As das pessoas, de dia, e as dos cães que rompiam de dia ou de noite, independentemente da hora, porque aos cãos tanto se lhes dá se tiveram de dar sinal de alguma coisa que os ameace ou perturbe.

Do outro lado da rua, a casa. Um prédio de três andares, quase sempre em silêncio. Varandas compostas com móveis modernos e uma absoluta quietude, excepto num andar, o último. Ali via o casal que, algumas vezes, assomava àquela varanda e se deixava ver, mais junto ou mais afastado, a dois ou um de cada vez. Ficava a olhá-los e a imaginar as conversas que teriam naqueles momentos fugazes que o ocaso poderia trazer, naquela hora e naquela luz que dá para as pessoas fazerem divagações sobre as suas vidas, sobre as suas próprias decisões, motivadas pelo momento contemplativo.

Estariam juntos há muitos anos, porque aquela hora do dia, que inspira abraços e promessas, raras vezes os aproximava de uma forma íntima e mesmo quando isso acontecia, havia naquele par um cansaço, uma normalidade que enche a vida que se partilha há muito. Imaginava as conversas sobre os filhos – se os havia, porque nunca os tinha visto naquela varanda –, o dia-a-dia do trabalho, da casa, dos conhecidos, da família, da rua, talvez de um livro que se andasse a ler ou de um filme que se teria visto na noite anterior ou se agendava para ver já há algum tempo.

A visão do casal, e da sua rotina, trazia, naqueles dias em que sentia mais a sua própria vida, uma inveja por não partilhar o mesmo com alguém, uma solidão que se colava mais à pele quando se toma consciência que independência pode também significar o estar-se só. Nos dias que ventava mais ou o sol se deixava esconder pelas nuvens mais escuras dos dias invernosos, o casal raramente assomava à janela e isso causava-lhe mais inveja do que o normal.

Imaginava-os a partilhar um sofá, uma manta a cobrir as pernas; ele talvez a ler um jornal ou um livro, ela dedicada a um livro ou a uma daquelas actividades caseiras que algumas mulheres gostam de experimentar, como fazer malha. O ruído de uma casa habitada por um casal tornaria o seu próprio silêncio ainda mais ensurdecedor, aquele movimento constante só lhe daria para notar como a sua própria casa era tão quieta.

Em casa, olharia para o seu computador e encheria a cabeça com as imagens de uma série ou de palavras de algum artigo que estivesse a ler na Internet, uma distração que fizesse esquecer a sua própria existência, mais vazia, sem histórias a dois num final de dia numa varanda com vista para a rua. Lá fora, a avenida continuaria a sua vida de sempre, enchendo-se de ruídos e de vozes, até que o sol levasse tudo com ele. 

Helena Ales Pereira

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Passar a montanha, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2021/01/passar-a-montanha-por-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2021/01/passar-a-montanha-por-helena-ales-pereira.html#comments Mon, 11 Jan 2021 21:04:19 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24889
Ilha de Santo Antão

Texto e fotografias por Helena Ales Pereira

Passar a montanha

Os passos ressoam na pedra, na terra, nas folhas caídas das árvores. Os pés, incansáveis, que sobem e descem a montanha, os braços e as cabeças carregando banana, cana, batata, estrume. A fruta esquecida no chão, alimentando os animais da noite, como pequenos ratos que confundem veneno com amêndoa e acabam mortos na beira de um caminho, ou ainda meio grogues na boca de um cão que brincará com esse ser quase inanimado até ele definhar de vez.

A gente que sobe e desce a montanha, porque é assim que se vive em Santo Antão, as mentes e as almas carregando ausências, saudades, mortes demasiado precoces, uma gravidez não planeada, um nascimento há muito desejado, os sonhos de uma criança, as recordações de um velho. 

O vento ecoa nos ouvidos desprotegidos do frio da manhã e faz-se ouvir nas folhas das bananeiras, nas espigas do milho, nos troncos despojados das papaeiras, estes restos de vida mortos de pé, numa terra onde os homens morrem de todas as maneiras, não raras vezes de suicídio. A mente quer divagar mas encontra limites nas paredes duras da montanha e nem mesmo a riqueza deste verde, albergue de tantas plantas, é suficiente para apaziguar as angústias que consomem a alma por dentro, com a mesma rapidez com que o vento e o sol curtem a pele, secando-a para uma idade não condizente com a marcada num pedaço de papel de um registo.

Os nomes que se perdem na memória, as histórias reais de descendências perdidas no tempo de outros tempos misturadas com as histórias irreais da ilha, os seres do sobrenatural que acompanham os passos das gentes na noite. O agitar das folhas da cana que parece transformar-se nas passadas ligeiras de alguém a sussurrar nos ouvidos de um distraído, um tronco velho e seco que range como uma porta velha numa casa esquecida na encosta da montanha, vazia de alegria e tristeza.

As folhas largas de bananeira que se agitam na noite são vozes de pessoas que chamam a gente da montanha para a escuridão das lendas. E é preciso ter na ponta da língua o saber para lidar com estes seres que, não bastando esconderem-se na montanha, procuram também refúgio dentro das casas, debaixo das camas. Vozes mais velhas confessam que não conhecem tais lendas, mas é o medo de as evocar, e com isso despertá-las, que as fazem negar tais mitos cabo-verdianos e não o privilégio de terem crescido na ignorância.

Ilha de Santo Antão

Bale a cabra, muge a vaca, ronca o porco, ladra o cão, canta o grilo, bebe o homem. O grogue escorre pela garganta e aquece o vazio que se cola por dentro da pele, amolecendo as carnes, enrijecendo a alma. O álcool serve as festas e serve o luto. É companheiro de batizados e casamentos, das conversas que se arrastam do sol para a lua, dos quartos vazios, das mesas de um único prato.

A calda que se espreme da cana mistura-se com laranja ou limão, o ligeiramente ácido para cortar todo aquele açúcar que se prefere deixar repousar, levar ao alambique e transformar em grogue, porque o açúcar que adoça a vida parece uma toalha que cobre a madeira estragada de uma mesa: disfarça, mas não consegue mentir quando destapada.

Os carros torneiam a montanha num vai e vem. A fuga diante dos olhos, numa volta à ilha sem fim, na beira de estrada junto ao mar que parece prolongar a sensação infinita e irónica desta imensidão, encurralada pela água que a cerca. A liberdade tem apenas o espaço de um quarto fechado, limitada por aquilo que nos dá a sensação de infinito: o mar. Liberdade e prisão numa imensidão incapaz de caber em todos os olhos da ilha.

Os risos, os choros, as mulheres, os homens, as crianças, os animais, as casas outrora cheias, agora cheias de nada, abertas apenas para dias de festa em férias gozadas por quem conseguiu perceber a prisão que a montanha negoceia com o mar, sempre que alguém nasce. Inventa uma lenda para que não se arrisquem muito na montanha; inventa outra para que não se arrisquem demasiado no mar que bate, imenso, contra a rocha, transformando-a numa bátega de areia negra, a cor dos homens e a cor da alma.

Alguns dias por ano, as casas renascem, as mesas enchem-se de comida, e os quartos, de corpos habituados a outros confortos. Nesses breves instantes, Santo Antão volta ao passado das famílias grandes e das casas que descansarão sozinhas quando o vento voltar a soprar mais frio. A luz apaga-se. E a montanha assiste a tudo, dominante.

Ilha de Santo Antão
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Jazz 2020: encerramento em dose dupla, por João Morales https://branmorrighan.com/2020/08/jazz-2020-encerramento-em-dose-dupla.html https://branmorrighan.com/2020/08/jazz-2020-encerramento-em-dose-dupla.html#respond Tue, 11 Aug 2020 18:18:00 +0000 © Fundação Calouste Gulbenkian – Vera Marmelo

O Jazz 2020 encerrou com uma dupla prestação, Lantana, um colectivo assente na improvisação e João Mortágua – Dentro da Janela, um quinteto alegre e dinâmico.

João Morales

Já, por mais que uma vez, explicaram a origem do nome. Lantana é uma planta, cujas flores podem ter cores bastante diferentes. Uma metáfora para a diversidade que encaram como mote, na vida e na criação musical. Sexteto exclusivamente feminino, abriram a última noite do Jazz 2020, o festival criado para substituir o habitual Jazz em Agosto, no anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian, recorrendo apenas a músicos portugueses ou residentes em Portugal.

A música destas seis mulheres assenta numa cumplicidade sonora, surgindo por improvisação livre, embora combinada entre os seis instrumentos. Uma formação que conta com três cordofones (dois violoncelos – Joana Guerra e Helena Espvall e um violino – Maria do Mar), um trompete (tocado com surdina e o auxílio de alguns efeitos), uma voz (Maria Radich), um trompete (Anna Piosik) e a electrónica manipulada (por Carla Santana).

O ambiente remete para o que se poderia chamar uma improvisação de câmara, com intervenções curtas de cada interveniente, todas entrelaçadas, o que resulta na malha sonora para a qual todas contribuem de igual modo. O violino funciona como um vértice. Os dois violoncelos alternam entre a construção comum de um pilar rítmico, seguro e possante, destinado a acolher sonoridades laterais e o manuseamento de um dele através do dedilhado, como um pequeno contrabaixo.

O texto dito por Radich funciona como um mantra, não são as palavras em evidência, mas a textura, entre um sussurro fantasmagórico ou onírico e o estraçalhar da escala, evocando influências de Lauren Newton ou Maggie Nicols. Em redor dos três instrumentos de cordas, saltitam o discreto trompete de Piosik, com surdina, levando amiúde a pensar em Jon Hassell. Muitas das vezes, aliado próximo dos efeitos gerados por Santana, como um curioso amplificar de água vertida, fazendo do microfone o instrumento. Cerca de 30 minutos, durou esta (demasiado) curta actuação, preenchidos com um tema único.

Mas a noite era de visita dupla e seguiu-se o quinteto Dentro da janela, liderado por João Mortágua. Essencialmente em alto, mas com uma excelente prestação no soprano, acompanhado por José Pedro Coelho (saxofone tenor), 

Miguel Moreira (guitarra), José Carlos Barbosa (contrabaixo) e José Marrucho (bateria).

Os cinco músicos passearam-se por um pós-bop encorpado e alegre, com alguns momentos de diálogo, mas sem nunca se assistir a um “duelo de saxes”. A guitarra de Miguel Moreira, aparelhada com pedais e efeitos, que, contudo, não escondem uma técnica apurada e aperfeiçoada, funciona como elemento fundamental no grupo, concedendo-lhe uma tonalidade identitária especial. Um léxico que comporta ecos, repetições e o uso cuidados do delay, o efeito de atraso no som que permite repescá-lo e utilizá-lo de novo. Um músico a manter debaixo de olho.

Os dois sopros visitaram espaços musicais habitados pelos fantasmas de Pharoah Sanders ou Henry Threadgill, pela dimensão espiritual experimentada, ou pela evidente componente lúdica, construindo um pequeno jogo de encaixes em que a diversão era evidente. Um ou outro momento, denunciando leves toques de Funk ou Bossa, completavam o ramalhete.

O tema em que Mortágua pegou no soprano levou-nos para outras paragens, até mesmo para um certo ambiente de Jazz-rock que poderia ser herdeiro dos Embryo (de Charlie Mariano) ou The Whole World (com Lol Coxhill), com uma melodia em crescendo que acabou por se espraiar. Uma última nota para a presença de José Marrucho, que já escutáramos no concerto de abertura do festival, com o colectivo Coreto, mas que, neste contexto, se revelou muito mais interventivo e dinâmico.

Este segundo concerto durou perto de hora e meia. Foi o encerramento desta iniciativa, preenchida pelas escolhas musicais de Rui Neves, concebida para assegurar que o Jazz, em Agosto, marca presença na Fundação Calouste Gulbenkian, mesmo quando a audiência é totalmente composta por mascarados, forçosamente afastado entre si por (dois) lugares vazios. Todos queremos voltar a ver aquele auditório a abarrotar…

© Fundação Calouste Gulbenkian – Vera Marmelo
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Jazz 2020: a mão de sete dedos, por João Morales https://branmorrighan.com/2020/08/jazz-2020-mao-de-sete-dedos-por-joao.html https://branmorrighan.com/2020/08/jazz-2020-mao-de-sete-dedos-por-joao.html#respond Mon, 10 Aug 2020 14:57:00 +0000
© Fundação Calouste Gulbenkian – Vera Marmelo

Um trio clássico de Jazz e um quarteto de percussões oriundo da Contemporânea entram em palco e mostram ao que vêm. Daniel Bernardes e Drumming GP revelaram-se uma história bem contada, no antepenúltimo concerto do Jazz 2020, da Fundação Calouste Gulbenkian. 

João Morales

Um auditório muitíssimo bem composto, apesar de restringido à diminuição de lugares que a pandemia implica, foi o cenário que acolheu na Sexta-feira, dia 7, este curioso projecto conduzido pelo pianista Daniel Bernardes, e ao qual deu a designação de Liturgia dos Pássaros, como referência ao compositor Olivier Messiaen. Estava inaugurado o segundo fim-de-semana do Jazz 2020, a iniciativa que assegura a presença desta música no anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian. 

Os primeiros sons que se escutaram foram produzidos por arcos em contacto com os dois vibrafones (manejados por Pedro Góis e Jeffrey Davis), produzindo harpejos cristalinos e quase celestiais. O cenário sonoro foi completado pela passagem bem enquadrada de um avião, dos muitos que os habituais frequentadores do anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian, estão mais que habituados bestas noites de Jazz. A marimba de Miguel Bernat e o xilofone de João Dias completavam o quarteto percussivo que dá pelo nome de Drumming GP.

A eles, juntava-se um trio clássico de Jazz, com Daniel Bernardes no piano (e composição), António Quintino (contrabaixo) e Mário Costa (bateria). No total, um septeto quase improvável que, não renegando toda uma herança mais que evidente da Música Contemporânea, conseguiu por diversas vezes introduzir a dinâmica da improvisação e a surpresa de tocar em conjunto, ao vivo, de forma irrepetível.

A parede rítmica inicial ergueu-se à sombra de um minimalismo encorpado e devedor da articulação colectiva, com algumas passagens mais suaves do piano a fazerem lembrar alguns momentos delicados de Bill Evans. A bateria de Mário Costa funciona como uma espécie de relógio, de metrónomo, de fiel que permite ao conjunto balançar sem pender demasiado. 

O líder do projecto vai deslizando os dedos pelas teclas numa demonstração de subtileza, sugerindo um clima que seria adequado à banda sonora de um melodrama, melancólico e sentido. As nuances que garantem a dinâmica da música jogam-se na diversidade de timbres.

Jeffrey Davis vai dando um ar da sua graça em alguns curtos solos, Bernat, apesar de ser o mentor do agrupamento de percussão, mantém uma serena discrição nas suas intervenções. Ligeiros apontamentos conseguidos com outros elementos de percussão ajudam a compor o ambiente.

O pianista vai apresentando os temas. “19”, que abriu o set; “Bolero” (com um conjunto de falsos finais que ia baralhando os aplausos mais afoitos); “Ao Olivier” (reconhecendo, mais uma vez, o Mestre inspirador); “Globular Clusters” ou “Sobre Kieślowski”, em homenagem ao realizador da trilogia com as cores da bandeira francesa, como o compositor fez questão de referir.

Este concerto foi mais uma demonstração das relações quase incestuosas que o Jazz e a Música Contemporânea podem desenvolver, preconizando um papel fundamental para a composição, embora sem qualquer desprimor para a mestria e capacidade de interpretação de cada um dos envolvidos. É também um reflexo da forma como uma nova geração (Daniel Bernardes nasceu em 1986) conduzirá um legado devedor das pautas e da intuição. Afinal, Daniel foi o primeiro licenciado em Piano Jazz, na Escola Superior de Música de Lisboa, em 2011, oito anos depois de ter participado nos Seminários de Composição da Fundação Calouste Gulbenkian, orientados por Emmanuel Nunes.

A noite encerrou com a multidão mascarada escutando “Ostinato Interlúdio e Canção nº 5”, com um início em que a marimba sobressai, o piano parece ganhar asas e há espaço para alguns solos esclarecedores, como os de, novamente, Jeffrey Davis ou o baterista Mário Costa. 

No fundo, os sete músicos funcionaram de forma coerente, como os dedos ginasticados de uma mesma mão. Uma noite bem passada e com algumas pistas sobre a forma como se podem conjugar duas linguagens sonoras que transportam consigo a vanguarda e a evolução constante, herança de um séc. XX profícuo em vanguardas e avanços estéticos, que agora urge conservar e manter em forma, recorrendo sempre à idiossincrasia de cada projecto. Ainda mais num caso como este, que aposta numa formação muito pouco habitual, apesar do resultado final se pautar por uma salutar e quase imediata osmose com a audiência.

© Fundação Calouste Gulbenkian – Vera Marmelo
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JAZZ 2020: UM CORETO BEM COMPORTADO, por João Morales https://branmorrighan.com/2020/08/jazz-2020-um-coreto-bem-comportado-por.html https://branmorrighan.com/2020/08/jazz-2020-um-coreto-bem-comportado-por.html#respond Mon, 03 Aug 2020 00:02:00 +0000 © Fundação Calouste Gulbenkian – Vera Marmelo

O Jazz 2020, festival que substitui este ano o Jazz em Agosto, abriu com o colectivo Coreto. Aprumados e competentes, mas sem o rasgo e o risco que sublinhariam o optimismo com que avançámos para o anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian. 


João Morales 

O aumento do número de colaboradores que durante cerca de meia hora orientaram o público até aos lugares certos, todos de máscara (apesar de estarmos ao ar livre), espectadores e funcionários, não deixava margem para dúvidas: um concerto na Era Covid. 

Como já muitos sabem, a pandemia que se faz sentir internacionalmente também afectou o Jazz em Agosto. Impossibilitada de contar com músicos vindos do estrangeiro, a Fundação Calouste Gulbenkian suspendeu o festival e trocou-o pela iniciativa Jazz 2020, em parceria com duas associações: Jazz ao Centro (de Coimbra) e Porta-Jazz (do Porto). 

E foi pela mão da – também – editora da Invicta que chegou, a 31 de Julho, ao Anfiteatro, o grupo escolhido para estrear este festival, completamente preenchido com músicos portugueses ou residentes em território nacional. Coreto, assim se designa este projecto, com 12 músicos em palco – piano contrabaixo, bateria, guitarra, quatro saxofones, dois trompetes e dois trombones. 

O essencial deste agrupamento, herdeiro das orquestras de Jazz, mas com uma linguagem actualizada, sem que isso implique uma postura permanentemente experimentalista ou assumidamente atonal, passa pela riqueza dos arranjos e pelo entrecruzar dos seus músicos, assegurando uma manta de matizes semelhantes, que acolhem o carisma próprio de cada um. 

O ambiente sonoro inicial quase remetia para o genérico de uma série policial, nórdica possivelmente, e rapidamente se evidenciou a dinâmica colectiva que norteia o grupo, numa actuação que, a espaços, faria evocar nomes como Gil Evans ou George Russell, pela forma como trabalharam colectivos de músicos em ambiente Jazz, sem nunca alinhar numa postura histriónica, mas mantendo um grau de originalidade considerável. 

Durante o primeiro tema, “Raiz”, Ricardo Formoso destacou o seu trompete, melódico mas incisivo, acompanhando o tapete móvel que a restante parafernália de metais lhe oferecia. Depois, “Sob Escuta” iniciou-se com solos e riffs, sublinhado novamente a importância da escrita nesta música, mas também de uma aperfeiçoada cumplicidade. 

Susana Santos Silva solou, mas nunca se destacou ao longo da noite, possivelmente por ser aqui convidada, e líder de outro agrupamento, no dia seguinte. Ao longo de outros temas, com títulos como “Rádio”, “Transistor” ou “Curto-circuito” fomos conhecendo melhor o contrabaixo de José Carlos Barbosa, o piano de Hugo Raro, o tenor de Hugo Siríaco ou, a merecer algum destaque, o trombone de Daniel Dias e a bateria sincopada de José Marrucho, que nos mostrou como minimalismo não é sinónimo de recursos reduzidos. Alguma condução ia sendo assegurada pelo saxofonista e flautista João Pedro Brandão. 

Apesar da competência, não se pode afirmar que tenha sido uma abertura espampanante, antes um desfilar de bom comportamento, até pouco habitual neste espaço, pelo mês de Agosto. Num tempo em que o contacto físico está cerceado, a ansiedade paira sobre as cidades, a distância entre as pessoas deixou de ser uma metáfora e a frieza do virtual cibernético tomou conta do nosso quotidiano, será bom que os restantes convidados para este Jazz 2020 tenham a capacidade nos arrebatar e insuflar. E como precisamos de um bom sopro divino… 

© Fundação Calouste Gulbenkian – Vera Marmelo
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Recensão: Fernando Tordo: Não Houve Geração mais Rica que a Nossa, por João Morales https://branmorrighan.com/2020/01/recensao-fernando-tordo-nao-houve.html https://branmorrighan.com/2020/01/recensao-fernando-tordo-nao-houve.html#respond Mon, 13 Jan 2020 14:54:00 +0000
Fernando Tordo

Fernando Tordo: Não Houve Geração mais Rica que a Nossa
Diálogo com José Jorge Letria

Guerra & Paz
176 págs
13,99 euros

Há algum tempo que José Jorge Letria vem mantendo esta colecção, tirando partido do seu conhecimento antigo das várias das personalidades envolvidas, do seu passado de jornalista e da proximidade que partilha com os seus entrevistados, quer no campo profissional, quer em diversos encontros ao longo da vida, mais que naturais em quem sempre esteve ligado a actividades que, de uma forma ou de outra, acabam por se relacionar com a Cultura em diversas áreas e de diferentes formas.

Posto isto, é necessário deixar claro que este não será um dos livros mais conseguidos dessa colecção, uma vez que Letria poderia ter ido muito mais longe nas revelações (factos ou reflexeões) que, pelo atrás descrito, qualquer leitor espera encontrar num volume com estas características. Mais que traçar o percurso de Fernando Tordo (o que seria difícil num livro desta dimensão, compreende-se) ou fixar as suas ideias, o livro prende-se a meia dúzia de momentos do percurso do cantor e compositor, na sua maioria já do domínio público.

Não se julgue, contudo, que é tempo perdido ler este livro. Nada disso. A tal cumplicidade acaba por dar frutos na forma simples, mas directa, como ambos se referem a alguns pontos e Tordo deixa-nos alguns momentos emotivos na sua conversa com Letria.

«O meu pai era um homem que veio para Lisboa pobre, fazia recados ao Eng. Duarte Pacheco e ficava a trabalhar porque era trabalhador a tempo inteiro, não tinha outra hipótese de sobrevivência senão isto (….) Seria um descaramento da minha parte ir pedir ao meu pai que me comprasse uma guitarra Fender que custava os olhos da cara. Nem uma guitarra Fender nem coisa nenhuma. Era roubar, eventualmente, da mesa-de-cabeceira do meu pai, uma ou duas moedas de vinte e cinco tostões, ir a correr à Avenida João XXI, ao professor Duarte Costa e alugar uma viola».

Tocar em Albufeira para Tom Jones ou para os músicos dos Shadows, estávamos então no Verão de 1967, era uma alegria, uma honra e uma oportunidade para qualquer jovem músico, como se percebe da narrativa de Tordo, quando evoca esses dias em que ele e o grupo trocaram a segurança de um contrato chorudo para actuações diárias pelo calor que o Algarve sempre parecer ter tido.

Claro que um dos pontos mais intensos da sua carreira, da sua criatividade, da sua vida, é o encontro e cumplicidade com José Carlos Ary dos Santos. E esse é também um dos eixos do livro, aqui sim, explorando uma pespectiva mais pessoal, concedendo uma mais-valia ao leitor. «Eu sabia que o José Carlos Ary dos Santos era homossexual e, ao nível da opinião pública, fui tocado por tabela porque se trabalhava com ele todos os dias é porque também era homossexual. Não sou. E se fosse?».

A relação entre o álcool e a criação artística da dupla é abordada de forma descomplexada e aberta, mas, mais do que isso, as diferentes opções de cada um dos artistas – Tordo entende que a bebida iria ficar pelo caminho; José Carlos Ary dos Santos, como é público, leva-a de braço dado até às últimas consequências. E o cantor de “Tourada” não esconde que isso contribuiu em grande medida para a cisão, incorporada, de alguma forma, na última canção que fizeram em conjunto.

«Um gin tónico para ele, para mim zero. Isto foi tenso. Hoje, ao fim de uns anos de trabalho, pensar nisso é difícil. Há uma coisa que terminou ali. A gente tinha de fazer uma cantiga para terminar a peça. Mas não era só para terminar a peça, era para terminar uma parceria com imensa história», recorda Fernando Tordo. O simbólico título dessa canção era “O amigo que eu canto”…

João Morales

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