Diário de Bordo Nuno Nepomuceno – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Mon, 28 Dec 2020 05:43:29 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.2 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Diário de Bordo Nuno Nepomuceno – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 [Especial Nuno Nepomuceno] Crónica #3 – Acabamento https://branmorrighan.com/2019/02/especial-nuno-nepomuceno-cronica-3.html https://branmorrighan.com/2019/02/especial-nuno-nepomuceno-cronica-3.html#respond Sun, 24 Feb 2019 18:36:00 +0000

Acabamento

Eu ia roubar um quadro, lembram-se?

Hum, que ideia tão tola.

Acho que a primeira dificuldade que tive foi exatamente essa, ou seja, encontrar o meu caminho, descobrir, ao fim e ao cabo, como é que eu iria fazê-lo. Confesso que foi uma altura complicada. Passavam-me imagens mirabolantes pela cabeça. O Giampietrino é uma tela muito grande. Como é que eu iria tirá-lo da Academia Real das Artes de Londres? Permitam-me que vos faça uma pequena confissão: eu cheguei a sonhar com homens vestidos de negro, encapuzados, numa cena plena de adrenalina, enquanto trocavam uma tela por outra, pendurados na carroçaria de um camião em andamento numa autoestrada.

Sim, deitei a ideia fora.

O mais importante não era a espetacularidade. Já fizera isso antes; era a coisa mais simples de alcançar. Aquilo que eu não poderia descurar era o remate, o acabamento, aquele ato final que deixaria todos boquiabertos, a pensar que tinham sido ludibriados.

Ou, melhor do que isso, o que significaria aquela pequena centelha de dúvida que desejava introduzir estrategicamente com o único propósito de vos deixar sem chão? Pois, leram bem. É que há algo que ainda não vos disse…

Eu até consigo ser um bom ladrão.

Todavia, há outra coisa que faço ainda melhor.

Descreve-se com uma palavra: enganar-vos.

As frases fluíram a bom ritmo. Os meus dedos segredaram ao teclado do computador, tocando harmonias de poesia, embustes, amor e vingança. Mas, como sempre, estava atrasado. A pesquisa que fizera consumira-me demasiado tempo, sobretudo, para alguém que, desde o momento em que pela primeira vez se sentara defronte do seu editor e assumira — com um sorriso rasgado, note-se — que terminaria o livro no fim do verão, pura e simplesmente arrancara tarde de mais.

Vá lá, Nuno. Confessa-o. Tu só começas a escrever mesmo a sério quando estás debaixo de pressão.

Mas não senti isso. O que este livro me trouxe foi algo diferente.

À medida que progredia, o ritmo foi-se intensificando. O número de páginas começou a crescer, mesmo apesar do andamento tímido, ao princípio. Nem sequer fiz uma ou duas paragens a meio, como acontecera em livros anteriores, para me situar na história. Desta vez, eu fui até ao fim com um só fôlego. Continuava a ver o mesmo casal, aquele homem e aquela mulher que me tinham aparecido em Londres. Discutiam em frente às janelas de um quarto de hotel; contemplavam um quadro mítico; ou apenas urdiam planos para se atraiçoarem mutuamente.

Aqueles dois bastavam-me.

E foi assim que escrevi o meu acabamento.

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[Especial Nuno Nepomuceno] Crónica #2 – Cor https://branmorrighan.com/2019/01/especial-nuno-nepomuceno-cronica-2-cor.html https://branmorrighan.com/2019/01/especial-nuno-nepomuceno-cronica-2-cor.html#respond Sun, 27 Jan 2019 19:15:00 +0000

Cor

De mochila às costas, com um bloco de notas e uma caneta na mão, sentado dentro da carruagem em movimento, olhei para o cartaz que ilustrava a rede ferroviária. Sentia-me numa encruzilhada. Como é que era possível? Tinha planeado tudo tão bem. Pior do que isso, não comprara bilhete para aquela viagem. O que iria acontecer se aparecesse o revisor? Uma ideia ridícula veio-me à cabeça. Poderia ser deportado?

Felizmente, não aconteceu nada disso. Passados cerca de três quartos de hora, dei por mim já na rua, no exterior de um dos muitos acessos à estação de London Bridge. Parei e deixei-me ficar sobre o passeio durante algum tempo, tentando situar-me. Reparei numa placa afixada numa parede e senti que a minha sorte acabara de mudar. Era um hospital. Sorri com ironia. Que oportunismo. Umas das personagens que construíra para o meu novo livro sobrevivera a um cancro.

Comecei a andar e deparei-me com a entrada de um hotel de luxo. Já ouvira falar nele, sobretudo, nos quartos, famosos pela vista panorâmica que ofereciam. Foi nesse instante que tive a primeira visão: um homem, uma mulher; os dois frente a frente, junto a uma das janelas num momento decisivo das suas vidas.

Já definira muita coisa naquela altura. Decidira o tema, grande parte do enredo, e fizera um esboço tosco, a preto-e-branco, de como o livro deveria ser. No entanto, faltava-me uma coisa, o casal de protagonistas. Acabara de os encontrar.

Perdido em sonhos, a vaguear por palavras, andei um pouco por Londres. Apesar do percalço, dispunha de algum tempo livre. Cruzei o Tamisa e deixei-me ir. Queria conhecer melhor a cidade, sentir as ruas.

Cerca de duas horas mais tarde, respirei fundo e admirei uma entrada clássica, onde, ao fundo de um pequeno lance de escadas, se via uma porta de vidro e uma inscrição em dourado. Acabara de chegar à Academia Real das Artes.

Passei o vestíbulo e subi a grande escadaria de pedra. A entrevista que tinha marcada com o diretor de coleção só começava dali a mais de meia-hora, o que me deixaria com o tempo suficiente para me organizar. Queria rever as perguntas que preparara pelo menos mais uma vez.

Assim que cheguei ao primeiro andar, fui diretamente para a sala da exposição pública. Uma obra de arte gigantesca recebeu-me ao entrar. Contornei a grande parede e, de repente, deparei-me com ele. Delimitado por uma moldura cor de vinho, ali estava o Giampietrino, três metros e dois centímetros de altura por sete metros e oitenta e cinco centímetros de comprimento, a cópia a óleo sobre tela de A Última Ceia.

Estaquei no meio da sala, indiferente aos outros visitantes. Não estava maravilhado pela imponência e singularidade do quadro. Era belo, sem dúvida, com uma expressividade desarmante. Todavia, havia algo mais ali dentro que me fez parar. Lá estavam eles, o mesmo homem e a mesma mulher de há duas horas. Sentados nos bancos de pele, de frente para a tela, contemplavam-na.

Só eu os via. Eram os meus protagonistas.

Sorri e, de repente, todo o meu esboço ganhou cor e o livro pintou-se defronte dos meus olhos.

Eu ia roubar um quadro.

Nuno Nepomuceno

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[Especial Nuno Nepomuceno] Crónica #1 – Esboço https://branmorrighan.com/2019/01/especial-nuno-nepomuceno-cronica-1.html https://branmorrighan.com/2019/01/especial-nuno-nepomuceno-cronica-1.html#respond Tue, 22 Jan 2019 12:50:00 +0000 ../../../Depois%20da%20Cópia%20de%20Segurança/IMG_1441.JPG

Esboço

A resposta chegou uma semana e meia depois. Tinha estudado, tomara notas, delineara histórias, urdira intrigas e até cedera à tentação infantil de enviar um segundo e-mail. Estava ansioso, certamente, mas a verdade é que não tinha um plano B. Aquele contacto era tudo ou nada para mim.

Li o texto com um nó na garganta, sempre à espera do pior. Mas dei por mim de punho cerrado a celebrar, a festejar a minha pequena vitória. Ele tinha dito que sim. O diretor de coleção da Academia Real das Artes de Londres estava disposto a falar comigo.

Aquilo que ao início me parecera um tiro no escuro, transformou-se numa oportunidade rara. O impasse inicial, uma vez ultrapassado o primeiro obstáculo, desfez-se rapidamente, à medida que começámos a trocar mensagens a um ritmo diário.

Sim, poderíamos agendar uma pequena entrevista, uma breve conversa. Não, as medidas de segurança existentes na academia não seriam abordadas. Se eu queria escrever o meu livro, então, teria de respeitar as suas condições. Aliás, era apenas uma: falaríamos somente acerca do quadro.

Destemido, aceitei. E foi aí que deitei mãos ao meu desenho, o meu plano sumário, ou a minha declaração de intenções. A primeira coisa que eu tinha de fazer era estudar ainda mais, esforçar-me arduamente por aprofundar a pesquisa que começara, não ter medo de ousar, de fazer aquilo que desde o início me motivara a entrar neste mundo. A segunda era algo mais simples. Bastava-me comprar um bilhete de avião. Eu ia a Londres.

Há momentos de sorte, sabem? Costumava acreditar que nunca vivera nenhum. Ouço frequentemente que tenho uma vida de sonho, que alcancei e que usufruo de coisas com as quais apenas alguns sonham e que, na realidade, nunca chegam a alcançar.

A verdade não é bem assim. Diria mesmo que discordo. Sinto que tudo, mas mesmo tudo, tem sido sempre mais difícil para mim.

Não foi o caso da viagem a Londres, apesar de, curiosamente, ter começado com esse sentimento — de desnorte, confusão, frustração e imenso azar. Depois de chegar à cidade, a primeira coisa que fiz foi deitar tudo por terra, destruir o meu pequeno esboço. Comecei por apanhar o comboio errado.

Nuno Nepomuceno

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Diário de Bordo Nuno Nepomuceno #3 – Pecados Santos https://branmorrighan.com/2018/01/diario-de-bordo-nuno-nepomuceno-3.html https://branmorrighan.com/2018/01/diario-de-bordo-nuno-nepomuceno-3.html#respond Thu, 04 Jan 2018 15:57:00 +0000

Pecados Santos

Os meus dedos segredavam sem parar às teclas do computador, enquanto sucessões de frases e parágrafos enchiam o ecrã que se encontrava perante mim. Estava lançado. Todo o tempo do qual dispunha era destinado a escrever. Retirara-me das redes sociais por tempo indeterminado, lutava por debelar alguns problemas de saúde inesperados e dormia cerca de seis horas por noite. A minha vida era uma obsessão com a data limite. Redigia, revia, apagava e reconstruía capítulo após capítulo, em busca somente daqueles que conseguissem satisfazer-me. Porém, o esforço estava a compensar. O livro que iniciara oito meses antes com uma curta viagem a Londres e o princípio de uma pneumonia, ganhara corpo, crescera. Já não era o meu menino. Em breve tornar-se-ia definitivamente independente e nada mais me restaria do que ter de o abandonar.

Dei por mim expectante, fixo no monitor. Um dos momentos mais importantes do livro, o qual planeara com afinco, chegara, enfim. Não haveria muito mais a fazer depois de escrever aquelas linhas. Vários, depois de o lerem, tanto poderiam dizer que o livro era bom ou mau, mas ninguém iria ficar indiferente àquela passagem.

Faltava-me apenas cerca de um quarto da história para a terminar e já matara várias personagens, algumas delas com pormenores próprios de rituais satânicos. Mas o que estava prestes da brotar a ponta dos meus dedos era especial. Iria marcar o livro.

As palavras surgiram no ecrã quase como se fossem dotadas de vontade própria. Eu, que normalmente reescrevo a maior parte dos parágrafos mais do que uma vez, redigi estes de um só fôlego, sem sequer hesitar. As dúvidas surgiram depois. Tinha-me expressado como bem entendera; o ato fora consumado. Li o que tinha escrito e ainda pensei em apagar.

Não me sentia inseguro em relação ao enredo. Eu sabia que aquele era o caminho. O meu problema era outro — temia o que as pessoas pudessem vir a pensar.

Inseri uma quebra de página no documento e comecei a trabalhar no próximo capítulo. Não se escrevem um, dois, ou três episódios de grande violência sexual no mesmo livro sem esperar chocar quem o venha a ler. E eu pura e simplesmente teria de aprender a lidar com isso, com os riscos que estava a correr, ou com a sucessão de críticas que daí poderiam advir.

Tudo naquele livro era ousado, perturbador. Desde a contradição latente no título, à natureza sensível do conteúdo. Sim, continuava a chamar-se Pecados Santos. Mas não, eu não escrevi «cenas quentes». Todavia, de certeza que perdera o meu lugar reservado no Céu. A ligação à morte de Arafat, a vida escondida das personagens principais e a crueza das descrições ia valer-me algo bem diferente. Eu vou arder no Inferno.

Acabei o livro e reli-o todo duas vezes um dia antes do que prometera ao meu agente. Foi marcada uma data, janeiro ou março, sendo que se tentaria cumprir com a primeira. Muito havia para fazer até lá. O projeto que começara depois de publicar A Célula Adormecida ficara pendente quando percebi que o meu futuro era algo incerto. E foi assim que se marcou a primeira reunião.

Sentado a uma mesa de aspeto contemporâneo, rodeado pelo João, a diretora de marketing da Cultura Editora, uma engenheira de software e dois assessores de imprensa, começámos a planear para a frente. O meu site oficial tinha de ser renovado; eu necessitava de tirar algumas fotografias; o livro iria seguir para edição e revisão; e não, não foi preciso reescrevê-lo.

Dei a minha opinião face a algumas questões que surgiram. Eu apenas queria uma coisa — que o livro fosse bom.

E que todos o lessem.

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Diário de Bordo Nuno Nepomuceno #2 – A Reunião https://branmorrighan.com/2018/01/diario-de-bordo-nuno-nepomuceno-2.html https://branmorrighan.com/2018/01/diario-de-bordo-nuno-nepomuceno-2.html#respond Wed, 03 Jan 2018 16:23:00 +0000

A Reunião

Sentei-me numa cadeira perante uma secretária cujo tampo estava vazio. Encontrava-me nas novas instalações da pessoa que me contactara há um mês com o intuito de saber se eu tinha interesse em colaborar com ele. A primeira reunião realizou-se poucos dias depois, na sequência da qual acabei por entregar-lhe as primeiras cem páginas do meu novo livro. Seguiu-se um longo e excruciante silêncio.

Essas semanas não foram fáceis. O «Plano» continuava, mas o ritmo perdera-se de alguma forma, devido à ansiedade. Alternava momentos em que era capaz de escrever quinze páginas numa tarde, com outros, de bloqueio, em que me afundava em gelados, bolachas e o que demais me trouxesse boas sensações.

Era início de julho. Prometera entregar o livro à minha anterior editora por volta do meio de agosto, estava atrasado, mas não lhes dissera nada. Aliás, não falava com eles desde o fim de maio. Curiosamente, telefonaram-me pela mesma altura em que o agente literário me contactou e mostraram-se estranhamente empolgados com o material preliminar. O novo livro, acerca do qual pouca ou nenhuma fé tinham inicialmente demonstrado, ia ser um sucesso. Remeti-me ao silêncio, trabalhei conforme pude e, farto de esperar, agarrei no telefone e contactei o João. Tentei não me mostrar desesperado. Foi marcada uma reunião.

Ele pediu-me que me sentasse enquanto atendia a chamada de um outro escritor. Levantei os olhos do tampo vazio da secretária e procurei focar-me nos sons que chegavam até mim através das janelas entreabertas. A voz do João misturava-se com a dos transeuntes que passeavam pela cidade. O escritório fica localizado no coração do Chiado.

Ele sentou-se defronte a mim e pediu-me desculpa pelo atraso. Tinha entregado o meu manuscrito a um leitor da sua confiança, que se demorara mais do que o previsto, mas que gostara de o ler. Deixara alguns elogios no relatório à minha forma de escrever, dizendo que eu revelava um grande domínio sobre a linguagem, mas era da opinião de que o livro deveria ser integralmente reescrito. Aquela linha narrativa era errada e eu não devia continuar com ela.

Senti um calor repentino subir-me à cara e quase que aposto que deverei ter ruborizado mais do que uma adolescente que acabara de ouvir o primeiro piropo. Algumas gotas de suor formaram-se na testa e o meu estômago contorceu-se, nervoso. Senti-me derrotado.

Acho que o João, percebendo-o, tentou acalmar-me, fazendo-me algumas perguntas sobre o que planeara com o enredo. Mas eu tive apenas uma resposta para lhe dar.

«Não, não vou reescrever o livro».

E continuei, esforçando-me por mostrar segurança:

«Ele apenas leu 100 páginas, o que corresponde a cerca de um quarto do livro», argumentei, referindo-me ao leitor. «Se ele no fim de o ler todo tiver a mesma opinião, então, eu reescrevo-o as vezes que forem precisas, mas eu acho que este é o caminho certo».

O homem que estava sentado perante mim assentiu e perguntou-me quando é que eu achava que seria capaz de o terminar.

«No fim de agosto», contrapus, imediatamente arrependido. Tinha vontade de morder a língua. Se o meio de agosto, a data que prometera à anterior editora, já era impossível de cumprir, como é que com apenas mais quinze dias eu seria capaz de recuperar do atraso?

O meu novo agente literário entregou-me uma cópia do contrato, prometendo que enviaria uma nova versão por correio eletrónico. Discutimos alguns pormenores, entre os quais a editora na qual o livro seria colocado. Ele disse-me que pensara na Cultura Editora. Estavam a formar um dos melhores catálogos de autores portugueses e via-me entre eles.

Os meus pés percorreram a calçada do Chiado o mais depressa que conseguiram assim que cheguei à rua. Tinha alguns telefonemas urgentes para fazer. O primeiro foi ao meu advogado, a quem já tinha explicado ter recebido uma proposta, na altura por confirmar, e que me aconselhara em relação ao que fazer face a uma hipotética desvinculação. O segundo foi à minha agora ex-editora.

A chamada não correu pelo melhor. Acho que os apanhei de surpresa. Fizeram algumas propostas, as quais recusei. Não havia recuo possível. A relação já azedara há muito e isto era inultrapassável. Desligámos de forma cordial, tendo eu prometido que iria honrar com todos os meus compromissos face aos livros já publicados.

Recebi um novo telefonema da parte deles passados uns minutos. Teceram alguns comentários, os quais prefiro não relatar, mas que versaram sobre a minha gratidão.

Desliguei o telefone após uma longa conversa onde fui sempre educado. Apenas uma coisa era importante. Eu tinha um livro para acabar de escrever.

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Diário de Bordo Nuno Nepomuceno #1 – O Plano https://branmorrighan.com/2018/01/diario-de-bordo-nuno-nepomuceno-1-o.html https://branmorrighan.com/2018/01/diario-de-bordo-nuno-nepomuceno-1-o.html#respond Tue, 02 Jan 2018 16:50:00 +0000

O Plano

Eu tinha o plano perfeito. Ia replicar a estratégia que seguira com A Célula Adormecida, reunir a maior quantidade de informação que conseguisse, meter-me num avião e escrever afincadamente até terminar o meu novo livro. As ideias andavam a atropelar-se no interior da minha cabeça, a implorarem-me para que as colocasse na forma escrita. E foi exatamente isso que fiz. Estava na altura de pôr mãos à obra.

Munido de um casaco bem forte, um gorro e uma mochila às costas, aterrei em Londres em meados de janeiro. Via o sol a brilhar lá fora, através das janelas da aerogare, e suspeitava que a temperatura devia estar baixa, mas isso pouco me importava. A minha preocupação era apenas uma — correr. As minhas pernas tinham de ser o mais velozes possível.

Determinado, serpenteei pelos corredores cheios de passageiros, em direção ao cais do comboio. Estava na cidade por apenas um dia, com voo marcado para o início da noite, e dispunha de menos de uma hora para chegar ao centro, onde tinha uma entrevista marcada com o guia da sinagoga sefardita de Bevis Marks. Os meus olhos pestanejaram insistentemente ao ler a informação que constava do placard eletrónico que antecedia a plataforma. «Novo expresso dentro de vinte minutos». O anterior acabara de partir.

De olhos postos no meu relógio, sentado ao lado de uma rapariga que retocava a maquilhagem através de um espelho de bolso, comecei a fazer contas de cabeça assim que o novo comboio arrancou. Não ia chegar a tempo. Era impossível! Ainda teria de mudar para o metro e, já dentro da rede, mudar por duas vezes de linha. Foi então que o Nuno resolveu ser criativo… Como podem calcular, foi uma excelente ideia, não vos parece?

Mais algumas correrias, dois táxis e outros tantos mal-entendidos depois, lá cheguei à City. Homens e mulheres com aspeto executivo passavam por mim na rua, enquanto eu, de mapa na mão, olhava, frustrado, para todo o lado, até localizar o portão de entrada da mais importante sinagoga de Londres. Após uma breve troca de palavras com o segurança, foi-me permitido entrar. Animado, pensei que conseguira. Não poderia estar mais enganado. Era meio-dia e qualquer coisa, mais de três quartos de hora depois do combinado, e um homem, que supus ser o guia, despedia-se de algumas pessoas e fechava o templo judaico. A Santa Congregação dos Portões do Céu estava encerrada para mim.

Sentado no interior da sinagoga de Bevis Marks, bati os pés discretamente contra o soalho de madeira. Como penitência pelo meu atraso, o Sr. Maurice, que afinal aceitou receber-me, pediu-me que esperasse um pouco. A sala de cerimónias estava gelada e os meus pulmões inchavam com o ar frio, mas eu recusava-me a arredar pé. Tinha ido a Londres com o único intuito de conseguir aquela entrevista e nada nem ninguém poderia demover-me de a conseguir. Cerca de quarenta minutos depois, voltei a ver o cabelo louro do meu anfitrião atravessar as portas. Trocámos um breve olhar, o dele claramente desconfiado. Respirei fundo e pensei no «Plano». Peguei no bloco de notas, destapei a caneta e levantei-me, para o cumprimentar. Estava na hora de lhe fazer umas perguntas.

Os meses que se seguiram passaram muito depressa. Regressei de Londres e fiquei de cama durante quase uma semana. Contraíra uma infeção respiratória grave durante a viagem e comecei a atrasar-me. Queria chegar ao fim do mês de fevereiro com toda a pesquisa compilada, pronta a ser usada, mas não o consegui. E lá fui outra vez embarcar num avião. Daquela vez, a viagem era outra, algo mais longa, e por vários dias. Ia ao centro da fé, Jerusalém.

A ida à Terra Santa trouxe um misto de emoções. Senti-me apaixonado pelo exotismo da cidade, pelo modo como as três grandes religiões monoteístas fundiam-se nas ruas exíguas dos bairros históricos, mas ao mesmo tempo dececionado. O «Plano» ameaçava ruir. Só conseguia aproveitar Jerusalém da mesma forma que fizera no livro anterior, com Istambul. E isso não podia ser. Estava a usar a mesma estratégia, mas a obra, essa, eu queria que fosse muito diferente.

As más sensações continuaram e, para o agravar, a minha relação com a editora começou a deteriorar-se. Existiram alguns conflitos, algumas coisas que prefiro não relatar. Mas eu apresentei-lhes a sinopse e prometi-lhes 100 páginas no início de junho, ao que me responderam que «não estou a ver onde queres chegar com isto», apesar de me terem dito para continuar, que sim, que queriam publicá-lo.  A Célula Adormecida fora um sucesso comercial; o Nuno estava a «crescer». Logo, o Nuno era cada vez mais apetecível.

A primavera findou, tal como o processo de preparação para o livro. Tinha ido a Londres, visitara Jerusalém, passara quatro meses a estudar. Os dados estavam lançados. Faltava-me começar a redigi-lo. Queria que fosse um thriller psicológico e que se iniciasse com um homicídio. Uma imagem veio-me subitamente à cabeça. Envolvia um homem e um ritual macabro. E foi assim que cometi o meu primeiro pecado santo — matei um rabino.

Passei o mês de maio a escrever de modo quase febril. Os meus dedos voavam sobre o teclado enquanto enchia páginas e páginas de letras. Todas as ideias que tinha andado a reunir evadiam-se finalmente da minha cabeça, conheciam a liberdade, e o resultado eram aquelas palavras que ocupavam o processador de texto. Não sabia o que o futuro me reservava. Há dois meses que me isolara, que não falava com ninguém da parte da editora. Era apenas eu e o enredo que concetualizara.

Cinco meses depois de ter ido a Londres, terminei de escrever um parágrafo e esbocei um sorriso de través na direção do ecrã do computador. Estava contente comigo mesmo. Acabara de escrever o primeiro dos cinco livros que formam Pecados Santos, Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio. Sentia-me orgulhoso e, apesar das dificuldades, estava cheio de coragem para continuar em frente.

Pousado sobre a secretária ao meu lado no modo de silêncio, o meu telemóvel vibrou. Peguei-lhe e vi do que se tratava. Era um pedido de contacto e vinha da parte de uma pessoa que não conhecia, mas sabia quem era. Chamava-se João e apresentou-se como agente literário.

Eu tinha o plano perfeito.

E de repente, tudo mudou.

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