Diário de Bordo Samuel Pimenta – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Mon, 28 Dec 2020 05:48:11 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.3 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Diário de Bordo Samuel Pimenta – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 [Diário de Bordo, Samuel Pimenta] Eu Pertenço https://branmorrighan.com/2016/01/diario-de-bordo-samuel-pimenta-eu.html https://branmorrighan.com/2016/01/diario-de-bordo-samuel-pimenta-eu.html#respond Sun, 31 Jan 2016 10:29:00 +0000

Eu pertenço

Aqui na aldeia os agricultores e os pastores continuam a acordar cedo para cuidar dos terrenos e do gado, a água continua a correr pelas ribeiras e levadas e os gatos continuam a estirar-se preguiçosamente ao sol. A vida avança como sempre avançou. Como as condições climatéricas têm estado mais favoráveis, decidi organizar-me de forma a escrever de manhã, passar a tarde na rua e voltar a escrever à noite. Aproveitei as tardes para rever alguns lugares importantes para o projecto e para encontrar-me com outros lugares que ainda não conhecia, para que o meu conhecimento da região seja o mais abrangente possível. Foi também nesta semana que ouvi mais histórias sobre a aldeia.

As histórias que tenho ouvido são das mais diversas, mas ilustrativas de como se vive aqui. Há uma certa mística nos lugares, mas também um grande sentido prático e de utilidade das coisas. É por isso que há histórias que permanecem desde tempos remotos, por serem úteis à manutenção da memória e, por isso, da vida. Uma aldeia como esta, cujos habitantes têm vindo a diminuir de ano para ano, só consegue manter a autenticidade e persistir pelas histórias que a povoam, pois são as histórias que estabelecem os elos e são os elos que estabelecem as comunidades e são as comunidades que permitem nova vida, lembrando a tradição dos ancestrais. A forma generosa e entusiasta com que me foram dadas as histórias, algo tão precioso, tão vital, ficar-me-á gravada para sempre na memória. Dar histórias assim é como um ritual iniciático, é como se também eu passasse, efectivamente, a fazer parte deste lugar. Eu pertenço, é essa a sensação.

Foi a minha última semana na aldeia, agora é tempo de regressar ao Ribatejo e terminar o projecto com tudo o que levo daqui. E é tanto o que levo daqui! Depois da minha partida, pouco mudará na aldeia. Os agricultores e os pastores continuarão a acordar cedo para cuidar dos terrenos e do gado, a água continuará a correr pelas ribeiras e levadas e os gatos continuarão a estirar-se preguiçosamente ao sol. É assim desde que Pinheiro é Pinheiro. É assim que deve continuar a ser. 

Pinheiro (Carregal do Sal), 30 de Janeiro de 2016 – 22h12m

Samuel Pimenta

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A janela

Tenho saído muito pouco de casa. Depois de explorar bastante a aldeia e a região, comecei, finalmente, a trabalhar no livro que me trouxe até aqui. Melhor dizendo, comecei a escrever, que já venho a trabalhar neste projecto desde 2015. Por estar tão focado e tão imerso na escrita, posso não sair tanto de casa, mas a presença do cenário que me tem envolvido nos últimos dias é constante, escrevo virado para uma janela que tem vista sobre a aldeia.

Mesmo passando os dias em frente ao ecrã do computador, é impossível dissociar-me de Pinheiro. Não só por ser o lugar onde estou, mas porque Pinheiro é o cenário da história do meu livro. Ficcionar sobre uma aldeia com a qual tenho uma ligação emocional tão forte não tem sido fácil, é necessário tomar muitas decisões, a maior parte delas difíceis. Quando olho pela janela, procuro ver a aldeia com um certo distanciamento, para poder tomar as decisões mais acertadas relativamente ao livro que estou a escrever.

É curioso que vim para Pinheiro para me aproximar mais do lugar sobre o qual quero escrever, mas, em nome de uma maior clareza mental, confronto-me com a urgência de me distanciar dele, mesmo ainda estando aqui. A janela para onde estou virado é ideal para isso: estabelece a fronteira entre mim e a aldeia e coloca-me na posição de espectador. Distancio-me para que me possa aproximar. Contradição ou não, é este o caminho. 

Pinheiro (Carregal do Sal), 23 de Janeiro de 2016 – 16h21m

Samuel Pimenta

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[Diário de Bordo, Samuel Pimenta] A aldeia https://branmorrighan.com/2016/01/diario-de-bordo-samuel-pimenta-aldeia.html https://branmorrighan.com/2016/01/diario-de-bordo-samuel-pimenta-aldeia.html#respond Sun, 17 Jan 2016 12:17:00 +0000

A aldeia

Lá fora, fumegam as chaminés. O ar está tão frio que o fumo parece uma massa espessa que se dobra e redobra, elevando-se vagarosamente, não indo muito além das copas das árvores. Repousa sobre os campos da aldeia, formando uma camada densa como o nevoeiro. A chuva foi embora. Depois de uma semana a chover ininterruptamente, pude ir além dos limites da casa onde estou. O frio não me intimida e aproveitei para explorar mais a aldeia de Pinheiro e as povoações vizinhas. Acordo cedo, durmo em média seis horas por dia, pego na bicicleta e sigo caminho.

Se nos primeiros dias as pessoas estranhavam a minha presença, não é habitual verem estranhos nas ruas, agora já se familiarizaram comigo, sabem quem sou e o que faço aqui. Algumas abordam-me, evocam pessoas da minha família, fazem perguntas. Quando vou ao café, fico muito atento, a ouvir as conversas. São essas conversas que me dão a conhecer mais da aldeia onde nasceram os meus ancestrais.

Pinheiro é uma aldeia típica do Planalto Beirão. Fica entre duas serras, a da Estrela e a do Caramulo, as casas são feitas de pedra, está rodeada por florestas de pinheiros, carvalhos e eucaliptos, é abundante em água, que corre em ribeiras, regatos, rios e enche as minas e os poços, e alimenta-se daquilo que a terra e o gado oferecem. Por estarem tão dependentes dos recursos da natureza, os habitantes de Pinheiro são muito sensíveis ao impacto da poluição sobre as águas ou dos fogos sobre as florestas. Não existem serviços e a distância das grandes cidades, onde os serviços abundam, é uma limitação. A oferta de emprego é muito reduzida na região e as elites esforçam-se por acentuar ainda mais o fosso que as separa do resto da população. É por isso que as gentes daqui estão familiarizadas com a necessidade de partir em busca de uma vida melhor. Há filhos da terra no Brasil, na Suíça, em França e até nos Estados Unidos da América, o que justifica o abandono e a ruína de muitas casas da aldeia. Ainda assim, a aldeia tem vida, tem gente.

Olho para os habitantes de Pinheiro como se estivessem muito próximos da condição dos elementos da natureza, como se vivessem segundo as leis de uma outra linha do tempo, mais lenta, mais rigorosa, mas também mais apaziguadora, desprovida do que é supérfluo. Diria que vivem ao ritmo do crescimento das árvores e das pedras, pois conhecem o valor da espera, necessária para que cresça o fruto na planta ou o cristal na rocha. Conhecem os ciclos da Terra. E esse conhecimento não é recente, é um pacto selado nos primórdios da ocupação deste território, remonta aos cultos pagãos. Isso explica os mitos que tenho vindo a ouvir desde que aqui estou, e outros que me foram passados pelo meu tio António, que contava histórias como ninguém, onde se fala de moiras encantadas a viver dentro das rochas, de aparições e penedos sagrados, de espíritos, demónios, bruxas e lobisomens a vaguear pelas sombras das casas e das árvores.

Aldeias como esta são portais raros para uma das dimensões que mais me fascina, a imaginação. Estar aqui é como pisar um território fronteiriço entre o mundo físico e o limiar do mundo mitológico e da fantasia, onde os humanos, procurando uma fuga para o peso da sua vida terrena e dual, convivem de perto com criaturas fantásticas que dão sinal do caminho do meio, da terceira escolha entre o bem e o mal, o caminho da virtude que a natureza, por ser neutra, tão bem conhece.

Pinheiro (Carregal do Sal), 16 de Janeiro de 2016 – 18h06m

Samuel Pimenta

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[Diário de Bordo, Samuel Pimenta] A nova casa https://branmorrighan.com/2016/01/diario-de-bordo-samuel-pimenta-nova-casa.html https://branmorrighan.com/2016/01/diario-de-bordo-samuel-pimenta-nova-casa.html#comments Sun, 10 Jan 2016 18:02:00 +0000

A nova casa

Uma residência literária é o acto de ir viver para um local durante um determinado espaço de tempo, com a finalidade de escrever, de criar. No meu caso, vim para a aldeia de Pinheiro, no concelho de Carregal do Sal, a terra de onde é originária parte da minha família. Embora conheça a aldeia desde a minha infância, passar pela experiência de viver aqui é fundamental para a escrita do meu novo livro. Conhecer os lugares durante um fim-de-semana é diferente de conhecer os lugares por lá ter vivido durante algum tempo. Era imperioso estar aqui. Cheguei no dia 3 de Janeiro e fico até ao fim do mês. E desde que cheguei, tenho-me deparado com aquele que é o primeiro desafio para quem escreve: o lugar onde se escreve, a casa.

A primeira semana tem sido, literalmente, de adaptação à nova casa onde estou a viver, aqui na aldeia. Em Alcanhões, vila do concelho de Santarém, onde vivo, estou habituado a escrever na minha casa, com a qual estou mais que familiarizado, mas desde que cheguei a Pinheiro tenho-me vindo a adaptar a um novo espaço, procurando ambientar-me às divisões que podem potenciar o acto criativo. Acabei por escolher o ponto mais alto da casa, onde há uma secretária com uma janela virada para a Serra do Caramulo, de onde vejo as casas da aldeia, um souto e o pinhal ao longe. É o cenário ideal para o exercício da escrita, inspirador e apaziguador, mas as casas têm outros desafios. Estou habituado a interromper abruptamente a escrita, levantar-me da secretária e andar pelas divisões da casa, ponderando ideias em voz alta, incorporando personagens e olhando para a janela que tiver mais próxima de mim, preciso de horizonte. Mas também danço. Sim, interrompo regularmente a escrita para dançar, para que as palavras bloqueadas se libertem dos meus músculos, do meu corpo. É que a escrita, antes de ser uma arte do intelecto, é uma arte corporal, vem do corpo, passa por ele. Em última análise, porque passa pelas mãos. No meu caso em particular, preciso de muito mais do que as mãos para escrever, preciso do meu corpo completo, e por isso dançar ajuda-me a escrever melhor, a trazer a palavra à superfície. Acaba por ser uma forma de meditação, também. Ora, para poder fazer tudo isto na nova casa, tenho de me adaptar aos espaços, conhecer quais os seus limites e que cantos me são mais confortáveis. Na minha casa de origem, por exemplo, chego a descer e a subir as escadas à noite sem a luz ligada, posso fazê-lo porque conheço a casa e a casa conhece-me, temos um pacto. Ou então posso dançar de olhos fechados, porque sei onde termina o chão e começa a estante. Aqui, ainda estou em processo de conhecer a casa, de selar um acordo com ela. Já tentei descer as escadas sem a luz ligada, num daqueles momentos em que interrompo a escrita abruptamente para ir à cozinha e voltar a subir outra vez sem ter feito especificamente nada, para além de subir e descer escadas; é que por vezes tenho de largar tudo o que estou a fazer e sair, inclusive, do espaço em que estou a criar, nem que seja por um minuto, para voltar outra vez e pegar no texto de forma diferente. Claro que não consegui descer as escadas sem luz, tive de a ligar, ou corria o risco de cair. Mas estou a adaptar-me à nova casa. O facto de ser da família ajuda.

É curioso que, mais do que o espaço físico, tem sido o espaço sonoro que me traz mais desafios. Cada casa tem uma respiração distinta, um som, assim como um cheiro. Aqui a casa cheira a Outono, um misto de terra com feno molhado. Os sons que vêm do exterior não os ouço, além da chuva e do vento. E ainda bem, já que sou hipersensível ao som, preciso ou de silêncio ou da música apropriada. Mas os ruídos da casa têm-se manifestado. A madeira a estalar, o frigorífico, o relógio. No início, por eu não estar familiarizado com eles, entrava de imediato em estado de alerta, tentando entender qual a sua origem. Mas agora quase nem dou conta, posso dizer que a nova casa já me acolheu. Julgo que já me observa, curiosa, perguntando-se quem é e o que faz esta figura bizarra que lhe entrou portas adentro.

Pinheiro (Carregal do Sal), 10 de Janeiro de 2016 – 00h12m

Samuel Pimenta

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Diário de Bordo da residência artística do escritor Samuel Pimenta em Pinheiro no BranMorrighan https://branmorrighan.com/2016/01/diario-de-bordo-da-residencia-artistica.html https://branmorrighan.com/2016/01/diario-de-bordo-da-residencia-artistica.html#respond Sun, 10 Jan 2016 12:21:00 +0000 Pau Storch Photography

É com muito orgulho que acompanho mais uma conquista do escritor Samuel Pimenta e é com uma gratidão ainda maior que anúncio que o Samuel aceitou ter uma pequena residência virtual aqui no BranMorrighan para nos ir contando como está a ser a sua experiência em Pinheiro, local onde vai viver este mês. Passo a explicar.

O Samuel ganhou a Bolsa Jovens Criadores 2015 no fim de Outubro, atribuída pelo Centro Nacional de Cultura. Esta bolsa apoia a escrita de um novo romance, cuja história irá decorrer na aldeia de Pinheiro, precisamente onde se encontra agora. Um dos requisitos da bolsa era passar um mês na aldeia, em contexto de residência literária/artística, para recolha de informações e produção escrita. 


De alguma forma, olho para este projecto como uma forma de me religar aos meus ancestrais e de homenagear e promover uma região a que estou ligado.

Assim sendo, a cada Domingo, começando hoje, irei publicar os seus textos sobre a sua experiência. Acho que esta partilha é muito generosa por parte do Samuel, até mesmo inspiradora, e estou muito curiosa por acompanhar o seu percurso neste processo. Mesmo para jovens aspirantes a escritores, esta pode ser uma boa referência. Eu acredito que a personalidade e a voz única da escrita do Samuel ainda vai dar muito que falar. Fiquem atentos, daqui a pouco sai o primeiro texto! 

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