Emanuel Madalena – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Wed, 23 Dec 2020 20:11:16 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.2 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Emanuel Madalena – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 [Cinema] Opinião: Tangerinas (Mandariinid), de Zaza Urushadze https://branmorrighan.com/2015/07/cinema-opiniao-tangerinas-mandariinid.html https://branmorrighan.com/2015/07/cinema-opiniao-tangerinas-mandariinid.html#respond Sun, 05 Jul 2015 13:58:00 +0000

A guerra pode ser retratada com o escaldão de toneladas de material bélico a explodir por todos os lados ou do sangue das batalhas na pele frágil do homem, incapaz de conter a força do fogo. Por outro lado, trazendo-nos à margem da história mas ao pé do realismo, a guerra pode ser encontrada morna, num quotidiano que tenta avançar por entre os destroços, resiliente, apesar do campo de batalha acontecer à porta de casa – e é desta forma que a vemos em Tangerinas. Nos anos 90, entre a Geórgia e a região separatista da Abcásia, no topo norte da sempre problemática Transcaucásia, Ivo, um velho emigrante oriundo da Estónia, vê-se no meio de uma guerra que não lhe diz respeito. Ao contrário dos outros emigrantes, ainda não voltou para o seu país de origem porque espera que as tangerinas amadureçam para que possam ser colhidas, e entretanto constrói as caixas de madeira que as carregarão dali para fora. As árvores pertencem ao seu vizinho Margus, e apenas estes dois homens ainda se enraízam por aquelas frias paragens – o que é irónico, já que a guerra se faz pelo domínio dessa mesma terra. Mas os soldados não se importam com as tangerinas nem com nada que nasça do chão. Preocupam-se apenas com aquilo que os separa, as diferenças que só se vêm no colectivo. É este o pressuposto essencial do filme – no essencial, cada uma daquelas pessoas que combatem uns com os outros são tão diferentes dos seus próprios pares como semelhantes aos indivíduos com os quais guerrilham.

Quando dois veículos de lados opostos se cruzam perto das suas casas e se envolvem numa luta sangrenta, Ivo e Margus tratam de enterrar os mortos e Ivo de acolher os feridos, um guerrilheiro tchetcheno e um georgiano – inimigos mútuos, portanto. O tchetcheno melhora com mais rapidez e promete matar o georgiano, mas Ivo proíbe que isso aconteça dentro de sua casa. Por respeito ao velho, que lhe deu (e ao outro ferido) toda a ajuda que podia, entre alimentação e cuidados médicos, o guerrilheiro concorda, e enquanto os feridos estão em convalescença institui-se uma espécie de cessar-fogo individual e provisório. A questão é que a guerra é impossível quando se começa a conhecer verdadeiramente o outro, e por isso, à medida que vão ouvindo os argumentos de Ivo para a concórdia, e à medida que se conhecem e entreajudam, os dois inimigos descobrem a humanidade comum, e começam a perceber o absurdo dos seus primordiais desejos de vingança, uma vingança abstracta e colectiva que não pode existir quando se partilham as refeições e se conhece o nome do outro.

Esta produção estoniana (com co-produção georgiana), que foi a candidata da Estónia ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro – conseguindo a primeira nomeação para o país, merecidíssima – é um pequeno mas incrível filme construído com um sentido de empatia e de propósito assinalável, sem peças soltas na sua linearidade narrativa, bastante compacta, mas com espaço para respirar entre a contenção dramática. Sem ser formulaico, pode vestir a pele de manifesto antiguerra e ser exemplar, mas a sua sensibilidade e minúcia, embora sempre inteligível, faz com que Tangerinas seja muito mais do que isso. No final, a força da história, com agá grande, é maior do que a do indivíduo, e a vontade colectiva sobrepõe-se ao crescimento individual, mas subsiste um testamento de compreensão e aceitação, a prova do poder da empatia e da partilha, que espera sempre por uma oportunidade para quebrar as diferenças ilusórias entre os povos.

Emanuel Madalena

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[Cinema] Opinião: Divertida-mente (Inside Out), de Pete Docter e Ronnie del Carmen https://branmorrighan.com/2015/06/opiniao-divertida-mente-inside-out-de.html https://branmorrighan.com/2015/06/opiniao-divertida-mente-inside-out-de.html#respond Tue, 23 Jun 2015 11:04:00 +0000

As notícias da falta de originalidade em Hollywood foram manifestamente exageradas. É verdade que os grandes estúdios já só apostam em sequelas, remakes, e filmes de super-heróis (com as suas próprias sequelas e remakes), mas isso só faz com que tenhamos de procurar noutro lado. Até os novos lançamentos da Pixar – que, principalmente depois de ter sido comprada pela Disney, pode ser chamada de “grande estúdio” – caíram no marasmo das sequelas boçais e das fórmulas desinspiradas, nos últimos anos, depois de verdadeiros clássicos modernos como Ratatui, WALL.E, e a trilogia Toy Story, uma excepção que confirma a regra das sequelas, e que, discutivelmente, é uma das únicas trilogias da história do cinema em que os filmes são cada vez melhores. Com Inside Out (não vou usar o estúpido título português), a Pixar volta a criar uma pérola, ultrapassando as expectativas, pulverizando-as – e à concorrência – enquanto sobe com elegância até à estratosfera da inventividade e prova uma vez mais que a criatividade ainda é o maior truque na manga do cinema enquanto entretenimento.

Mesmo o mais empedernido crítico verá criatividade e uma centelha de originalidade em Inside Out, mesmo que certos efeitos, meios e fins sejam clássicos. Acompanhamos a vida de Riley, uma menina pré-adolescente que tem de mudar de cidade com os pais, o que lhe trará alguns problemas, mas, principalmente, acompanhamos a sua vida interior, de uma forma deliciosamente literal, na “sala de controlo” da sua mente, onde cinco emoções personificadas – a Alegria, Tristeza, Repulsa, Medo e Raiva – controlam aquilo que Riley sente. Este dispositivo lembra-nos a antropomorfização da série “Era Uma Vez a Vida” e é extremamente eficaz e divertido, mas o que torna o filme especial é a forma como isso é usado, não só como metáfora para o funcionamento da mente humana (bastante simplificado, claro, mas de outra forma não seria trabalhável), mas como alegoria do crescimento, do fim da infância, materializando-se em destruição, reconstrução e evolução naquele mundo interior. Tudo isto é servido num festim visual com o apuro de sempre, neste caso ainda mais inventivo e necessário, dada a origem, puramente imaginada, daquele outro universo.

Aos poucos, depois da aparente inconsequência inicial – a ideia das emoções personificadas é quase pueril -, começa a formar-se um incrível exemplo das mais universais dores de crescimento, e o filme acaba por ir ganhando cada vez mais precisão e sensibilidade, entre sucessivas referências da psicologia que se tornam literais na jornada de duas emoções, a Alegria e a Tristeza, pela mente de Riley. A forma como o filme se justifica a si mesmo, usando as suas próprias premissas, é sempre entusiasmante.

No final, ficamos com a sensação de termos visto um filme surpreendentemente adulto – mais adulto do que qualquer filme de super-heróis, pelo menos – escondido no meio dos “desenhos animados”, e temos motivos para isso. Na verdade, as crianças poderão compreender o significado do crescimento emocional de Riley, mas não se podem rever da mesma forma que os adultos, porque, simplesmente, ainda terão de passar por isso. Além disso, o filme tem todo um nível lúdico sobre a psicologia que necessita de algumas referências de cultura geral sobre o tema. Talvez seja por isso, para “garantir” o público mais jovem, que o filme tem mais peripécias narrativas e comédia slapstick do que necessitava, mas isso só seria um problema para as atitudes mais macambúzias. Partindo do princípio de que, por um lado, se escapa facilmente ao kitsch da segunda lágrima, e que, por outro, não se é demasiadamente cínico, não há nada para desgostar em Inside Out. Ainda assim, o filme passaria bem sem recorrer tanto a alguns estereótipos de género, mas os gags a que dão origem acabam por ser engraçados, e por isso não é por aí que fica estragado o arranjo (ainda hei-de voltar ao tema da “suspensão da indignação” para a comédia, à semelhança da “suspensão da descrença” para a ficção).

Vista a versão portuguesa, não há nada a apontar no trabalho de dobragem – como vem sendo habitual -, mas também nada se pode dizer sobre a versão original, com um conjunto de actores que promete dar ainda mais cor às personagens. Algo se perde sempre na tradução, e neste caso isso nota-se especialmente bem em certos “trocadilhos” que se perdem – a Tristeza é azul por causa do “blues”, do “feeling blue”, por exemplo, e existe um “comboio do pensamento”, literal, por causa da expressão “train of thought”. Nada a fazer a este respeito, mas não se perde grande coisa. Chega-se a ganhar, aliás, com a utilização da palavra “saudade”, transmitindo na perfeição a mistura de emoções que o filme preconiza, por essa tristeza de hoje só ter sido possível por ter havido a alegria de ontem. E vice-versa, como tão bem é mostrado em Inside Out.

A seguir, viria a puberdade e a adolescência de Riley, e, como se interroga a ingénua Alegria no fim do filme, o que poderia correr mal a partir dos 12 anos? Vindo de quem nos deu as sequelas de Toy Story, pode-se esperar tudo, até um Inside Out 2.

Emanuel Madalena

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[Cinema] Opinião: Timbuktu, de Abderrahmane Sissako https://branmorrighan.com/2015/06/cinema-opiniao-timbuktu-de-abderrahmane.html https://branmorrighan.com/2015/06/cinema-opiniao-timbuktu-de-abderrahmane.html#respond Sat, 20 Jun 2015 10:47:00 +0000

Como vem sendo assinalado, o fundamentalismo religioso em tempos de globalização tem características emergentes. Dentro dessas novidades, a mais relevante não é o uso das novas tecnologias para a transmissão da propaganda, mas o hiato que se sente entre aquilo que se apregoa e aquilo que, no fundo, se acredita. O conhecido filósofo esloveno Slavoj Žižek fala disto muito claramente – é como se os fundamentalistas, conhecendo o estilo de vida ocidental e sabendo-o agradável, desejando-o, sentissem uma contradição moral e uma frustração tão terrível que, por causa disso, resolvessem atacar esse mesmo estilo de vida. No caso dos jihadistas do autoproclamado “Estado Islâmico”, isto é levado ao extremo – a um extremo que o filme Timbuktu, ainda em exibição em Portugal, demonstra bem.

Filmado na Mauritânia, o filme passa-se numa simulação de Timbuktu (que fica no vizinho Mali), controlada pelos jihadistas. Numa cidade já anteriormente muçulmana e de costumes religiosos bem arreigados, a chegada do EI significa um conjunto insuportável de proibições para os seus habitantes – proíbem a música, por exemplo, ou o futebol, os apertos de mão, e até o estar-à-porta-de-casa-sem-fazer-nada. Mas o poder das armas não consegue vergar o espírito daquelas pessoas, por isso passam a jogar futebol “sem bola” (numa cena esplêndida, saliente-se), por exemplo, ou a tocar música com louvores religiosos, para confundir a censura. Numa série de cenas entre o sério e o anedótico, vemos então o quase desespero dos jihadistas, afinal homens ridículos que também sucumbem ao “vício”, na tentativa de impor uma ordem abstracta, fruto de interpretações e vontades aleatórias.

Agora, os habitantes de Timbuktu têm telemóveis e discutem futebol, mesmo que ainda vivam em tendas no meio do deserto. Esta contradição é facilmente admissível, mas simboliza o problema “moral” que os fundamentalistas religiosos encontram nos ecos de modernidade que inevitavelmente chegam aos valores dum povo que, para começar, nem sequer deixava de ser bastante religioso. A reacção do EI pretende um retrocesso a um status quo que nunca existiu, enquanto, como o filme nos põe a pensar, a maior “maldade” está na cabeça dos jihadistas, tão frustrados e retrógrados.

Claro que não é só isto que interessa no filme. Há deveras uma linha narrativa que faz disto tudo apenas a circunstância do enredo, mas até essa história reforça as ideias, demasiado prementes e actuais. Entretanto, é tudo filmado com imensa elegância e beleza por Abderrahmane Sissako, e só por isso já se torna difícil resistir ao exotismo de tais paragens. 

Diz-se que o filme humaniza os invasores, e é verdade, mas não os iliba, mostrando as atrocidades levianas que cometem. E este oxímoro das “atrocidades levianas”, a ser considerado, é de propósito. No fim de contas, a balança não se mexe, e o peso anedótico não faz sequer levantar um pouco o prato do horror, porque só serve para ilustrar que os jihadistas são monstros, mesmo sendo humanos. Monstros humanos, portanto – e aqui ninguém encontrará, certamente, qualquer paradoxo.

Emanuel Madalena

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[Cinema] Opinião: Enquanto Somos Jovens (While We’re Young), de Noah Baumbach https://branmorrighan.com/2015/06/cinema-opiniao-enquanto-somos-jovens.html https://branmorrighan.com/2015/06/cinema-opiniao-enquanto-somos-jovens.html#respond Thu, 11 Jun 2015 15:27:00 +0000

Não só no cinema, a acumulação de expectativas costuma trazer uma desilusão quase sempre natural, como efeito secundário de algo que, para começar, nem sequer é assim tão prazeroso. Mas isso não impediu a dose nada homeopática de expectativa que surgiu aquando do anúncio de uma nova colaboração entre Noah Baumbach e Greta Gerwig (fun fact: por incoincidência, estão amantizados), depois do maravilhoso filme de culto, escrito com a preciosidade de dez citações possíveis por minuto, interpretado por Gerwig com o refulgir de mil sóis, e tão eloquentemente geracional, Frances Ha. Quem não viu, corra a ver, imune à tal expectativa que acabei por criar agora, o que francamente não se admite.

Entretanto, soubemos o título desse porvir cinematográfico – Mistress America (e tentamos ultrapassar a desconfiança instintiva por títulos que incluam “América” ou “americano”) – e que seria um filme (muito?) mais cómico do que o anterior, quando o charme maior de Frances Ha estava precisamente no equilíbrio perfeito entre o humor e o que por trás dele se escondia – todas as angústias e dores de crescimento que, por serem tão banais, tendem a ser universais. Entretanto, começaram a sair as primeiras críticas, muito positivas, e voltámos a agarrar a expectativa com segurança.

Mas o tema da opinião não é nenhum destes dois filmes, mas um terceiro – Enquanto Somos Jovens – que serve de intervalo a essas colaborações com Greta Gerwig e estreia agora em Portugal. Como acontece normalmente nos filmes realizados por Noah Baumbach, desde A Lula e a Baleia ou Greenberg, por exemplo, é o realizador que assina o argumento, a solo, com a excepção já referida.

O motor da história é muito simples: em Nova Iorque, um casal nos seus 40 e tal anos, moderno e cosmopolita, conhece um casal mais jovem (por volta dos 25 anos) que aparenta ser ainda mais moderno e cosmopolita, mas numa versão hipster – hipster até ao tutano -, revivalista e irresponsável. É gente que escreve numa velha máquina de escrever, que não usa computador nem está no Facebook, que vê filmes em VHS em vez de usar o Netflix. O casal mais velho, na eminência das opções e responsabilidades da meia-idade – como ter ou não filhos e a sensação de estagnação – vê nestes dois jovens um escape e uma oportunidade de experimentarem aquilo que ficou por experimentar e aquilo que nem sequer sonhavam. A perspectiva é sempre a do casal mais velho, acompanhando o fascínio e a atracção que sentem pelos jovens, com o seu estilo de vida e os seus valores bastante diferentes. Deste contraste, por vezes contra-intuitivo (o casal jovem é que tem uma colecção de vinis, por exemplo, em contraste com os “velhos” cd’s), e da dificuldade em acompanhar a energia, inquietude e referências dos jovens, surge a maior parte das peripécias do filme, que vai desenrolando com segurança uma narrativa essencial ao tom do filme, entre conspirações e desentendimentos. Tudo evolui de forma ponderada, que só no fim parece óbvia, e a “necessidade” de um enredo é bem resolvida ao trabalhar a temática do envelhecimento, sim, mas também da autenticidade, que é, no fundo, a deriva daquelas pessoas – e um tema ecuménico, talvez ainda mais premente hoje em dia. No fim de contas, há aqui um comentário sobre o choque de gerações e a inevitabilidade da mudança, em que a paz, nessa guerra contra moinhos de vento, depende mais de uma aceitação pessoal e íntima do que de uma revolta contra o mundo.

Isto tudo é servido pela visão asséptica de um mundo de privilégio, mas estes “white people problems”, apesar de desaguarem numa normatividade desapontante, conseguem fugir (por pouco?) ao bocejo hollywoodesco devido à excelência da escrita. Tivesse mais vontade de sujar as mãos, e Enquanto Somos Jovens poderia ser um grande filme, mas mesmo assim não desaponta – e, para sermos justos, não parece ser esse o traço de carácter cinematográfico que Baumbach procura com mais afinco, de qualquer forma. O filme fala-nos com uma linguagem reconhecível ao cinema, mas fá-lo com um hálito fresco, embora também ele reconhecível, perfumado pelo ar-dos-tempos. Já não é pedir pouco que o faça dessa forma, juntando a isso uma inegável capacidade de entreter.

É natural, portanto, que o ponto forte do filme seja o argumento (costuma ser sempre um deles, aliás, nos filmes que valem a pena), mas também temos de referir o trabalho astuto dos actores. Dificilmente conseguimos pensar num actor melhor do que Ben Stiller para interpretar o humor irónico e subtil deste argumento, mas também as energias e angústias do personagem – e a forma como se enerva e vocifera, tentando levar a sua avante, mas com o seu olhar aflito e gentil, é sempre adorável. Stiller costuma desabrochar nestes papéis. Já em Greenberg, por exemplo, se percebia o seu à-vontade, mas o personagem restringia-lhe os movimentos, que aqui, por outro lado, são ampliados. Por outro lado, Adam Driver mostra mais uma vez porque é um dos mais promissores actores de uma nova e nada peculiar geração. Há nele esperança. O seu hipster está perfeito. Por último, e não sem alguma surpresa, vemos que o lado feminino dos dois casais não é tão forte, apesar do potencial das suas narrativas, e nada disto é culpa de Naomi Watts e Amanda Seyfried, que estão à altura da companhia. O cinema de Baumbach ganha bastante com a força das personagens femininas, como se só assim lograsse completamente o seu potencial. Embora não seja esse o principal espartilho do filme, mas também por isso, e depois deste delicioso mas curto aperitivo, esperamos ainda mais ansiosamente o Mistress America e os próximos passos de Baumbach.

Emanuel Madalena

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[Cinema] Opinião: Deus Branco (Fehér Isten), de Kornél Mundruczó https://branmorrighan.com/2015/05/cinema-opiniao-deus-branco-feher-isten.html https://branmorrighan.com/2015/05/cinema-opiniao-deus-branco-feher-isten.html#respond Thu, 28 May 2015 21:52:00 +0000

Só o título já é todo um programa. Este filme húngaro (co-produzido também na Alemanha e Suécia) é uma grande metáfora, ou várias, sobre a opressão, sobre o poder de um “deus” — o homem branco como opressor máximo, quer seja no especismo, no racismo, no sexismo, etc. Neste caso, cria-se tanto uma alegoria como uma retórica concreta, em que o grupo oprimido são os cães, nomeadamente os rafeiros, que não pertencem a raças puras, e que por isso não têm direitos, onerando, além disso, os seus donos com mais deveres. É o caso de Hagen (interpretado pelos gémeos Luke e Body), o cão de Lili (Zsófia Psotta), uma adolescente de treze anos que vai passar uma temporada com o pai, levando Hagen com ela. O pai de Lili, inspector veterinário num matadouro, odeia Hagen e não o quer em casa, e acaba por deixá-lo à beira da estrada, abandonando-o, com Lili a assistir, impotente, na cena mais dilacerante do filme. Depois de breves cenas iniciais de conflito com o pai e de testemunho da amizade e do respeito entre Lili e Hagen, e a partir do abandono, acompanhamos tanto os esforços de Lili para reencontrar Hagen como as “aventuras” (desafortunadas) do próprio cão pelas ruas da cidade.

É a partir daqui que o filme começa a falhar. Já no início, a acompanhar o intrigante título, surge uma epígrafe de Rilke — “Tudo o que é terrível merece o nosso amor” — que baralha os dados, e essa confusão cresce à medida que o filme avança por caminhos curtos, incompletos, ou, por vezes, injustificados. Depois de ser abandonado, Hagen encontra diversas personagens, vilões caricaturais (que, à partida, funcionam na fábula), dos quais arranja forma de se escapar, inserido, por vezes, numa imensa colónia de outros cães rafeiros na mesma situação, reunida nuns arrabaldes da cidade. Encontrará, por exemplo, um homem que o prepara para lutar com outros cães, e, mais tarde, passará pelo cativeiro de um canil, de onde escapa para liderar a rebelião, qual Espártaco, cheia de sangue derramado por ambos os lados. Percebe-se a vingança e cumpre-se a alegoria, mas talvez não se aplauda a violência e a insistência em separar cães e humanos em lados opostos. Talvez um epílogo convincente resolvesse alguma coisa, mas o final, algo aberto, não traz nenhuma solução, mesmo que traga algum alento.

Admito que eu não seja a pessoa indicada para falar sobre este filme. Algumas das cenas são-me quase insuportáveis (e nem sequer me refiro às cenas com os cadáveres das vacas, no matadouro), e a violência mostrada no filme, mesmo simulada (obviamente), causa-me uma repulsa que, admito, pode ter contaminado todo o filme. A realização é muito eficaz, com um uso regrado da câmara subjectiva que só contribui para a empatia, tal como o som, usado quer para aumentar o realismo como para cobrir aquilo que acontece, misericordiosamente, fora do ecrã (embora soe um pouco a falso na cena da luta entre cães — aparentemente, os gemidos, uivos e rosnadelas, bastante realistas, foram gravados por vozes humanas!). Só que é essa eficácia, precisamente, que torna tudo tão doloroso. Dei por mim a pensar: “Não preciso de ver isto. Não queria ver isto”. Assim como não preciso de ver fotografias de animais estropiados, por exemplo, partilhadas nas redes sociais com a melhor das intenções, claro, mas também com aquilo que só pode ser masoquismo. A própria ideia de mostrar uma frieza e um calculismo inaudito nos cães, ainda que possa servir a fábula, é levá-la um pouco longe demais, na minha opinião. Talvez seja até contra produtivo, podendo dar a certas (in)sensibilidades motivos a favor do status quo opressivo.

Mesmo assim, tento ser justo. Deus Branco é interessante e é “um filme do caraças”. Consegue ser empolgante e emocionante, embora de uma forma óbvia, notando-se o esforço (que não é muito, dado o tema). Objectivamente, falha também nos tais caminhos que ficam curtos e inconsequentes, noutras camadas que se ficam pela rama, como a da relação pai-filha e, até, a de uma incipiente história de amor adolescente. Os diálogos e a pouca dimensão das personagens secundárias não ajudam, de qualquer forma, apesar do esforço dos actores.

O tom do final é belo e apaziguador, mesmo sem solução, e, em última análise, revela o que mais interessa em Deus Branco — a força da metáfora, o protagonismo canino, que se saúda, e a beleza com que certas cenas são filmadas. Nesse aspecto o filme é muito bem-sucedido, com uma rara intencionalidade e, ao mesmo tempo, naturalidade nos cães protagonistas (qual Lassie, qual quê!). Para a produção de Deus Branco foram precisos quase 300 cães, o que dá logo ideia da dimensão das cenas. No fim da rodagem, a produção organizou uma campanha e todos os cães foram adoptados. Nem que seja só por isso, já valeu a pena.

Emanuel Madalena

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[Cinema] Opinião: Respira (Respire), de Mélanie Laurent https://branmorrighan.com/2015/05/cinema-opiniao-respira-respire-de.html https://branmorrighan.com/2015/05/cinema-opiniao-respira-respire-de.html#respond Fri, 22 May 2015 18:40:00 +0000

O início de Respira insere-o logo num território muito confortável e reconhecível a um certo “tom” do cinema francês: o ambiente suburbano e o contexto escolar. Seguimos Charlie (Joséphine Japy) pela sua rotina entre a escola, onde Charlie encontra o seu espaço, e a casa, onde a mãe lida com o afastamento do marido (e a própria Charlie, claro, com o do pai). Esta rotina, já de si frágil, leva um abanão com a chegada de uma nova aluna, Sarah (Lou de Laâge), mais desassombrada e experiente que Charlie. (Se fosse numa aldeia portuguesa, em Agosto, Sarah seria “a prima da França”, sofisticada e misteriosa. Na França têm de ter outro nome, como a salada russa na Rússia… Mas adiante.)

Vai surgindo entre elas uma amizade intensa, muito íntima, desequilibrada pelo fascínio que Charlie tem por Sarah. A ligação cresce rapidamente, e ainda mais se desenvolve numas férias passadas com a tia e a mãe de Charlie, entre os chalés, na margem de um sossegado lago, enquanto ao mesmo tempo começa a ser posta à prova. Uma relação como esta, cúmplice, algo sensual, quase amorosa (não acedemos à mente de Charlie, por isso não podemos dizer mais), trará também um outro lado, quando ela percebe que nem tudo é um mar de rosas e que nem a amiga nem a sua amizade são assim tão perfeitas. É assim que o filme vai mudando de tom e descola, entre as férias assombradas por dúvidas e o regresso à escola, assombrado, também, mas por certezas – a certeza de que, afinal, Sarah é calculista e manipuladora, que não é bem quem mostrava ser. A vida de Charlie começa a ficar negra, a ser feita negra por Sarah, que também vive asfixiada por uma vida difícil.

Tão relevante para a agenda mediática destes dias, infelizmente, este filme é uma boa ilustração do bullying psicológico que acontece na escola, e de como as vítimas surgem de uma forma silenciosa, no próprio círculo de amigos. Eventualmente, nada é o que parece nestes personagens, e a própria narrativa tenta ser honesta com os dois lados, fazendo com que nem sequer haja necessidade de instituir dois lados. De vítima, Charlie passará a agressora, para se defender, mas não me alongo em pormenores (de qualquer forma, je suis Charlie!). Em último caso, assistimos ao esforço que faz para crescer e aprender a ter controlo sobre a sua vida, e isso leva a um final um pouco estridente e definitivo demais, mas ainda assim apropriado ao crescendo do filme, e aos high stakes que a história cria (por favor, digam-me um bom equivalente em português para high stakes).

Respira é um pequeno filme em âmbito, o que faz com que não se atire para fora de pé, e por isso é grande em foco e inteligência, na forma como trabalha o material, com a preciosa ajuda da impecável interpretação das duas jovens actrizes. O argumento é escrito a partir de um romance de Anne-Sophie Brasme (aparentemente bem sucedido), por Julien Lambroschini e Mélanie Laurent, a própria realizadora, conhecida mais como actriz – foi a Shosanna de Sacanas Sem Lei, por exemplo, e Mary, a namorada de Adam, o historiador d’O Homem Duplicado. Este filme é a segunda longa-metragem de Mélanie Laurent, realizado com eficácia e subtileza q.b., sempre em nome das personagens, da história e do ambiente.

O cinema francês não pára de encontrar novos protagonistas, gente que sabe sempre o que faz, mesmo em filmes mais pequenos, como Respira, sobre estas questões tão próximas, suburbanas e escolares, mas em último caso universais, necessárias, trabalhadas com uma profundidade psicológica e uma sensibilidade bastante airosa, bem oxigenada, nada asfixiante, com espaço para respirar (ao contrário desta longa frase).

Emanuel Madalena

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[Cinema] Opinião: Ex Machina, de Alex Garland https://branmorrighan.com/2015/05/cinema-opiniao-ex-machina-de-alex.html https://branmorrighan.com/2015/05/cinema-opiniao-ex-machina-de-alex.html#respond Thu, 14 May 2015 21:00:00 +0000

Pelo título do filme e estética do cartaz poderíamos achar que Ex Machina é um thriller de ficção científica banal. É algo mais especial do que isso, na verdade, e ao vermos o nome do realizador e argumentista, o britânico Alex Garland, não esperamos outra coisa – principalmente se nos lembrarmos que Garland escreveu, por exemplo, o acutilante 28 Dias Depois e o muito aceitável Nunca Me Deixes, a partir do distinto romance de Kazuo Ishiguro. Ex Machina partilha o coração com este último, ao serem ambos baseados em conceitos de pura ficção científica (inteligência artificial, neste caso, e clonagem, no Nunca Me Deixes), mas trabalhados com mais cérebro do que músculo, a partir de um ponto sensível e empático que é raro no género. 

O filme começa com Caleb, um jovem programador numa empresa que faz lembrar a Google, a ganhar uma lotaria – uma espécie de “bilhete dourado” para uma fábrica de chocolate – que lhe dá direito a passar uma semana com Nathan, o presidente deste alter-Google, génio absoluto e eremita, refugiado numa luxuosa mansão no meio das montanhas, inacessível. Quando lá chega, Caleb percebe que foi escolhido para efectuar o teste de Turing à mais recente e secretíssima invenção de Nathan: Ava, uma andróide dotada de inteligência artificial. Nos primeiros 15 minutos o filme fica, assim, mais-que-lançado.

O que se segue divide-se entre as sucessivas interacções entre Caleb e Ava, e entre este e Nathan, adensando um enredo que me escuso a desenvolver. Nada disto é fundamentalmente novo no cinema, e não tem de o ser, porque não deixa de causar boa impressão ao ser tão certeiro, uma tentativa de aspecto definitivo. Além disso, Ex Machina é hábil na forma como vai modificando aos poucos as premissas da narrativa, daquilo que está em jogo, servindo-se de um argumento bem construído, que consegue passar a sensação – habitual na melhor ficção científica – de que seria, à partida, impossível de ser escrito, ou pelo menos impossível de ser escrito de uma forma elegante, sem ser (muito) idiota. Ao vermos o Ex Machina, lembramo-nos facilmente do A.I. – Inteligência Artificial (que é algo idiota), do Blade Runner, e até do Frankenstein, mas principalmente do recente Her, embora este filme não seja tão charmoso e se foque mais nas possibilidades e na filosofia da tecnologia.

De resto, convém referir a ajuda das interpretações inspiradas, essenciais ao filme, e da banda sonora atmosférica de Ben Salisbury e Geoff Barrow (dos Portishead, este último), tão bela como ominosa. Ex Machina é no mínimo um entretenimento mais agradável do que o grau zero, se não negativo, habitual em empreitadas do género. Prefiro sempre o suspense clássico e refinado à acção acéfala, e a observação delicada e psicologicamente rica deste filme, além disso refrescante, à grandeza forçada de outros, e por isso o aconselho.

Ex Machina, que ainda está em exibição em cinemas portugueses, é um filme maduro e fascinante, que mantém sempre um nível agradável de discussão e especulação sobre o tema, sem entrar em preciosismos, preferindo trabalhar com ideias e com uma história cativante em vez do fogo-de-artifício habitual. Isso não impede, no entanto, que o filme seja visualmente rico e marcante, e até que utilize efeitos especiais q. b., mas estes são limitados a fins específicos e, em último caso, servem sempre a própria história, e não o contrário. Alex Garland, que já tinha escrito óptimos argumentos, estreia-se assim na realização – como se pretendesse ter mais controlo sobre a forma de contar a história que imaginou – e fá-lo com habilidade e subtileza, prometendo ser capaz de continuar a fazer bom cinema.

Emanuel Madalena

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[Cinema] Opinião: FORÇA MAIOR (Force majeure), de Ruben Östlund https://branmorrighan.com/2015/05/cinema-opiniao-forca-maior-force.html https://branmorrighan.com/2015/05/cinema-opiniao-forca-maior-force.html#respond Thu, 07 May 2015 12:00:00 +0000

“Force majeure” é uma expressão usada em vários domínios legais que engloba os actos do acaso – ou divinos – impossíveis de prever. São os acidentes extraordinários que ilibam de responsabilidades. São “motivos de força maior”, e daí a tradução portuguesa do título deste filme do sueco Ruben Östlund (co-produção sueca, francesa, norueguesa e dinamarquesa), que passou pelo Indie Lisboa e estreia esta semana.

É precisamente um acontecimento desse tipo – uma avalanche – que acontece aos protagonistas do filme, um casal sueco (representado por Lisa Loven Kongsli e Johannes Kuhnke), com dois filhos, a passar férias numa estância de esqui nos Alpes Franceses. Com este ponto de partida, podia ser um filme de sobrevivência, cheio de actos heróicos e criancinhas soterradas, mas não, é muito mais subtil do que isso. Não quero contar demasiado, mas, na verdade, a avalanche não soterra ninguém, e, em vez dos heróicos progenitores a salvar os filhos, há um acto de cobardia do pai, que lançará uma dúvida firme e inconveniente sobre o seu carácter, a sua competência paterna, e o próprio casamento.

Afinal não aconteceu nada, supostamente – ufa, foi só um susto – e no entanto tudo se altera. Entre pedidos de explicações, tentativas de entendimento, acusações mútuas, recentes ou antigas, e conversas que rapidamente fogem ao controlo do casal, tudo começa a desmoronar – uma derrocada lenta, que me estraga a metáfora da avalanche que tencionava fazer.

É nessas cenas em que o casal se digladia que o filme brilha, e brilha imenso, mais do que uma pista de ski num dia de sol (hélas!). As subtilezas do discurso e dos gestos, aliando a escrita irrepreensível ao talento certeiro dos actores, vai fundo na experiência das relações humanas, concretamente o casamento e a paternidade. No entanto, em última análise, é das relações entre homens e mulheres, no geral, que aqui se fala, e este tema maior é o mais delicioso do filme e, apesar de tudo, o mais importante, estudando de forma despretensiosa mas aguerrida a masculinidade, com a sua “autoridade”, e, principalmente, a falta de validade dos tradicionais papéis sociais de género, e seus estereótipos.

Com as convenientes, reais e devidas distâncias, podemos falar numa mistura entre os cinemas de Buñuel e Haneke, já de si próximos, na forma sarcástica como se olha para a condescendência da burguesia, com as suas relativizações, hipocrisias, e auto-afirmações que se descobrem vazias, enquanto, ao mesmo tempo, se revela a insegurança e fragilidade do equilíbrio aparente das vidas comuns.

Irónico e profundamente inteligente, visualmente encantador e confiante, FORÇA MAIOR é um filme duro e nada complacente, apesar dos seus momentos de humor (de desconforto, principalmente) e da leveza que se possa deixar perceber por um olho pouco sagaz. FORÇA MAIOR é um filme sincero e adulto, sofisticado, original e provocador onde é preciso. Vale a pena.

Emanuel Madalena

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[Cinema] Opinião: Ida, de Pawel Pawlikowski https://branmorrighan.com/2014/07/cinema-opiniao-ida-de-pawel-pawlikowski.html https://branmorrighan.com/2014/07/cinema-opiniao-ida-de-pawel-pawlikowski.html#respond Wed, 23 Jul 2014 20:30:00 +0000

Ida, de Pawel Pawlikowski

Verifico com surpresa que Pawel Pawlikowski não é uma ostra. É um senhor polaco de quase 60 anos, bem conservado, com uma longa carreira académica em literatura e filosofia. Além disso, é realizador de cinema. E fez uma pérola. Não conheço a sua filmografia anterior, que inclui documentários televisivos e filmes produzidos em Inglaterra, mas Ida, o primeiro que realizou na sua terra natal, é belo e polido, tem um brilho suave mas intenso, e é precioso. Como uma pérola.

Essencialmente, Ida é um filme a preto e branco sobre uma freira na Polónia dos anos 60. Mas não desistam já, porque o filme é maravilhoso. A protagonista, que lhe dá o nome, é uma noviça que viveu desde sempre num convento. Prestes a assumir os votos, é informada pela madre superiora que, afinal, conhece-se-lhe um familiar vivo, uma tia, antiga juíza do regime comunista e aguerrida combatente contra os inimigos do povo polaco, agora quebrada em desalento e depressão. Com essa tia, Ida descobre que é judia e que os pais foram assassinados durante a guerra, e, com a sua ajuda, procura compreender a história da sua família e de si própria.

No entanto, a faceta mais interessante da narrativa acaba por ser o confronto de Ida com todo o desconhecido mundo exterior. Nesse aspecto, Ida é também um filme “de formação”, principalmente em relação ao desenvolvimento moral e psicológico da jovem. Dir-se-ia que a tia a tenta “desencaminhar” – assim como tenta o mundo inteiro, apenas por começar a existir – mas em vão. Dir-se-ia também que Ida está na “flor da idade”, por isso é normal que acabe por desabrochar e descobrir alguns dos prazeres mundanos (um pleonasmo?). Aconteça o que acontecer, Ida nunca mais será a mesma. (Haverá Ida e volta? Vejam o filme, antes que eu continue com os trocadilhos infelizes.)

Ida comove e maravilha tanto com o que se diz como com o que se cala, cativando nas palavras, nos gestos das personagens, e no ambiente transportado nas imagens. É um filme bem conseguido em todos os aspectos, percebendo-se uma visão e uma intenção em cada um dos planos. A fotografia é a mais bela que vi nos últimos tempos, e isto é ainda mais notável por ser a preto e branco, e feita a partir de uma paisagem desolada. Os planos são compostos a régua e esquadro, com uma assinatura única, cheia de soluções engenhosas e de ideias visuais subtis mas valiosas. O próprio formato do filme, o desusado 1.37:1, permite que se (re)invente uma estética que homenageia o passado sem deixar de ser moderna.

Os actores são todos muito competentes, nomeadamente Agata Kulesza, a tia de Ida. Mas é à volta da personagem principal que o filme existe, e a actriz escolhida para o papel não podia ser melhor. Ao que consta, Pawlikowski pediu aos amigos para tirarem fotografias a raparigas desconhecidas que tivessem o aspecto enquadrado com o que o realizador procurava para a personagem – uma beleza muito específica e algo ambivalente. Foi assim que alguém encontrou Agata Trzebuchowska e a convenceu a fazer uma audição. Basta ver cinco minutos da sua expressividade subtil, adivinhando o mundo interior contido no olhar muito escuro de Ida, para percebermos que Trzebuchowska é um achado que o tinha de ser.

Ida é hipnotizante do início ao fim. Tem apenas 80 minutos mas não lhe falta nada, e muito menos peca por excesso. É uma pequena obra-prima, e até nisso se assemelha a uma pérola.

Emanuel Madalena

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[Cinema] Opinião: The Zero Theorem (O Teorema Zero), de Terry Gilliam https://branmorrighan.com/2014/07/cinema-opiniao-zero-theorem-o-teorema.html https://branmorrighan.com/2014/07/cinema-opiniao-zero-theorem-o-teorema.html#comments Fri, 18 Jul 2014 11:00:00 +0000

Em The Zero Theorem o futuro é paranóico e caótico, construído em cima dos edifícios e das cidades antigas, em vez de os substituir. As roupas são espalhafatosas e a cor abunda por todo o lado – a luz não. A publicidade, omnipresente, fala de coisas como a igreja de Batman, o Redentor, e campanhas de saldos com o slogan “occupy mall street now” (o que é um bom exemplo do humor duvidoso do filme). Por todo o lado abunda o ruído visual e sonoro. Todas as pessoas estão nas festas com os seus smartphones ou tablets na mão. Ah, esperem…

Quer seja o futuro ou uma realidade alternativa, o que aqui interessa é a sátira – à sociedade de consumo, à tecnologia, mas principalmente ao desnorte com o que realmente interessa (seja lá o que isso for). Qohen Leth (Christopher Waltz como peixe na água) contrasta com tudo isto: veste-se quase exclusivamente de preto, tem um discurso erudito, refere-se sempre a si próprio na primeira pessoa do plural, e acredita que, mais cedo ou mais tarde, irá receber uma chamada telefónica em que um desconhecido lhe qual é o sentido da sua vida. Uma chamada do destino, dir-se-ia. Para isso, Leth precisa de estar em casa (uma igreja decrépita), preparado para atender o telefone, e por isso o filme começa com os seus esforços para conseguir autorização para trabalhar a partir de casa.

Quando consegue a autorização, começa a trabalhar num projecto diferente – o Teorema Zero, uma equação monumental e traiçoeira que provaria que o universo não tem qualquer sentido. Entretanto, além da “gerência” (Matt Damon insidioso e a camuflar-se, literalmente, com o ambiente) e do supervisor Joby (David Thewlis pythonesco), aparece Bainsley (Mélanie Thierry impetuosa e segura), uma “cyberacompanhante” bem real que talvez seja uma pista para a busca de Leth. Vão entrando na vida (e na casa) de Leth outras personagens secundárias, como o geek adolescente Bob (Lucas Hedges) ou a “psicóloga digital” interpretada por Tilda Swinton, que tem alguns dos momentos mais engraçados do filme (e também os mais bizarros – quando começa um rap despropositado, por exemplo).

O pior são as ideias inconsequentes que o filme vai tendo e que acabam por torná-lo, no geral, inconsequente, e digo isto com as características do estilo de Gilliam em mente, que não funciona tão bem como se estaria à espera. O caos frequente dos seus filmes é, neste, mal doseado – não existe nem deixa de existir – provocando um efeito contrário ao habitual: desinteresse e, por vezes, mesmo tédio.

A marca do autor nunca deixa de estar presente no filme, quer a nível dos temas quer, principalmente, na estética bizarra, com os ângulos obsessivos e o ritmo particular, mas, no fim de contas, essa presença é positiva e essencial, porque mesmo um mau filme de Terry Gilliam é, no mínimo, interessante. Num extremo temos o magnífico Brazil, no outro o péssimo Tideland, e no meio este The Zero Theorem, que, apesar de tudo, não é mau – é um Gilliam melhor do que as suas últimas tentativas e, a espaços, chega a lembrar o fulgor visionário dos seus primeiros filmes.

No fim, há uma moral algures entre a procura fútil pelo sentido da vida e a necessidade de se aproveitar o seu tempo precioso. Algumas personagens e linhas narrativas são abandonadas, mas o que mais interessa é o arco de Leth, cristalizado na versão de Karen Souza de Creep, que nos acompanha em direcção ao pôr-do-sol (quase). Talvez se encontre alguma redenção para Leth e para o filme, um objecto estranho de que não se sabe ao certo onde pertence – e, pelo menos por isso, interessante.

Emanuel Madalena

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