Helena Ales Pereira – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Tue, 26 Jan 2021 19:33:50 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.1 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Helena Ales Pereira – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 Sala com vista, de Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2021/01/sala-com-vista-de-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2021/01/sala-com-vista-de-helena-ales-pereira.html#respond Tue, 26 Jan 2021 19:33:48 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24949
Sala com vista

Casa com vista

A janela da sala dava para a avenida mais movimentada da cidade. Um corrupio de pessoas, carros, motos, autocarros, camiões do lixo e vozes. As das pessoas, de dia, e as dos cães que rompiam de dia ou de noite, independentemente da hora, porque aos cãos tanto se lhes dá se tiveram de dar sinal de alguma coisa que os ameace ou perturbe.

Do outro lado da rua, a casa. Um prédio de três andares, quase sempre em silêncio. Varandas compostas com móveis modernos e uma absoluta quietude, excepto num andar, o último. Ali via o casal que, algumas vezes, assomava àquela varanda e se deixava ver, mais junto ou mais afastado, a dois ou um de cada vez. Ficava a olhá-los e a imaginar as conversas que teriam naqueles momentos fugazes que o ocaso poderia trazer, naquela hora e naquela luz que dá para as pessoas fazerem divagações sobre as suas vidas, sobre as suas próprias decisões, motivadas pelo momento contemplativo.

Estariam juntos há muitos anos, porque aquela hora do dia, que inspira abraços e promessas, raras vezes os aproximava de uma forma íntima e mesmo quando isso acontecia, havia naquele par um cansaço, uma normalidade que enche a vida que se partilha há muito. Imaginava as conversas sobre os filhos – se os havia, porque nunca os tinha visto naquela varanda –, o dia-a-dia do trabalho, da casa, dos conhecidos, da família, da rua, talvez de um livro que se andasse a ler ou de um filme que se teria visto na noite anterior ou se agendava para ver já há algum tempo.

A visão do casal, e da sua rotina, trazia, naqueles dias em que sentia mais a sua própria vida, uma inveja por não partilhar o mesmo com alguém, uma solidão que se colava mais à pele quando se toma consciência que independência pode também significar o estar-se só. Nos dias que ventava mais ou o sol se deixava esconder pelas nuvens mais escuras dos dias invernosos, o casal raramente assomava à janela e isso causava-lhe mais inveja do que o normal.

Imaginava-os a partilhar um sofá, uma manta a cobrir as pernas; ele talvez a ler um jornal ou um livro, ela dedicada a um livro ou a uma daquelas actividades caseiras que algumas mulheres gostam de experimentar, como fazer malha. O ruído de uma casa habitada por um casal tornaria o seu próprio silêncio ainda mais ensurdecedor, aquele movimento constante só lhe daria para notar como a sua própria casa era tão quieta.

Em casa, olharia para o seu computador e encheria a cabeça com as imagens de uma série ou de palavras de algum artigo que estivesse a ler na Internet, uma distração que fizesse esquecer a sua própria existência, mais vazia, sem histórias a dois num final de dia numa varanda com vista para a rua. Lá fora, a avenida continuaria a sua vida de sempre, enchendo-se de ruídos e de vozes, até que o sol levasse tudo com ele. 

Helena Ales Pereira

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Passar a montanha, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2021/01/passar-a-montanha-por-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2021/01/passar-a-montanha-por-helena-ales-pereira.html#comments Mon, 11 Jan 2021 21:04:19 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24889
Ilha de Santo Antão

Texto e fotografias por Helena Ales Pereira

Passar a montanha

Os passos ressoam na pedra, na terra, nas folhas caídas das árvores. Os pés, incansáveis, que sobem e descem a montanha, os braços e as cabeças carregando banana, cana, batata, estrume. A fruta esquecida no chão, alimentando os animais da noite, como pequenos ratos que confundem veneno com amêndoa e acabam mortos na beira de um caminho, ou ainda meio grogues na boca de um cão que brincará com esse ser quase inanimado até ele definhar de vez.

A gente que sobe e desce a montanha, porque é assim que se vive em Santo Antão, as mentes e as almas carregando ausências, saudades, mortes demasiado precoces, uma gravidez não planeada, um nascimento há muito desejado, os sonhos de uma criança, as recordações de um velho. 

O vento ecoa nos ouvidos desprotegidos do frio da manhã e faz-se ouvir nas folhas das bananeiras, nas espigas do milho, nos troncos despojados das papaeiras, estes restos de vida mortos de pé, numa terra onde os homens morrem de todas as maneiras, não raras vezes de suicídio. A mente quer divagar mas encontra limites nas paredes duras da montanha e nem mesmo a riqueza deste verde, albergue de tantas plantas, é suficiente para apaziguar as angústias que consomem a alma por dentro, com a mesma rapidez com que o vento e o sol curtem a pele, secando-a para uma idade não condizente com a marcada num pedaço de papel de um registo.

Os nomes que se perdem na memória, as histórias reais de descendências perdidas no tempo de outros tempos misturadas com as histórias irreais da ilha, os seres do sobrenatural que acompanham os passos das gentes na noite. O agitar das folhas da cana que parece transformar-se nas passadas ligeiras de alguém a sussurrar nos ouvidos de um distraído, um tronco velho e seco que range como uma porta velha numa casa esquecida na encosta da montanha, vazia de alegria e tristeza.

As folhas largas de bananeira que se agitam na noite são vozes de pessoas que chamam a gente da montanha para a escuridão das lendas. E é preciso ter na ponta da língua o saber para lidar com estes seres que, não bastando esconderem-se na montanha, procuram também refúgio dentro das casas, debaixo das camas. Vozes mais velhas confessam que não conhecem tais lendas, mas é o medo de as evocar, e com isso despertá-las, que as fazem negar tais mitos cabo-verdianos e não o privilégio de terem crescido na ignorância.

Ilha de Santo Antão

Bale a cabra, muge a vaca, ronca o porco, ladra o cão, canta o grilo, bebe o homem. O grogue escorre pela garganta e aquece o vazio que se cola por dentro da pele, amolecendo as carnes, enrijecendo a alma. O álcool serve as festas e serve o luto. É companheiro de batizados e casamentos, das conversas que se arrastam do sol para a lua, dos quartos vazios, das mesas de um único prato.

A calda que se espreme da cana mistura-se com laranja ou limão, o ligeiramente ácido para cortar todo aquele açúcar que se prefere deixar repousar, levar ao alambique e transformar em grogue, porque o açúcar que adoça a vida parece uma toalha que cobre a madeira estragada de uma mesa: disfarça, mas não consegue mentir quando destapada.

Os carros torneiam a montanha num vai e vem. A fuga diante dos olhos, numa volta à ilha sem fim, na beira de estrada junto ao mar que parece prolongar a sensação infinita e irónica desta imensidão, encurralada pela água que a cerca. A liberdade tem apenas o espaço de um quarto fechado, limitada por aquilo que nos dá a sensação de infinito: o mar. Liberdade e prisão numa imensidão incapaz de caber em todos os olhos da ilha.

Os risos, os choros, as mulheres, os homens, as crianças, os animais, as casas outrora cheias, agora cheias de nada, abertas apenas para dias de festa em férias gozadas por quem conseguiu perceber a prisão que a montanha negoceia com o mar, sempre que alguém nasce. Inventa uma lenda para que não se arrisquem muito na montanha; inventa outra para que não se arrisquem demasiado no mar que bate, imenso, contra a rocha, transformando-a numa bátega de areia negra, a cor dos homens e a cor da alma.

Alguns dias por ano, as casas renascem, as mesas enchem-se de comida, e os quartos, de corpos habituados a outros confortos. Nesses breves instantes, Santo Antão volta ao passado das famílias grandes e das casas que descansarão sozinhas quando o vento voltar a soprar mais frio. A luz apaga-se. E a montanha assiste a tudo, dominante.

Ilha de Santo Antão
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Another Shitty Day, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2018/02/another-shitty-day-por-helena-ales.html https://branmorrighan.com/2018/02/another-shitty-day-por-helena-ales.html#respond Mon, 12 Feb 2018 12:43:00 +0000 DR

Another shitty day

Está frio quando acordo.
Mais frio do que nos dias anteriores. “Mais um dia de merda”, penso. Olho pela
janela, não vejo um caralho. O nevoeiro abraça as árvores, os prédios, os
carros lá em baixo na rua. O eixo norte-sul, que vejo da janela da sala,
enquanto bebo o café, sempre a abarrotar de trânsito a esta hora da manhã, não
me surge à distância. A neblina transformou tudo numa página em branco.

Ouço a correria dos
miúdos do andar de baixo. Como se não me chegasse a vaca do andar de cima que
insiste em passear pela casa de saltos altos, mesmo de madrugada, quando chega.
“Mas eu venho do trabalho”, respondeu-me incrédula, numa noite que me pareceu
pior do que as outras. “Mas isso não lhe dá o direito de perturbar o sono dos
outros, não é verdade?”, respondi-lhe calmamente quando a única coisa que me
apetecia era esmurrá-la, partir-lhe o nariz, pegar nos sapatos de saltos alto e
esburacar-lhe a cara com eles, espetá-los no nariz, na boca, arrancar-lhe os
olhos, furar-lhe as mamas e enfiá-los nos ouvidos, por onde me entra aquele
maldito som durante a noite.

No emprego, arrasto os
bons dias à medida que arrasto os pés em direção ao meu cubículo, onde mal cabe
uma secretária e uma cadeira, mas onde cabem todas as queixas do mundo,
cuspidas naquele auricular que enfio no ouvido assim que me sento. No corredor
fica a minha paciência a torcer para que eu me mantenha calmo e não mande a
velha que agora se queixa foder-se. E eu ponho a máscara da normalidade e do
cinismo, os dois de mãos dadas dentro do bolso das calças, onde enfio a mão
para não me esquecer de ser o que todos esperam, de responder o que é normal,
ainda que algumas das minhas colegas achem que passo a vida a esfregar o sexo,
quando olho para elas, mas preciso de o fazer para aguentar as descrições
absurdas da vida dos subúrbios, o marido que mija a sanita toda, que insiste em
puxar as orelhas à cama, apesar de ela dizer que os lençóis devem ser sacudidos
e bem esticados. E eu esfrego, esfrego a normalidade e o cinismo dentro do
bolso das calças, enquanto elas olham de lado para mim, com nojo, um ligeiro
esgar nos lábios e vejo o que pensam nos olhos, “este gajo parece doido”.

Ao almoço, as conversas
cruzadas fazem doer-me a pele: a da esquerda que conversa com a direita em
frente na diagonal, a da direita que fala para outra mesa, a boca em frente a
mim que me dirige palavras que não ouço, mas com as quais vou concordando, a
cabeça a abanar que sim, os ouvidos a estourar, as artérias a entupirem-se com
este ruído infernal que me dá vontade de vomitar-lhes em cima.

O regresso à casa fria,
vazia, mas mais quente e cheia do que eu. O frigorífico para onde fico a olhar
longos minutos, que não me responde à pergunta “o que vou comer?”. O frio que
se espalha pela cozinha, a luz amarela que me hipnotiza, o motor que começa a
roncar à medida que a temperatura lá dentro vai subindo. Estendo-me no sofá e
deixo-me guiar pelas cores da televisão que me prometem um mundo cheio de
gargalhadas, acção, aventura, drama, tudo revelado em canais que vou mudando
meio adormecido sem perder mais tempo do que aquele que preciso para perceber
que não vou gastar um minuto a ver aquilo. Acabo por adormecer embrulhado numa
manta velha, esquecida o ano todo no sofá, porque até no verão sinto frio.
Acordo e dou-me conta daquela solidão incontornável: a de acordar a meio da
noite e mudar-me para uma cama vazia, fria. Foi só mais um dia de merda.


Helena Ales Pereira

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[des]ordem, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2017/06/desordem-por-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2017/06/desordem-por-helena-ales-pereira.html#respond Wed, 14 Jun 2017 21:03:00 +0000

Encontrei cabelos teus numa escova. Foste-te embora há uma semana e ainda tenho cabelos teus na escova. Que eu odiava. Como odiava encontrar os cabelos no fundo da banheira, no chão da casa, agarrado aos casacos, presos nas almofadas. Como odiava os pelos cortados no fundo da banheira, na gilette, no lavatório. Os restos das unhas presos no corta-unhas, bocados de papel higiénico agarrados às paredes da sanita. Todos aqueles restos de ti espalhados pela casa, que já não te pertenciam, mas que marcavam todos os cantos. Agora, há sombras a mais, vazios a mais, silêncio a mais. Levaste tudo. As t-shirts, as camisolas, as calças, as meias, levaste a roupa para o frio e para o quente. Levaste os cremes, o champô para cabelos frágeis e o perfume que te acabava de vestir todas as manhãs. Levaste a música indie pop rock nostálgica moderna e os livros que deixavas abertos no sofá, na mesinha de cabeceira, na secretária, na bancada da cozinha, menos na casa-de-banho, porque um sítio com merda e humidade é péssimo para os livros, dizias.

Levaste as fotografias e as nossas memórias, as nossas férias a dois, na humidade dos países asiáticos de catálogo turístico; na frieza das grandes cidades, onde perdíamos o rasto dos gestos íntimos entre multidões de gente desconhecida; na costa alentejana, onde os nossos amigos mantinham montes alentejanos perfeitamente enquadrados na paisagem, perfeitamente desenquadrados das suas vidas citadinas; nos desertos solitários, onde a areia nos rodeava e nos invadia os poros, por mais que nos declarássemos apaixonados por aquela aridez, por aquela imensidão de nada; porque era já o nada que nos cobria a nós. O cabelo, a pele, os olhos que evitámos deitar um sobre o outro, o toque que preferíamos desperdiçar em gestos secos do que pousar no corpo do outro. E naquele deserto não havia espaço para o deserto que nós éramos, porque o nosso desamor era mais imenso, mais seco, mais vivo.

Sentia nojo de ti. Agora, sinto nojo da tua ausência, que me cobre a casa toda. A tua ausência vertida em todos os cantos, em todos os pratos onde já não comes, nos copos que já não usas para beber vinho ou água, porque a cerveja preferias beber pela garrafa. Nos talheres, perfeitamente dispostos na mesa; nos tachos onde gostavas de confecionar os teus pratos inventados, que oferecias aos amigos, para compensar as férias nos montes alentejanos. E custa-me este silêncio que se faz sentir em todo o lado. O silêncio pós-festa… A voz que já não vai dizer bom dia, boa noite, jantas em casa?, se vais à rua, traz-me gengibre que quero fazer um chá bem forte para a minha garganta. Caralho para garganta, para o gengibre, para o indiano da mercearia que está sempre a perguntar por ti, porque conseguiu arranjar aquele caril de Goa que tinhas pedido. Eu não lhe respondo, não quero justificar nada, não quero contar as novelas da minha vida em primeira mão e em exclusivo na mercearia da rua. Não quero lembrar-me do vazio, das paredes vazias com a marca dos quadros que levaste. Não quero lembrar-me de como amava odiar-te.

Helena Ales Pereira

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Playlist de Verão – HotSummer – por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2016/08/playlist-de-verao-hotsummer-por-helena.html https://branmorrighan.com/2016/08/playlist-de-verao-hotsummer-por-helena.html#respond Tue, 02 Aug 2016 21:07:00 +0000

A Playlist da Quinzena tem estado parada, volta em Setembro, mas o Verão não podia passar sem uma bela playlist. Se o ano passado fiz eu uma, este ano é a Helena Ales Pereira que nos privilegia com as suas escolhas! Bom Verão! 

Há pouco tempo ouvi o The River, dos Groove Armada, que me remete sempre para um Verão em Sesimbra, e lembrei-me de fazer uma colectânea para as viagens de carro, com as janelas abertas e o vento quente a entrar por todo o lado, que se fazem nesta altura. Os outros temas desta colectânea foram surgindo na minha cabeça, porque me trazem à memória viagens, filmes, fins de tarde, concertos, conversas… Tudo coisas que aconteceram no Verão. A única excepção é o primeiro tema, New Song, das Warpaint, que acabou de ser lançado e que a Mariana enviou-me, quando eu estava a finalizar esta playlist. Disse logo: perfeita para a playlist. Perfeita para a abertura. Sem nenhuma recordação tão marcante quanto as outras, acaba por ficar ligada a mais uma memória de Verão: a desta colectânea.

Helena Ales Pereira


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Silêncio, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2016/05/silencio-por-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2016/05/silencio-por-helena-ales-pereira.html#respond Wed, 04 May 2016 22:30:00 +0000 anja niemi

Silêncio

Sinto rasgar. Sou eu. A dor é indescritível. Mas já não a sinto.

“We’ll be too far away

‘Cause we’re all drifting farther every day”

Drifters, by Patrick Watson

São 21h30. Lá fora chove. Ela está concentrada no trabalho, não sente fome e não percebe a noite chegar. É inverno e a noite chega cedo. Qualquer hora parece 10 da noite, quando anoitece no inverno. Principalmente quando chove, como hoje.

-Bolas, já são nove e meia. Merda, fiquei de ir a casa dos meus pais depois do jantar, diz para si. Agora não vale a pena. Os pais jantam cedo e a esta hora estão enrolados na cama. A mãe a ler, como sempre, o pai a ver séries, para descansar a cabeça, como gosta de dizer, depois de passar o dia com a cabeça enfiada em papéis. É contabilista.

Silêncio

Sinto o hálito pesado em cima de mim. O cheiro a álcool. A respiração ofegante. Agonia-me.

“And you find yourself far from home.”

Blackwind, by Patrick Watson

Prepara-se para sair. Aperta o casaco de malha e veste a gabardina. Amaldiçoa a saia, mas a reunião de manhã pedia um fato mais formal. Substitui os sapatos pelas galochas que, nos dias de chuva, traz sempre consigo num saco. É prática. E bonita. Os cabelos, castanhos, mal tocam nos ombros e os olhos são castanhos-claros. A boca, bem desenhada, larga, convida a muita coisa, mas pouco à conversa. É reservada.

Silêncio

Deixa de doer. A adrenalina tem esse efeito. Anestesia.

“Bad day, looking for a way home,

looking for the great escape.”

The Great Escape, by Patrick Watson

Desce as escadas. São quatro andares sem elevador num prédio velho. A zona onde está localizado é industrial. Uma daquelas que, aos poucos, se converte num local de moda. Escritórios baratos em antigas fábricas, prédios devolutos de fachada Arte Nova. Aproveitadas por jovens empresários que os transformam em locais hype. Onde todos querem trabalhar, porque é o que está a dar.

Vai descendo lentamente. Não há pressa. Afinal vai para casa. Telefonou aos pais a avisar que se tinha distraído com o trabalho. Amanhã passava por lá.

-Sim, mãe, eu juro que janto mais do que um prato de cereais, prometeu ela, uns minutos antes.

Talvez aqueça uma sopa. Talvez uma taça de leite para comer os cereais.

O que me apetecia mesmo era sushi, pensa. Mas não gosta de ir a restaurantes sozinha e a esta hora já é tarde para ligar a alguém. São 9h48 da noite.

Silêncio

Já não o oiço. Já deixei de o sentir há algum tempo. Já não choro.

So one day

We fall, fall for a long time

Fall, by Patrick Watson

Tem de andar cerca de três minutos a pé até ao carro. Quando chegou da reunião da manhã, já só havia lugares no descampado que fica mais afastado. Continua a chover. Os pés estão protegidos da lama e da chuva pelas galochas. A cabeça por um chapéu impermeável. Não gosta de chapéus-de-chuva. Prefere molhar-se. Sentir a chuva. Bob Dylan dizia que há quem sinta a chuva e há quem apenas se molhe. Ela gosta de acreditar que faz parte do primeiro grupo. Dos que sentem. Dos que vivem.

Silêncio

Não percebo que já passou. Percebo que nunca mais serei a mesma.

“It’s quiet again

Too much for noise to go on

To fill up the space”

Noisy Sunday, by Patrick Watson

O estacionamento está deserto. Estão apenas dois carros, juntos, ligeiramente afastados do dela. Faltam poucos metros. Ao longe, destranca a porta com o comando. Só com o segundo toque se abrem as portas todas, por isso, não corre o risco de alguém entrar por uma das outras portas, enquanto ela entra no carro.

Silêncio

Abro a porta do carro. Não o ouço chegar. É demasiado rápido. Grita-me: puta, estava mesmo à tua espera! Sinto a pancada na cabeça, como uma bofetada. Grito. Atira-me contra o carro. Tento dar socos para trás, para o atingir, e isso enfurece-o. Força-me a dobrar o corpo, até sentir as pernas a enfraquecerem e a darem de si. Empurra-me a cara contra o assento do carro e acabo por cair de joelhos. Tapa-me a boca com a outra mão, enquanto me diz: se gritares só te vai doer mais, porque te parto toda. O cheiro da boca é de álcool misturado com a comida de várias refeições, o da mão fede a dias e dias sem água, um cheiro seboso, que me dá vómitos. Ele percebe e ri-se. És muito fina. Foda-se, podia ter aproveitado a água da chuva, penso eu. Estou a ser atacada por um estranho e penso que ele devia ter tomado banho?! A mente é torcida…

Quando me solta a boca, torno a gritar e tento levantar-me. Mas ele segura-me as mãos atrás das minhas costas. Sinto a lama a entrar-me nas botas e a roupa a ensopar-se em lama e água. Continuo a espernear e a tentar lutar. Não sei com o quê. Ele perde a cabeça. Vira-me para ele e começa a esbofetear-me e dar-me socos na cara. Sinto o nariz a estalar, os dentes a ceder, os olhos a fecharam-se para se protegeram e a fecharem-se porque rapidamente reagem às pancadas e começam a inchar. Já te disse que te parto toda, minha puta!

O sangue escorre-me pela boca e pelo nariz. As lágrimas correm-me pelo rosto, mas não me sinto a chorar. Só sinto a água a sair dos olhos, inchados e fechados.

Arrasta-me para dentro do carro e deita-me por cima dos bancos da frente. Sinto o travão de mão espetado nas costas. Coloca as mãos por baixo do banco do condutor e puxa a alavanca para este recuar mais. Faz o mesmo com o outro. Tudo rapidamente. Está deitado em cima de mim e continua a segurar-me os braços com uma mão, atrás das minhas costas. Deixei de me mexer. Deixei de debater-me.

Começa a beijar-me. És bonita, cheiras bem, excitas-me. Lambe-me a cara. Lambe-me o sangue, as lágrimas e diz-me: pronto, pronto, já passou, viste? O que é que me fizeste fazer, viste? Agora não vou conseguir olhar-te nos olhos… Tenta forçar-me a abrir os olhos. A dor, a dor… Choro mais. E tens uns olhos tão bonitos, é uma pena. O peso em cima de mim impede-me de me mexer. Larga-me as mãos, agarra-me o cabelo e com a outra mão começa a procurar-me o sexo. Só agora percebo o que vai fazer, só agora sinto o desespero a invadir-me, o medo, o pânico, sabendo que se prepara outra invasão. A do meu corpo. Começo a gemer: por favor, por favor, não me magoe, não me faça mal, eu não digo nada, mas não me magoe, não me faça mal, por favor. Digo as palavras sem acreditar nelas, sem lhes colocar fé, porque os dedos dele já me afastam as cuecas, já me tocam a vulva, que se contrai, que se fecha.

Eu não te vou magoar, eu nunca magoo ninguém, só faço isto porque te amo, porque és bonita, irresistível, cheiras bem.

Penso: relaxa, Carolina, relaxa, senão vai doer-te. Pensa noutra coisa. Relaxa. Sinto o sexo duro contra as minhas pernas e começo a chorar: por favor, por favor…

Shiiiiiiiiiuuuuu, já passou, já passou, continua ele. Tenta enfiar-me os dedos na vagina, mas não consegue. Estou completamente contraída e só penso na dor, na invasão, que aquilo é um sonho, um pesadelo, que vai tudo acabar, que vai tudo acabar… Carolina, relaxa, relaxa, senão vai doer. Ouço-o a desapertar as calças e só penso: relaxa, relaxa, senão vai doer. Mas como é que se relaxa? Como é que relaxa quando alguns dos nossos maiores medos se transformam em realidade. Quando ouvimos dizer que uma em cada três mulheres serão vítimas de algum tipo de abuso, durante a vida, e nós pensamos sempre que somos as outras duas? Como é que se relaxa quando nada, ninguém me preparou para isto? Como é que se relaxa quando o meu corpo deixa de ser meu? Como é que se relaxa quando me invadem?

A respiração é ofegante, nauseabunda. A minha é acelerada, descontrolada. Uma respiração que se mistura com choro, com dor, com medo, com vazio.

És tão bonita, tão boa, tão macia, continua ele. Passa a mão pelo interior da minha coxa, belisca-me, aperta-me a carne, aperta-me mais o cabelo com a outra mão e roça o rosto, a pele, a barba, na minha pele, que se cobre de sangue, de lágrimas, de desespero.

Sinto tremer. Tudo, o carro, ele, a minha vida. Sou eu. É o meu corpo que treme, de forma descontrolada, involuntariamente. Como o sossego? Só quero acordar, forço os olhos, que já estão fechados pelo inchaço, a fecharem-se mais. Doem-me. Doem-me as costas. Doem-me os cabelos. Doem-me as pernas dos beliscões. Dói-me por dentro. Dói-me a alma que não vejo, mas sinto-a a quebrar. Nunca mais vai sarar.

Desce as calças. Força o sexo duro contra o meu. Uma… Duas… Três… Estás bem fechada, puta, sussurra. Não, por favor, ouço-me a dizer. Choro como uma criança, que se afasta dos pais: assustada, perdida. Não vai entrar, vai doer, penso para mim. Ele vai perceber e vai largar-me, penso. Ele disse que não me magoava. Rasga-me. Assim, de repente. Sinto um ardor, uma queimadura, vou morrer, morrer. Pai, mãe, quero voltar a ser criança, quero dormir entre vocês, como quando adoecia, quero chorar no colo da mãe, andar às cavalitas do pai, quero as prendas de Natal, as leituras da mãe em voz alta no sofá, quero as panquecas de canela do pai. Já não quero acordar, quero esquecer. Quero as palmadas da mãe e o olhar severo do pai, quando se zanga, quando me castiga. Quero as palavras duras da mãe, quando as notas são más, e o olhar concordante do pai, que me faz sentir só. Quero voltar a ter medo do escuro, medo de olhar debaixo da cama, quero chorar porque me bateram na escola. Quero chorar a meio da noite, quando penso que estou sozinha. Quero gritar de medo, quando caio e parto o pé, o osso de fora. Quero tudo isso, agora. Todos os medos, todos os choros, todas as angústias, todas as solidões. Ultrapassei-os a todos, quero lutar contra eles, outra vez.

Não quero isto… Esta dor. Este tremor. Esta invasão. Não quero este sexo nojento que me penetra, que me continua a rasgar. Não quero este homem. Não quero esta respiração ofegante, de prazer. Não quero as palavras que me continua a dizer. Que cona tão apertada, és tão linda. Não quero estas mãos no meu cabelo, na minha pele. Não quero esta noite. Não quero saber das estatísticas, dos números, das mulheres que são atacadas. Não quero sentir a alma a partir-se, a querer fugir de mim. Não quero ter de ultrapassar isto. Não quero o amanhã.

Mexe-se cada vez mais. Respira cada vez com mais força. Sinto cada vez com menos intensidade. Deixo de ouvir. Deixo de sentir o peso em cima de mim. Ausento-me. Morro.

Acordo com um grito, o dele. O de um homem que acabou de se vir, o esgar do prazer dele, que estará reflectido no olhar, na boca que se contorcerá, na saliva que lhe escorrerá da boca para cima da minha cara. Só sinto, os olhos continuam fechados pela dor, pela ausência, pelo pânico. Não quero olhar para o meu invasor. Já não me lembro da cara dele, mas vou lembrar-me para sempre deste cheiro, deste peso, desta dor.

És linda, diz. Tão boa, continua. Sai de dentro de mim e sinto algo a escorrer, esperma com sangue. A dor e o alívio são irmãos. Faz-me uma festa no rosto, beija-me a boca. Mas estou morta.

Estou sozinha. Não sei quanto tempo passou. Sei que este tempo nunca passará.

Helena Ales Pereira

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A pele, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2016/03/a-pele-por-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2016/03/a-pele-por-helena-ales-pereira.html#comments Wed, 02 Mar 2016 20:28:00 +0000

A pele

O maior órgão do corpo humano 

Pensa ela enquanto ele lhe toca o nariz com a ponta dos dedos

Estão deitados lado a lado

Nus

Ela de barriga para cima

Ele de lado

Começa na testa

Desenha-lhe as sobrancelhas 

Podia fazê-lo de olhos fechados 

Vê-se nos olhos dela que sorriem

Toca-lhe os lábios

Que ela entreabre num sorriso que ele já desvendou há muito

Sente-lhe o queixo de rebeca 

E beija-o

Ela ri-se com cócegas

Desce com os dedos até ao pescoço

A mão percorre-lhe o peito

E fecha-se nos seios dela

Vazios

Usados depois de amamentarem os filhos

Os filhos dele

Já toca esses seios há quase 20 anos e continuam a surpreende-lo pela sensualidade

Como o surpreende a pele macia e suave

Que nem as fragrâncias italianas – as que ela prefere – nem os cremes com que se hidrata depois do banho

Conseguem disfarçar o cheiro

Quente, humano, doce, dela

Um cheiro que o alimenta de paixão

De desejo

Que o seduz

Olha-a nos olhos e reconhece-a

Os olhos dela continuam a sorrir

E pedem-lhe

Massaja-lhe a barriga metida para dentro

Estás mais magra outra vez

Diz-lhe 

Estou óptima

Responde ela

Sente-lhe a curva da barriga vazia

Sente-lhe as costelas

E conta-as

Falta-te a do Adão

Diz-lhe ele

Ela ri-se

É por isso que és tão refilona

Continua ele

A mão já desceu até ao ventre e toca-lhe no tufo de pelos púbicos

Percorre o interior da coxa

Aquele único sítio do corpo da mulher onde não há pelos

Sente-lhe as coxas 

Ela dobra as pernas para que ele lhe toque os joelhos

A respiração dela está mais forte

A dele está pausada

Mas não o sexo

Que ela sente duro nas costas da mão

Porque é que pintas sempre as unhas dos pés e não das mãos

Pergunta ele

Para tu fazeres essa pergunta

Que ela não responde

Como sempre

Descansa ao lado dela e olha-a nos olhos

Fundos, limpos, cinzentos

Que continuam a sorrir

Vira-te de barriga para baixo

Pede-lhe ele

Ela roda o corpo

Sem tirar os olhos dela dos dele

E repousa o rosto

Ele afasta-lhe os cabelos castanhos lisos que o cobrem

E toca-lhe os ombros

Musculados da ginástica

Sente-lhe as omoplatas

E desenha-lhe a coluna e as curvas desta

Uma ligeira subida a partir do pescoço

Uma descida mais acentuada a partir das omoplatas

E chega ao ponto que ele mais gosta

O início ligeiro daquela curva que o leva às nádegas

Pequenas como as de um rapaz

Musculadas com as de um homem

Que ele adora sentir

Apalpar

Morder

Agora percorre-as com os dedos

E sente aquela discreta penugem que as cobre

Os dedos descem

Reconhecem o caminho

Tocam-lhe o sexo

Húmido

Quente

Afasta-lhe os lábios e introduz-lhe um dedo na vagina

Ela geme

Os olhos já não sorriem

*Conto escrito ao som de ‘Are You a Boy or a Girl’, coletânea reunida por Ricardo Coelho, Though I Was James Dean For a Day

https://branmorrighan.com/2012/07/13.html

Helena Ales Pereira

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Não há montanhas impossíveis de subir, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2015/10/nao-ha-montanhas-impossiveis-de-subir.html https://branmorrighan.com/2015/10/nao-ha-montanhas-impossiveis-de-subir.html#comments Mon, 12 Oct 2015 21:10:00 +0000

Não há montanhas impossíveis de subir

O nervoso miudinho e a ansiedade substituem ao longo dos dias a curiosidade e a vontade de recomeçar. A mudança que, a princípio, parece trazer todo um novo mundo atrás, começa a parecer, aos poucos, um obstáculo impossível de transpor.

O sorriso há muito foi trocado por uma dor de estômago constante, a alegria pela falta de apetite. Os rostos novos são, agora, apenas rostos desconhecidos; as novas salas, remodeladas, pintadas de fresco, parecem frias, desprovidas de familiaridade. 

Ela tem apenas 15 anos, mas foi sempre conhecida por ser mais madura do que a idade supunha. Ar sério, humor sarcástico – herança do pai e da mãe que a incitava a sorrir perante as dificuldades -, gasta as mesmas horas a ler que no Instagram, numa mistura de quase mulher com a miúda que efectivamente ainda é.

A escola parece, na distância que a separa de casa, e que a obriga a trocar de linha de metro, um lugar que se assemelha a uma montanha gigante: longínqua e difícil de subir. A vontade de voltar para trás é muita; as etapas a ultrapassar começam ainda na cama, com o corpo a resistir até ao último minuto que lhe é permitido. Depois, segue-se a torrada, difícil de engolir, o chá e a peça de fruta a parecerem uma feijoada, impossíveis de combinar com pequeno-almoço. Os pés que se arrastam pelo passeio até ao metro, o sorriso que não consegue romper na boca que só arrisca um esgar.

A mãe chama-a para perto, mas ela prefere manter-se junto à porta, como se quisesse fugir, de volta ao Verão, à praia, ao sol que lhe aquece a pele. A uma nova tentativa da mãe, aproxima-se. As pernas altas e magras, o corpo desengonçado, o olhar a não combinar com a música que a mãe ouve e que partilha com ela, um auricular para cada uma, até ao momento em que separam, umas estações mais à frente. A mãe sorri e canta-lhe os versos do tema que ouvem, ‘Big Star Baby’, dos Mojave 3: “Baby, you’re the brightest star of all…” Ela sorri e estende o rosto para a mãe. Um beijo e um sorriso e a montanha parece diminuir de tamanho.

Helena Ales Pereira

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Quando venta, por Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2015/08/quando-venta-por-helena-ales-pereira.html https://branmorrighan.com/2015/08/quando-venta-por-helena-ales-pereira.html#respond Mon, 31 Aug 2015 20:16:00 +0000

Quando venta

Aproximo os pés da falésia e sinto o vento na cara, na barba, a fazer da minha t-shirt um balão e a tocar-me os pelos no peito. O vento que te levou numa noite de tempestade, em que os ramos partidos de uma árvore te fizeram perder o controlo do carro. Andei por aí, perdido, sem ti. Conheci outras mulheres, das quais não me lembro o nome, nem o rosto, se alguma vez o tiveram. Fodi-as. Em hotéis, no carro, em vãos de escada de prédios abandonados. Tocavam-me no sexo, com a boca, com as mãos. E eu não sentia nada, porque não te sentia a ti. Procurava-te. Para onde vai o amor quando o seu objecto nos desaparece? Quando alguém some da nossa vida, ainda que com dor, esse amor encontra sempre o seu vaso, mas quando se morre? Para onde vai o amor quando alguém nos foge da vida? As pedras debaixo dos pés resvalam lá para baixo. Estou tão alto, tão perto de quase te tocar, porque tu estás aí algures, no ar, ou no mar, lá em baixo, do qual só sinto a força nas ondas que rebentam nas rochas. Tenho medo de voar e de não te encontrar. Fecho os olhos e a força do vento aumenta ou sou eu que sinto cada vez mais o seu poder, porque os pés já mal tocam na berma da falésia. O som do teu riso aumenta nos meus ouvidos, os teus olhos estão quase alinhados com os meus e eu sinto que te estou quase a seguir. Abraço-te como sempre, num círculo perfeito de quase dois metros, porque os braços abertos, dizias, têm o tamanho da nossa altura. E tu, que tinhas pouco mais de metro e meio, ocupavas muito espaço, transbordavas-me o corpo, que não era suficientemente grande para te abarcar, para te conter. Essa liberdade, que te fazia imensa, levou-a o vento de mim. E agora leva-me com ele, também. Venta ainda mais aqui, quando já solto, me deixo cair em ti, no ar, ou no mar, lá em baixo.

Helena Ales Pereira

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[Playlist da Quinzena] 16 a 31 de Março de 2015 – As Escolhas de Helena Ales Pereira https://branmorrighan.com/2015/03/playlist-da-quinzena-16-31-de-marco-de-2.html https://branmorrighan.com/2015/03/playlist-da-quinzena-16-31-de-marco-de-2.html#respond Mon, 16 Mar 2015 10:30:00 +0000

Helena Ales Pereira

Tomei contacto com a Helena por causa do universo em que estou inserida, mas rapidamente percebi que tínhamos muitos mais gostos em comum para além daquela característica óbvia de termos o bichinho de fazer mais e melhor. Quando soube que ainda escrevia sobre música de vez em quando, e porque esta rubrica não se limita a músicos, achei que estava na altura de termos a primeira, de muitas espero, presença feminina no que à Playlist da Quinzena diz respeito. Com o sorriso contagiante da fotografia, deixo-vos mais informações sobre a nossa grande Helena! 

Atual diretora de Comunicação e Marketing na Penguin Random House, foi jornalista durante 17 anos, nos quais se dedicou sobretudo às revistas mensais, onde escrevia “sobre tudo”. Foi a partir de 2008, quando assumiu a edição de uma revista, que passou a escrever quase em exclusivo sobre cinema, teatro, literatura e música. A partir de 2013, passou a colaborar com o site Palco Principal e com a Mutante, e a música passou a ser o seu universo central de trabalho, “mas sempre” a par com os livros. Agora, sobra-lhe pouco tempo para a escrita mas, quando as saudades apertam, ainda se oferece para reportagem de concertos ou crítica musical no Palco, como a reportagem do recente concerto de José González. Ah, e o seu Facebook está sempre a ser alimentado com música. 

Escolhas musicais: Covers

1-Rufus Wainwright – Across the Universe [The Beatles]

Original dos The Beatles do álbum Let it Be (1970). Gosto da versão mais orquestrada do Rufus, acho que fez um excelente trabalho nos arranjos deste tema que ele incluiu no álbum Vibrate: The Best of (2013), embora o tenha gravado originalmente já em 2009.

2-Youth Group – Forever Young [Alphaville]

Além do ‘clássico’ da minha juventude, o que me apaixona nesta músico é o vídeo que retrata bem os anos oitenta: um grupo de miúdos a andar de skate, sem qualquer proteção, numa total liberdade e descontração. Gravada pela banda australiana Youth Group em 2006, já sem a batida mais pop electrónica dos sintetizadores dos Alphaville, é uma canção para ouvir todos os dias!

3-Julia Holter – Don’t Make me Over [Dionne Warwick]

Começa por ser uma versão mais jazzy, só com um contrabaixo e voz, do original escrito por Burt Bacharach e Hal David para a Dionne Warwick (1962), mas depois torna-se uma canção cheia de energia.

4-Arctic Monkeys – Baby, I’m Yours [Barbara Lewis]

Adoro este tema! É daquelas canções que sou capaz de ouvir 10 vezes seguidas! Há duas versões gravadas em 1965: a de Barbara Lewis, nos Estados Unidos, que eu prefiro; e a de Peter and Gordon, no Reuno Unido. Do que eu gosto da versão dos Arctic Monkeys é que é está cheia desta boa onda contagiante que só apetece cantar alto.

5-Cassandra Wilson – Harvest Moon [Neil Young]

Uma canção maravilhosa do álbum homónimo de Neil Young de 1992. Mas a Cassandra Wilson, que a gravou em 1995, canta isto de uma forma tão íntima, tão interiorizada que se sente na pele.

6-Cibelle & Devendra Banhart – London, London [Caetano Veloso]

Uma dupla fantástica a cantar London, London, o terceiro álbum de Caetano Veloso que o músico gravou já no exílio londrino, em 1971. Uma canção brasileira com cheirinho de nostalgia. Gosto do jogo de vozes da Cibelle e do Devendra.

7-Caetano Veloso – Get Out of Town [Cole Porter]

Este tema que Cole Porter compôs em 1938 para o musical Leave it to me! deve ser das canções mais “coverizadas” de sempre. Prefiro esta versão do Caetano, precisamente por causa deste som Bossa Nova que ele lhe acrescenta.

8-Rhiannon Giddens & Iron&Wine – Forever Young [Bob Dylan]

Original de 1974 do Bob Dylan, um dos grandes compositores da música folk, que a compôs para um dos seus filhos. Gosto muito da versão do Eddie Vadder desta canção, mas descobri recentemente esta e eu não consigo ficar indiferente à voz do Sam Beam, dos Iron&Wine.

9-Duran Duran – Lay Lady Lay [Bob Dylan]

Descobri esta música por acaso, numa daquelas minhas deambulações pelo youtube. Faz parte de um álbum só de covers, o Thank You, que os Duran Duran gravaram em 1995, e esta é um original do Bob Dylan de 1969. Adoro a voz arrastada do Simon Le Bon a dizer “lay across my big brass bed…”

10-Patti Smith – Smells Like Teen Spirit [Nirvana]

A grande Patti Smith a cantar os Nirvana. Need to say more?

11- Scott Matthew – Love Will Tear Us Apart [Joy Division]

Scott Matthew inclui esta canção numa colectânea só de versões, o Unlernead (2013), que eu tive oportunidade de ver no final de 2013 no CCB e com quem falei a propósito deste trabalho. Foi dos concertos mais contrastantes que eu já vi: ele é enorme, um conversador nato, que está sempre a dizer piadas e depois entra nestas personagens densas, sofridas, quando canta. É simplesmente avassalador.

12-Jeff Buckley – I Know it’s Over [The Smiths]

Não há nenhuma canção que o Jeff Buckley tenha cantado que não tenha ficado maravilhosa. A voz dele arrasta-nos sempre para lugares etéreos. Pode ser a letra mais triste do mundo ou a mais alegre, ele leva-nos lá. Johnny Marr e Morrisey ter-se-ão sentido, sem dúvida, bem representados nesta versão.

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