Literatura – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Sat, 06 Sep 2025 12:45:15 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.9 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Literatura – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 [Opinião] Siddhartha, Hermann Hesse https://branmorrighan.com/2025/09/opiniao-siddhartha-hermann-hesse.html https://branmorrighan.com/2025/09/opiniao-siddhartha-hermann-hesse.html#respond Sat, 06 Sep 2025 12:45:13 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25589

Siddhartha
Hermann Hesse

Editora: Pushkin Press

Nunca vos escrevi sobre a livraria Libreria (vamos deixar isso para outro post), mas sempre que lá vou é difícil não comprar um livro novo. É um dos meus espaços seguros em Londres, com a sua própria selecção de livros que vendem, e foi lá que encontrei Siddhartha, nesta belíssima edição gráfica. Talvez devesse ter vergonha de nunca antes ter lido Hermann Hesse, mas a verdade é que esta foi a minha estreia na sua literatura. Não costumava eu defender que cada livro nos escolhe na devida altura? Pois essa teoria não mudou.

Siddhartha é um dos livros mais ancestrais e mais actuais de sempre. A dicotomia entre esse uma narrativa antiga e ainda assim ser algo tão intemporal, na verdade provocou em mim um sentimento de paz: que no fundo, tal como nos é transmitido a certa altura na leitura, todos somos feitos do mesmo e a nossa origem não é mais do que um momento no tempo, a transição de algo que um dia tomou uma forma completamente diferente. A pedra que foi animal, o animal que foi estrela, a estrela que se tornou parte de um humano.

Foi então impossível não ligar esta leitura ao caminho que percorro no yoga. Siddhartha vem como um lembrete gentil de todas as lições que vamos aprendendo ao longo do nosso percurso como yogi. O início de Siddhartha não é evidente. Quando partilhei que iria começar esta leitura, duas pessoas que me são especiais disseram-me que Siddhartha era um dos seus livros preferidos. Que volta e meia voltam à sua leitura. No entanto, o curioso é que ao início não me prendeu muito. Não considero que seja um início lento, mas o desenvolvimento da empatia e da ligação com Siddhartha tomou o seu tempo a desenvolver.

Na verdade, a minha experiência de leitura com este livro, ecoou muito do caminho que às vezes é desenvolver uma ligação com uma outra pessoa, sendo que na verdade é um caminho para nos encontrarmos a nós mesmos. Acho que uma das mensagens com que mais me identifiquei, é que conhecimento é possível transmitir, mas sabedoria não. Sabedoria só nasce da experiência, visceralmente, da tentativa e erro, de nos perdermos e termos a modéstia suficiente para o reconhecermos e procurarmos a verdade em nós mesmos.

O que tem o seu aspecto frustrante: se vemos alguém que parece perdido na sua missão (como tantas vezes Govinda achou que Siddhartha estava), não temos o impulso imediato de tentarmos ensinar, aconselhar, guiar? Vasudeva mostra-nos na verdade outra forma de o fazer. Este personagem mostra-nos o poder de ouvir e de apenas redireccionar quem amamos para que ouçam algo que vai para além da forma física.

Não vou comentar todo o trajecto de Siddhartha, deixo isso para o leitor explorar e ter a liberdade de se identificar com aquilo que lhe servir, e só reconhecer o que não lhe servir. Porém, sou da opinião que abraçar o ciclo e a mensagem completa deste livro requer um poder de auto-reflexão grande. Exige que entremos em contacto com as nossas emoções e que nos permitamos ouvir no silêncio do universo. Só assim evitamos precisar de toda uma vida de apegos e desapegos para percebermos o quão transitório tudo é, sentindo então liberação.

The river laughed. Yes, that was how it was. Everything that was not suffered to the end and finally concluded, recurred, and the same sorrows were undergone.

E é nesse reconhecimento que está a dádiva: encontrar a liberdade de não viver no passado, nem antecipar o futuro, mas simplesmente aceitar que fazemos parte do todo.

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[Opinião] Nocturnes, Kazuo Ishiguro https://branmorrighan.com/2024/04/opiniao-nocturnes-kazuo-ishiguro.html https://branmorrighan.com/2024/04/opiniao-nocturnes-kazuo-ishiguro.html#respond Sat, 06 Apr 2024 12:36:39 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25518

Nocturnes
Kazuo Ishiguro

Editora: Faber & Faber

Nocturnes foi a minha estreia a ler o prémio nobel Kazuo Ishiguro. Um risco em duas vertentes: já não lia um livro de contos há bastante tempo (anos) e não sei se um livro de contos é a melhor entrada para conhecer o universo de um Prémio Nobel, mais conhecido pelo seu romance The Remains of the Day. Este foi também o seu primeiro livro de contos, após seis romances publicados. No entanto, numa das minhas viagem no início deste ano, enquanto esperava pelo meu vôo no aeroporto, vi o Nocturnes em destaque e quando reparei que eram contos envolvendo música, Itália e Inglaterra, pensei — “Porque não?”.

Estes cinco contos são caracterizados por apresentarem histórias atípicas, personagens que vivem num tumulto interior, enredos insólitos e uma aura a roçar um pouco o lunático. Talvez devido a essa combinação de elementos tão atípicos, mas ao mesmo tempo tão humanos, embora tenha achado alguns dos contos algo inesperados na sua loucura, também fiquei curiosa sobre que fim é que estes pequenos contos teriam. E se existe um tema comum a todos eles, é uma espécie de desencantamento profundo pela vida e pelo amor, aos mesmo tempo que os personagens tentam resgatar esse encantamento através de atitudes e decisões a roçar o absurdo.

Apesar de cada conto quase merecer ser um romance por si só, a verdade é que este registo breve, onde muito fica no ar, onde tanto é deixado à imaginação do leitor, reflecte na perfeição os encontros casuais que temos nas nossas vidas, as informações parciais e como lidamos com elas, as expectativas que nunca saberemos se se irão concretizar ou não. Temos desde actos de amor desesperado a uma resignação profunda de que as nossas emoções são tão transitórias como uma estadia num hotel ou uma viagem às montanhas.

A música, nas suas mais variadas formas — de serenatas, concertos em piazzas, a vinis em pano de fundo ou apenas um sonho pelo qual se está disposto a desfigurar-se a si mesmo (!!!!) — liga os pontos que ficam no ar. Uma espécie de homenagem a uma arte que tem tanto o poder de nos resgatar quanto de nos enfeitiçar com esperanças e sonhos.

Fica a curiosidade de agora ler um romance do autor. Se recomendo Nocturnes? Diria que acho necessário ter uma ligação com a música para além do ouvinte ocasional e estar aberto a uma viagem que nem sempre fará o maior dos sentidos e que beneficiará da nossa compreensão e quase perdão nos momentos mais absurdos. Ainda assim, uma leitura que desfrutei.

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[Diário de Bordo] Um passo de cada vez https://branmorrighan.com/2023/01/diario-de-bordo-um-passo-de-cada-vez.html https://branmorrighan.com/2023/01/diario-de-bordo-um-passo-de-cada-vez.html#comments Sun, 08 Jan 2023 17:42:20 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25412
[Diário de Bordo] Um passo de cada vez

Queridos leitores,

Já passaram alguns meses desde que vos escrevi. O blogue chegou a comemorar 14 anos e pela primeira vez desde a sua existência, não os sinalizei. No entanto, houve pelo menos uma leitora que no próprio dia (13 de Dezembro) me enviou uma mensagem pelo Instagram a desejar os parabéns ao blogue. Desde então que não paro de pensar que realmente este sempre foi um espaço muito especial para mim e que talvez devesse voltar.

Então decidi que em vez de pensar demasiado no assunto, iria escrever só um curto Diário de Bordo para vos desejar um excelente 2023 e mais umas coisas! O meu ano começou isolada (com covid-19 e ainda a recuperar!) e com uma série de desafios (quase de certeza que vou acabar a desabafar com vocês sobre uma série deles), mas também com boas notícias que ajudam a manter a motivação. A ansiedade generalizada continua a ser algo com que tenho de lidar diariamente, mas felizmente um bom terapeuta, uma boa rede de família e amigos e o melhor cão do mundo (os nossos são sempre os melhores do mundo), ajudam a que tudo vá acontecendo um passo de cada vez.

Por falar no Bran, este lindão já está com cinco anos e é realmente uma benção!

Em relação a 2023, não tenho uma lista muito extensa de objectivos. 2022 apanhou-me na curva em muitas coisas — boas e menos boas — e então estou a decidir levar 2023, imaginem, um passo de cada vez, como quem diz, um dia de cada vez. E ao escrever aqui no blogue, estou a dar um desses passos. Confesso que já não me sai tão naturalmente como saía antes. Mas penso que seja normal… A vida por vezes acontece a ritmos alucinantes e a verdade é que desde 2018 que a minha vida parece ter tomado velocidade cruzeiro e algumas coisas ficaram para trás, incluindo ter-me afastado do blogue.

Ainda assim, o meu gosto pelos livros, pela música, pela arte e pela partilha não desapareceram. Tenho o modesto objectivo de ler 24 livros este ano. Dois por mês. Boa parte talvez venha a ser de não-ficção, mas espero que sejam interessantes para vós também. Neste momento, encontro-me a ler A Ordem do Tempo, de Carlo Rovelli e está a ser super interessante. Não quero adiantar muito do que depois vou escrever no texto de opinião, mas acho super interessante a perspectiva (baseada em ciências físicas) que temos do tempo e como vemos passado, presente e futuro e porque é que pode existir condicionamento no processo.

Em termos musicais, por causa do covid-19 falhei provavelmente um dos concertos mais bonitos de Dezembro de 2022 — Indignu, a apresentar o seu novo disco Adeus. Deixo-vos o link para ouvirem no final deste post. Não vou falar muito sobre o mesmo aqui, a não ser que é uma autêntica viagem lindíssima, por vezes triste, mas que vale a pena ser experienciada. É outro dos passos para 2023, voltar a escrever sobre música!

Entretanto, o texto já vai longo! Obrigada pela vossa paciência :)) Se tiverem um tempinho, deixem nos comentários quais os vossos objectivos de leitura e o que estão a ler neste momento! Sabe bem estar de volta. A ver se é desta! Divirtam-se, dediquem-se e amem muito em 2023! Até breve 🙂

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[Opinião] A Boa Sorte, de Rosa Montero https://branmorrighan.com/2022/10/opiniao-a-boa-sorte-de-rosa-montero.html https://branmorrighan.com/2022/10/opiniao-a-boa-sorte-de-rosa-montero.html#respond Sun, 09 Oct 2022 18:19:27 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25407
A Boa Sorte

A Boa Sorte
Rosa Montero

Porto Editora

Porque a beleza ajuda a sarar a dor do mundo. Esta é uma das últimas passagens do livro, e tão bem que o resume. Mais do que sobre beleza e dor, A Boa Sorte é um romance cuja dicotomia, entre o bem e o mal, é a verdadeira protagonista.

Ao conhecermos Pablo, o personagem principal, conhecemos as vísceras da mente humana. É como que se através da sua história nos servíssemos dela para fazer paralelos em que as nossas reacções se assemelham, procurando algum refúgio na solidão dos nossos pensamentos. Para nos ajudar nessa viagem, temos Raluca, uma personagem que simboliza o extraordinário que é manter a alegria de viver após uma vida de trauma, a começar pela sua infância.

Confesso que nem sempre achei o livro ligeiro de se ler. Depois de já ter livro outros livros de Rosa Montero, A Boa Sorte, surgiu-me de início como algo que eu não compreendia bem. Misterioso, sim. Intrigante, sem dúvida. Porém, talvez tenha sido impaciente em querer perceber que trama rodeava Pablo. Se por um lado estava curiosa com aquele homem que a caminho de uma conferência decide sair numa paragem, voltar atrás para um piadeiro completamente escabroso, comprar um apartamento e ali ficar no meio da sujidade… Por outro senti falta de um diálogo interior que nos mostrasse um pouco mais.

Rosa Montero é uma escritora de pormenores e estes saltam à vida. Os personagens que rodeiam Pablo e Raluca são incarnações tão humanas de contrastes entre a avareza e a bondade, a violência surda e a velhice impotente. Há coisas difíceis de aceitar ao longo de A Boa Sorte. Temos descrições de relações familiares falhadas, de amor que deveria ser visceral, inexistente, de maldade patológica e da surpresa da ausência de carinho quando talvez fosse a reacção natural.

Ainda assim, há quem considere este livro uma história de amor. Penso que sim, que talvez o seja. Mais do que isso, penso que é um livro que despe a psique humana, expondo a necessidade que temos de amar e sermos amados, com tudo o que não conseguimos controlar pelo meio. Com mais ou menos suspense pelo meio, é este o percurso que vamos fazendo.

E se há coisa que Rosa Montero conseguiu neste romance foi semear esperança ao longo do mesmo. Nem sempre uma tarefa fácil, quando tudo parece antever um possível fim trágico. No entanto, e talvez por a vida real já poder ser tão trágica, a autora quis-nos deixar de sorriso nos lábios, mostrando um respeito pelo carinho que devemos ter pela vida e pelas segundas e terceiras oportunidades.

Tudo está bem quando acaba bem, e não há melhor consolo que uma boa história de redenção, mesmo que não seja pelo mesmo, mas só como uma tentativa de equilibrar o mal que já paira no mundo e que tantas vezes se aproxima de forma assustadora de nós. A Boa Sorte talvez não fique como uma história memorável, mas sem dúvida ajuda na construção da impressão digital que Rosa Montero deixa nos seus leitores: que o ser humano é imperfeito, complexo, mas ainda assim fascinante.

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O prazer em conhecer Rosa Montero https://branmorrighan.com/2022/09/o-prazer-em-conhecer-rosa-montero.html https://branmorrighan.com/2022/09/o-prazer-em-conhecer-rosa-montero.html#comments Fri, 02 Sep 2022 16:33:47 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25399
Rosa Montero, Feira do Livro Lisboa 2022, Fotografia da Maria João Covas

Desde que há uns anos li A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te que guardo um fascínio e um carinho enormes por Rosa Montero. Nunca a tinha conhecido pessoalmente até ao fim-de-semana passado, no Domingo na Feira do Livro de Lisboa. Se visitarem a tag Rosa Montero aqui no blogue, rapidamente se apercebem do porquê desse meu fascínio. Nos dois livros que li da autora, encontrei uma empatia e uma ressonância que é tão fascinante como um pouco aterrorizadora.

A autora, imiscuindo a sua vida com a de outras personalidades ou personagens criadas por si aborda temas como a dor, a loucura, o luto, a solidão, o amor, a criatividade, entre outros. Tanto no A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te como no A Louca da Casa, Rosa Montero construiu duas obras literárias que nos trazem conforto e segurança pelo simples facto de nos transmitirem – não estás sozinha!

Mal a vi no Domingo o meu sorriso abriu-se! Estava acompanhada da querida Maria João Covas, que nos tirou a foto deste post, e partilhava com ela o meu absoluto fascínio pela escritora espanhola. Quando chegou a minha vez de assinar os dois livros, juro-vos que parecia uma adolescente em frente a um ídolo quase que meia a gaguejar do entusiasmo e algum embaraço de me sentir tão fangirl naquele momento. E Rosa Montero não desiludiu, pelo contrário! Tanto que trouxe o Boa Sorte comigo e que quero ler até ao final do ano. Foi uma querida, agradeceu as minhas palavras e ainda assinou com uma dedicatória com grande carinho.

Já antes neste blogue falei de Saúde Mental. E a verdade é que há tanta subtileza na expressão destes assuntos nos livros de Rosa Montero, principalmente no que diz respeito às emoções fortes, ansiedade e ataques de pânico, que juro-vos que é um conforto abrir os meus livros, todos sublinhados, e encontrar lá escrito aquilo que eu nunca conseguiria colocar tão bem em palavras. Dito isto, é claro que só posso recomendar que leiam a autora. Confesso que não li mais da autora porque gostei tanto, tanto destes livros, que tenho receio que os outros não acompanhem! Eheh, mas até ao final do ano vai haver mais uma opinião quase de certeza! Fiquem desse lado 🙂

Se já leram a autora, por favor deixem nos comentários a vossa experiência! Estou curiosa se é um sentimento generalizado ou se na verdade é algo mais pessoal.

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Voltar à Feira do Livro Lisboa com o Trio Fantástico https://branmorrighan.com/2022/08/voltar-a-feira-do-livro-lisboa-com-o-trio-fantastico.html https://branmorrighan.com/2022/08/voltar-a-feira-do-livro-lisboa-com-o-trio-fantastico.html#comments Sun, 28 Aug 2022 20:36:59 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25389

Quando publiquei a entrada de Já ninguém lê blogues, não sabia que a palavra se ia espalhar tão rapidamente. Ao que parece alguns ainda lêem, ou pelo menos têm visitado o BranMorrighan, o que muito me alegra! E porque é que falo nisto? Porque foi graças ao blogue que há mais de 10 anos atrás, na Feira do Livro Lisboa, comecei a conhecer escritores portugueses — para quem não se lembra, ou não sabe, o blogue sempre teve uma atenção especial autores portugueses — e hoje em dia ainda tenho o maior privilégio em ter alguns como meus amigos.

É o caso do trio fantástico — Filipe Faria, Sandra Carvalho e Rafael Loureiro. No que diz respeito à literatura fantástica em Portugal sempre foram das maiores referências e tenho tido o prazer de fazer parte das suas trajectórias, volta e meia apresentado os seus livros em eventos públicos. Foram uns quantos anos, no auge do blogue, quando a Presença ainda tinha uns sofás na feira do livro onde os autores se sentavam a assinar, que me sentei com eles durante horas em conversa entre autógrafos. Tristezas e alegrias, frustrações e euforias, foi assim durante muito tempo.

Nos últimos cinco anos as coisas tornaram-se mais irregulares. Se contarmos com os últimos 3 de pandemia, não é difícil encontrar explicação. Fui encontrando-os em separado, às vezes de corrida, mas ainda hoje fico fascinada com a ligação especial que sinto com eles e sei ser recíproca. E agora que penso nisto, penso que este ano foi a primeira vez, de sempre, que conseguimos uma fotografia os quatro juntos! Por serem um trio fantástico, por norma têm filas bem grandes de leitores para dar autógrafos.

Foi tão especial vê-los novamente, os três ao mesmo tempo, poder conversar um bocadinho que fosse com cada um e largar umas boas gargalhadas. Enquanto estava com eles, reencontrei também o Rogério Ribeiro, o grande por trás do Fórum Fantástico, que já entrevistei pela primeira vez, imaginem, em 2013! Foi tão bom revê-lo e termos uma pequena walk on memory lane e como as nossas vidas se vão aproximando e distanciando, mas com a paixão dos livros e do fantástico sempre em comum!

Claro que a Feira não foi só este espaço da Editorial Presença, mas 12 anos de convivência com estes três merecem o seu post. Claro que não perdi a a oportunidade de visitar Afonso Cruz, João Tordo, Nuno Nepomuceno, algumas das pessoas que já conheço há tantos anos da comunicação das editoras com o blogue, e… Hoje fui a maior fangirl a visitar a Rosa Montero! Mas deixem-me aproveitar o entusiasmo que tenho sentido em voltar a escrever e depois faço outro post sobre isso. Deixo-vos com pequenas relíquias, de hoje e de anos anteriores. Eu sei que já me ri muito a olhar para elas!

Filipe, Sandra e Rafael, adoro-vos e que maravilha foi termo-nos encontrado nesta altura especial também para o regresso do blogue!

Esta já é de 2014! Tantos autores que visitei naquele dia! Post aqui.
Quando apresentei O Olhar do Açor e Filhos do Vento e do Mar da querida Sandra Carvalho em 2017! Post aqui.

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[Opinião] Princípio de Karenina, de Afonso Cruz https://branmorrighan.com/2022/08/opiniao-principio-de-karenina-de-afonso-cruz.html https://branmorrighan.com/2022/08/opiniao-principio-de-karenina-de-afonso-cruz.html#respond Wed, 17 Aug 2022 10:58:25 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25374
Princípio de Karenina

Princípio de Karenina
Afonso Cruz

Companhia das Letras

O amor corrige o mundo. Mas será a presença do amor suficiente para corrigir o mundo, ou será necessário uma certa intensidade, uma certa proximidade com o desastre e o desespero, para agir? Princípio de Karenina é o primeiro livro da série Geografias de Afonso Cruz, já publicado em 2018. Há uma série de anos que não escrevo sobre os livros do Afonso. Não que não o leia, porque tenho lido todos, mas porque receio sempre cair nos lugares comuns, de me repetir, de não ter nada de novo para dizer. Li o Princípio de Karenina, pela primeira vez, pouco depois de ter sido publicado. Esta semana, decidi relê-lo.

Acho que nunca me vou cansar de me sentir fascinada com o efeito de reler um livro, constatando que a nossa posição no mundo, o nosso estado de espírito quando lemos um livro, tem um efeito tremendo na forma como o lemos, como o interpretamos. E talvez por Princípio de Karenina evocar precisamente esse sentido de viagem, ao mesmo tempo de imobilização, dei conta de vários efeitos muito subtis que não tinha sentido na primeira leitura.

E o primeiro efeito, e talvez o mais surpreendente para mim, foi a empatia ampliada pelo protagonista. E, talvez, se já leram o livro, vocês vão pensar: como é que é possível? Por tantas razões. Comecemos pelos deimos e phobos, unidades do medo. Apesar do nosso protagonista ter sofrido um condicionamento brutal por parte do pai, estes deimos e phobos não deixam de existir para quem sofre de uma certa ansiedade espacial. A forma como se mede o desconforto e o risco ou a confiança numa determinada acção poderia certamente usar estas medidas.

Enquanto este pai escreve esta carta de amor à sua filha (porque não deixa de ser uma carta de amor), vivemos com ele uma viagem de aproximações e afastamentos, um medo irracional do desconhecido à distância da porta de entrada da casa, que só começa a ser desconstruído quando um agente estrangeiro entra precisamente por aquela mesma porta. Se até então as janelas deviam estar sempre fechadas, há uma janela que se abre e que se torna impossível de fechar. E se por um lado esta janela representa esperança, a mesma não é capaz, com toda a sua luz, de afastar o medo da mudança e o comodismo.

Até ao dia em que contratámos a tua mãe, eu vivia uma rotina amável, a meia-luz, sem sobressaltos, cego às dores alheias. A partir desse instante, a solidez da minha rotina começou a abrir uma brecha por onde entrava luz. A presença dela haveria de perturbar o tédio nosso de cada dia, abrindo uma janela por onde quer que passasse.

Princípio de Karenina é uma ode à fragilidade e à força humana. Dois pesos que se tentam equilibrar de forma constante, mas muitas vezes de forma muito precária. Quem é que termina este livro e não fica a pensar também no Dois Metros e na cegueira (in)consciente? Quantos Dois Metros temos nós nas nossas vidas? Quem é que não fica a pensar na forma cega como às vezes se fica obcecado com um amor para depois, depois de tantos actos potencialmente irreflectidos e irracionais, se aperceber que afinal era algo oco? Também a finitude, a morte, tem um papel importante tanto na nossa coragem como na nossa cobardia.

Mas aliviemos a seriedade deste texto, que já vai longo, e passemos à leveza dos pormenores belíssimos da escrita de Afonso Cruz. É aqui que provavelmente me vou repetir, mas depois de tanto tempo sem o fazer, tenho a certeza que vocês me perdoam. Como já nos foi habituando, também Princípio de Karenina é rico não só em referências literárias (penso que o título fala por si mesmo) como também é encantador na forma como mistura e reinventa conceitos científicos e filosóficos.

Dado que esta obra resulta também de uma viagem do autor ao Vietname e ao Camboja, não será de estranhar a referência à Cochinchina e a forma como o autor entrelaça a forma como usamos a expressão à sua referência espacial. A certa altura do livro, o protagonista tem uma guia turística, a Sun — thank you so much — e eu só me ria a imaginar o próprio autor a interagir com esta pessoa e a trocar aqueles diálogos. E há sempre algo de especial quando sentimos uma experiência real no meio de um romance.

Quando ouvi a palavra Cochinchina, sem me aperceber de que era o amor que eu temia e não o monstro da minha infância, levantei-me e disse gravemente, tal como teria feito o meu pai num a situação idêntica se fosse ameaçado pelo estrangeiro ou pelo amor: fechem as janelas.

No geral, Princípio de Karenina irá tocar cada um de nós nos nossos nervos mais sensíveis. Apesar da minha empatia acrescida pelo protagonista, não posso dizer que seja um personagem fácil de gostar e se talvez nem seja suposto. No entanto, a sua evolução ao longo da estória culmina numa espécie de redenção que atenua as infinitas formas de imperfeição que é a vida humana.

Como esta dissertação já vai mais que longa, deixo uma última referência ao papel da deformidade, da música, de todas as imperfeições que nos acompanham, que nos salvam e nos condenam e como ainda assim está sempre do nosso lado a dúvida sobre se a felicidade é um caminho ou um destino.

É certo que: Existem infinitos lugares para estar errado, apenas um para estar certo, dois e dois tem um resultado correcto e infinitos resultados errados. É assim que funciona a entropia e os copos partidos/inteiros. Existem inúmeras configurações para os cacos de vidros partidos, mas apenas uma para ter o copo original. Todos os quadrados perfeitos, se nos abstrairmos das suas dimensões, são iguais. São as mazelas, as imperfeições, que fazem ‘quadrados’ diferentes, imperfeitos.
Porém, a felicidade não obedece a essas regras. Estar no lugar errado pode ser fonte de felicidade. Matar-me pode ser fonte de felicidade. Não há condições certas para ser feliz. Existem condições propícias para se estar contente, ou momentaneamente feliz, mas não para ser feliz. Todas as disposições de cacos de vidro podem ser modelos de felicidade. Disposições imperfeitas, cada uma à sua maneira, mas felizes, cada uma à sua maneira.

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[Opinião] A Tentação de Sermos Felizes, de Lorenzo Marone https://branmorrighan.com/2022/08/opiniao-a-tentacao-de-sermos-felizes-de-lorenzo-marone.html https://branmorrighan.com/2022/08/opiniao-a-tentacao-de-sermos-felizes-de-lorenzo-marone.html#comments Sun, 14 Aug 2022 10:26:50 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25366
A Tentação de Sermos Felizes, de Lorenzo Marone
Porto Editora

A Tentação de Sermos Felizes engana-nos logo pela capa e pelo título. O que é que quero dizer com isto? Quero dizer que, se forem como eu, à primeira vista parece um romance de algibeira e, novamente, se forem como eu, isso pode fazer com que não seja muito atraente à primeira vista. No entanto, este livro foi-me oferecido por uma grande querida amiga minha e isso fez com que pegasse nele mais cedo ou mais tarde. A surpresa boa é que podia ter pegado nele mais cedo!

Este romance é narrado por um idoso, Cesare, de 77 anos que vive agora sozinho num apartamento num prédio habitado por personalidades bastante singulares. A senhora dos gatos, o amigo velhote que já não sai de casa e agora um casal mais jovem cuja relação desperta curiosidade desde o início. Para além disso, tem dois filhos, Sveva e Dante, cujas personalidades são tão distintas e com quem se desleixou durante tanto tempo. A sua rotina diária vê laivos de chama quando interage com Rossana, a sua “enfermeira”. Ao mesmo tempo que o enredo se desenrola no presente, Cesare vai-nos contando sobre três mulheres inacessíveis que ficaram no seu passado.

A Tentação de Sermos Felizes é muito mais do que um romance, é uma dissertação sobre a velhice e a solidão, um relato cru e realista sobre o que as não decisões podem provocar a longo prazo. Também o tema da violência doméstica e do custo do silêncio, mesmo a pedido das vítimas, é brutalmente arrebatador. A homossexualidade dentro da família, os amores não vividos, os filhos a herdarem comportamento dos pais, o preconceito com outras classes sociais e conclusões tiradas antes do tempo, tudo narrado sem falinhas mansas, fazem desta obra e destas personagens uma pequena relíquia.

Lorenzo Marone constrói neste livro uma narrative inteligente, mordaz, sensível e comovente, ao mesmo tempo que nos provoca uma constante reflexão. Enquanto não se vive uma dor na primeira pessoa, não podemos entendê-la. E, no entanto, quantas pessoas usam impropriamente as palavras “como eu te entendo”. Não entendes mesmo a ponta de um corno, meu lindo, era o que devíamos responder-lhes. Sai daqui uma bela recomendação. Quem sabe para o final do vosso Verão. Podem comprar aqui.

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[Opinião] Spark: The Revolutionary New Science of Exercise and the Brain, de John J. Ratey, MD, com Eric Hagerman https://branmorrighan.com/2022/05/opiniao-spark-the-revolutionary-new-science-of-exercise-and-the-brain-de-john-j-ratey-md-com-eric-hagerman.html https://branmorrighan.com/2022/05/opiniao-spark-the-revolutionary-new-science-of-exercise-and-the-brain-de-john-j-ratey-md-com-eric-hagerman.html#respond Sun, 15 May 2022 16:05:55 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25268
Spark: The Revolutionary New Science of Exercise and the Brain

Spark: The Revolutionary New Science of Exercise and the Brain

John J. Ratey, MD
Eric Hagerman

Editora: Little, Brown Spark

Desde há uns anos para cá que o meu interesse pela forma como o nosso cérebro funciona tem aumentado exponencialmente. Tudo começou com uma pequena proposta de explorar uns dados de fMRI de pessoas com esquizofrenia, que me deixou com mais perguntas do que respostas. Spark não é sobre esquizofrenia, mas deu-me imensas respostas sobre tantas outras perguntas que já tinha feito, e até algumas em que nunca tinha pensado.

Fazer exercício e praticar desporto é tanto o maior aliado de muitas pessoas como também o grande Adamastor de outras tantas. Já tendo sido atleta de alta competição, lembro-me bastante bem da grande maravilha e adrenalina que era estar em pico de forma. No entanto, três cirurgias depois, também conheço a sensação de só de pensar em fazer exercício e querer ficar ainda mais quieta… Não é fácil começar, mesmo sabendo que a médio-longo prazo vai compensar.

Spark começa com John J. Ratey a contar-nos a história de uma escola americana que não costumava ter grandes resultados académicos até terem começado a abordar a educação física de uma forma diferente. O caso de estudo de Naperville, Illinois, é bem conhecido pelos familiares da área, mas parece-me pouco divulgado pelo mundo. Se correr com regularidade aumenta a capacidade cognitiva e performance escolar, porque é que esta reeducação não está a ser feita pelo mundo inteiro? Mais do que obrigar as crianças a correrem porque sim, porque não educar tanto alunos como professores de que forma é que o exercício físico pode fazer toda a diferente no presente e futuro tanto ao nível dos estudos como de saúde?

O que mais me agrada em Spark é precisamente a forma como está documentado e a sua acessibilidade mesmo para quem possa não ter grandes bases científicas. Começando com este exemplo da escola de Naperville, o autor leva-nos por uma série de capítulos em que aborda o impacto do exercício físico tanto a nível micro como macro. Stress, depressão, doenças neuro-degenerativas, motivação, bem-estar e ansiedade, são apenas alguns dos tópicos referenciados. Mais do que isso, os autores revelam mecanismos e ferramentas para optimizar a prática e os seus benefícios.

E para quem já está a levar as mãos à cabeça, a maior parte dos estudos que destacam os benefícios do exercício físico na saúde física e mental têm como referência caminhadas! E para nos ajudar, referenciam os intervalos do ritmo cardíaco a que devemos chegar e durante quanto tempo. Hoje em dia temos pulseiras e relógios a preços acessíveis que nos permitem rastrear o nosso ritmo cardíaco e a qualidade do sono. Podemos usar essa informação como guia para alterarmos o nosso dia e aumentarmos a nossa qualidade de vida. Não tem tanto a ver com o livro, mas por estas razões recentemente adquiri uma e se quiserem depois posso dar-vos o meu feedback.

Resumindo, a escrita deste livro está no tom certo (li esta versão em inglês, não encontrei tradução em português), a narrativa tem tanto dados científicos como exemplos reais e é impossível chegar ao fim sem pelo menos ficar com o bichinho de nos começarmos a mexer um pouco mais diariamente. Não só porque estarmos fit nos proporciona a oportunidade de nos sentirmos bem e confiantes na nossa pele, como também pelos efeitos a nível de rejuvenescimento e retardamento do envelhecimento a nível celular. Recomendo a leitura!

Outras Leituras

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Recensão: Música Negra, de Leroi Jones, por João Morales https://branmorrighan.com/2022/03/recensao-musica-negra-de-leroi-jones-por-joao-morales.html https://branmorrighan.com/2022/03/recensao-musica-negra-de-leroi-jones-por-joao-morales.html#respond Thu, 24 Mar 2022 14:10:52 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25244
Música Negra, de Leroi Jones (Amiri Baraka; trad. de João Berhan; ilustr. de Francisco Vidal)

Sons que fotografaram almas

Os escritos de LeRoi Jones são proféticos e perspicazes. A forma como nos fala no nascimento do Free Jazz, que acompanhou em tempo real, é também uma abordagem sagaz ao papel da música como real forma de expressão colectiva.

João Morales

A páginas tantas, lemos: “Pharoah e Coltrane são farinha do mesmo saco, um saco onde vão cabendo cada vez mais músicos, mais do que Trane alguma vez poderia ter imaginado. Sanders está a ficar cada vez melhor, ainda vamos ouvir falar dele” e percebemos um dos pontos mais interessantes deste livro, primeira tradução para português, pela mão da editora Orfeu Negro (traduzido por João Berhan). Música Negra, de Leroi Jones (que assumiria mais tarde o nome de Amiri Baraka) é composto por diversos textos nascidos em pleno período criativo do mais disruptivo jazz que pautou a década de 60, a génese do Free Jazz, da integração da música como expressão de uma forma de estar, de um tempo e de uma condição, mais evidente na cor da pele, muito mais profunda do que isso. 

“Acho que foi Martin Williams o primeiro a dar-lhe esse nome, quando estávamos no Five Spot a curtir a primeira aparição de Ornette Coleman”, recorda Jones (1934-2014), teórico, crítico musical, poeta, declamador, activista, ensaísta, figura de proa da New Thing, a Nova Cena, designação a que se refere.

O fascínio destes textos, autêntico mergulho na História, reside na sua simplicidade. Escritos no “olho do furacão”, ou seja, no centro das movimentações artísticas da década de 60 que consolidaram o Jazz como uma música devedora de tensões e ambições, acabam por enformar também a relação entre a negritude e o país das oportunidades: «Uma das coisas mais desconcertantes acerca da América é o facto de, apesar do seu perfil essencialmente desprezível, continuar a conter tanta beleza. Talvez seja como muitos pensadores disseram: que é graças ao seu carácter desprezível, ou chamemos-lhe adverso, que tamanha beleza existe. (Para equilibrar?)», assim começa um escrito de 1964, que encerra com uma esclarecedora provocação: «E se tivermos Sonny [Rollins], Trane e Ornette Coleman a tocar ao mesmo tempo, podem parar de me dizer que Paris é que está na moda».

Para Jones, a música que está a nascer é um manifesto resultado das contingências sociais e de toda uma conjuntura sociológica, económica, política, que deixará marcas e imporá mudanças. «Tento explicar a «vanguarda»: homens para quem a história existe para ser utilizada nas suas vidas, na sua arte, para fazer algo para si próprios e não como lembrança avassaladora das pessoas e das ideias que viveram, antes deles”.

O devir do Jazz é apresentado como uma tradução do próprio devir histórico, indissociável das transformações da sociedade. A música nunca é apenas arte, mas antes uma emanação da sociedade em que nasce, causa e consequência. “A primeira música que os negros fizeram neste país tinha de ser africana; a sua subsequente transmutação para aquilo que conhecemos como Blues e o desenvolvimento paralelo do Jazz demonstraram a espantosa flexibilidade do seu carácter inicial (…) O blues foi a música afro-americana inicial; o bebop uma nova ênfase na tradição não-ocidental. E se o último nos salvou dos resquícios insípidos do Swing, a nova vanguarda – e John Coltrane – sozinhos, salvam-nos agora de uns anos 50 comparativamente enfadonhos”.

Através de vários destes textos, autêntica arqueologia da crítica musical, podemos encontrar algumas pistas para uma análise mais detalhada, aprofundada, de toda a questão que rodeia a improvisação no jazz, como numa análise extraordinária a um álbum mais ou menos obscuro de Gil Evans e a sua orquestra, Into the Hot, disco de 1962 que integra no seu alinhamento algumas composições de um seminal Cecil Taylor: “O Cecil é um solista fantástico, mas as suas composições demonstram até que ponto a sua música poderá ser preservada enquanto música anotada. Parece estar muito mais consciente da possibilidade de esta ser tocada por outros além de Coleman”. 

Sun Ra, Albert Ayler, Arche Shepp, John Tchicai, Burton Greene, a editora ESP, os lofts onde ocorrem improvisações informais, são outras referências que habitam estes textos. E há ainda outros dois motivos de forte interesse, que engrandecem de modo indiscutível esta edição.

O prefácio de Kalaf Epalanga (mais conhecido pela sua prestação nos Buraka Som Sistema) bem informado e contagiante, é uma óptima porta de entrada para o que se segue, não escondendo a devoção, revelando a importância do Jazz na formação do músico (e até encontramos uma alusão certeira ao mundo dos melómanos e das lojas de discos usados). Começa logo por evocar a noite de 1 de Agosto de 2201, quando Amiri Baraka se apresentou no Jazz em Agosto, da Fundação Calouste Gulbenkian, adequadamente acompanhado pelo New York Art Quartet (John Tchicai, no saxofone, Roswell Rudd, no trombone, Reggie Workman, contrabaixo, e Milford Gravres, bateria).

Acrescenta como vê este livro, “um guia de como ouvir e entender este género musical tão complexo como a própria ideia da América, um movimento cultural que atravessou gerações, continentes, e que foi o protótipo para o rock & rol e o hip-hop”. Kalaf realça o carácter eminentemente político – no sentido lato do termo – que a visão transversal destes textos acarreta, citando Jones: “Já o músico negro, ele pega no seu instrumento e começa a tocar sons em que nunca ante havia pensado. Improvisa, cria, vem-lhe de dentro. É a sua alma, é a tal música soul… Logo, ele também consegue fazer o mesmo se lhe derem independência intelectual… Pode inventar uma sociedade, um sistema social, um sistema económico, um sistema político que seja diferente de tudo o que existe neste planeta. Vai improvisar, fazer nascê-lo de dentro de si. E é isto que todos queremos”.

A complementar tudo isto, é mais que justo referir as ilustrações de Francisco Vidal, sóbrias e estilizadas, adequam-se perfeitamente criando momentos de respiração, integrando-se na leitura de forma competente e personalizada. 

Em suma: um livro importante pela informação que nos traz sobre a fase inicial de um dos momentos em que o Jazz assumiu uma maior rotura, regressando, em certa medida, a uma raiz anterior, corporizando na música emergente toda a necessidade de consciência social, o que se viria a repetir em outras épocas. Mas também, um livro importante para descobrirmos um teórico e crítico musical atento e visionário, que teve a oportunidade de acompanhar alguns dos maiores nomes do Jazz no momento da sua ascensão inicial. E fixar esse momento. 

Música Negra
Leroi Jones (Amiri Baraka; trad. de João Berhan; ilustr. de Francisco Vidal). 
Orfeu Negro
296 págs

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