Música – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Wed, 14 Aug 2024 09:02:01 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.1 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Música – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 Jazz em Agosto 2024 – As mãos dele são barcos [The Locals] https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-as-maos-dele-sao-barcos-the-locals.html https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-as-maos-dele-sao-barcos-the-locals.html#respond Wed, 14 Aug 2024 08:59:07 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25536 Jazz em Agosto 2024 – As mãos dele são barcos [The Locals]

A noite de dia 9 de Agosto foi dedicada à música de Anthony Braxton, reinventada pelo quinteto The Locals, com Pat Thomas e Alex Ward a liderarem uma noite surpreendente. Uma roupagem servida por batida Funk, acabava por desvendar a complexidade do compositor de Chicago. Mas aí, já estávamos todos rendidos…

Texto: João Morales

Fotos: Vera Marmelo/ Gulbenkian Música

Como tinha anunciado, a presença do Blog Bran Morrighan no Jazz em Agosto 2024 foi um bocadinho “de fugida”, mas concertos como este fazem justiça à qualidade habitual do certame que, recorde-se em abono do merecido elogio, completa este ano quatro décadas de um metódico, insistente e coerente percurso, desde a sua edição inicial, composta apenas por projectos nacionais, desbravando a partir daí a imensa paisagem que brota das fusões e derivações a que um género musical desta natureza sempre esteve assumidamente sujeito. Uma palavra de apreço a todos os programadores que desenharam estes 40 anos e, naturalmente, a casa que acolhe o encontro, cujos nomes já se confundem pela sua natural predisposição para uma atenção constante à actualidade à memória.

Passemos então ao concerto da noite e 9 de Agosto. Mal começa o primeiro tema, entendemos que a música em questão vive de dois factores: por um lado, a riqueza das composições de Anthony Braxton, o padroeiro cujas composições estão na origem e na energia que move este quinteto, por outro, a sombra de um certo Funk, constante e assaz flexível, que transporta estes temas para um novo universo, proporcionado terreno fértil para a versatilidades dos músicos agrupados, The Locals.

O projecto (fixado em CD em 2021, “Plays the Music of Anthony Braxton”, embora se trate de uma gravação ao vivo de 2006) surge com o nome de Pat Thomas à cabeça, histórico pianista fortemente influenciado pelo jazz mais livre (nasceu em 1960), que já se cruzou com músicos como Lol Coxhill, Steve Beresford, Thurston Moore, Phil Minton ou Eugene Chadbourne. Já passou mais que uma vez pelo Jazz em Agosto, sendo as presenças mais recentes com o quarteto Ahmed, em 2022, e integrado no Trance Map +, de Evan Parker, no ano seguinte.

Thomas é de uma agilidade assinalável, as suas mãos percorrem o teclado com mestria, esquerda e direita trocam facilmente de posicionamento, vagueiam ou matraqueiam o teclado com o primor de quem sabe bem em que águas navega. As suas mãos são barcos, conhecedores das marés em que se movem, ditando mesmo a cadência das vagas, quando necessário. Nota-se bem uma sabedoria antiga, no discurso musical, na escolha dos momentos para abrir “hostilidades”, acolher “consensos”, promover conjugações.

Contudo, há um outro elemento fundamental para o sucesso desta ideia feita grupo que, não só sublinha, mais uma vez, a riqueza da escrita de um dos fundadores da mítica Association For the Advancement os Creative Musicians (AACM), na década de 60 do séc XX, como transporta essa mesma música para uma dimensão distinta, marcada por uma secção rítmica rígida (mas atenta e competente), trazendo consigo heranças de outras famílias sonoras, como o Harmolodics ou o M-base – sendo, necessariamente, uma coisa diferente.

E esse elemento é o magnífico clarinetista Alex Ward (n. 1974). Com 12 anos de idade conheceu Derek Bailey, uma das sumidades da nova música improvisada, no ano seguinte tocou com ele (na lendária formação variável Company) e, em 1991, grava o seu primeiro disco, com o percussionista Steve Noble, justamente na Incus, a chancela de Bailey. Descubram-no em The Convergence Quartet; Son/ Dance (Clean Feed; 2010)

Ward solou com toda a elegância ao longo da noite, integrando o seu discurso em momentos imbuídos de um certo Free-Funk, ou Funk-Rock, em passagens herdeiras de um reggae bastante artesanal (como no último tema, antes do encore), em trocas de galhardetes com o piano de Thomas ou a secção rítmica (em especial a guitarra de Evan Thomas), em sequências de exploração colectiva que traziam de novo à tona a essência experimentalista que move estes homens (como o encore, que começou com uma balada, para derivar rapidamente em cascata de várias frentes), ou deambulando em contramão com a simplicidade aparente que o invólucro sabiamente potencia.

O quinteto tocou cinco temas, mais um encore, tendo o baixista Dominic Lash (n. 1980, com um percurso que engloba prestações com John Butcher, Evan Parker, Joe Morris ou o histórico Tony Conrad, nome maior do minimalismo) trocado o eléctrico pelo contrabaixo em duas das faixas, curiosamente, mostrando-se mais flexível nesse registo. A formação foi completada com o baterista Darren Hasson-Davis, figura com um percurso essencialmente académico, no ensino de bateria.

No final, perante uma audiência alargada, cinco homens demonstraram como a música permite várias abordagens a uma mesma composição, como o essencial se prende com a alegria da comunhão e como nunca estão esgotadas as vias de acesso a um estilo ou um músico. Pelo menos, para quem conhece bem as águas em que navega.

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Jazz em Agosto 2024 – Um corpo colectivo [dieb13 Beatnik Manifesto] https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-um-corpo-colectivo-dieb13-beatnik-manifesto.html https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-um-corpo-colectivo-dieb13-beatnik-manifesto.html#respond Wed, 14 Aug 2024 08:54:29 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25529 Jazz em Agosto 2024 – Um corpo colectivo [dieb13 Beatnik Manifesto]

Se a beat generation assentou na glorificação do individuo, este Beatanik Manifesto inverte os pressupostos e faz do som colectivo, da orquestração, a sua mais-valia.

Texto: João Morales

Fotos: Vera Marmelo/ Gulbenkian Música

Quando pensamos em Beatnik, a imagem que nos ocorre é de um indivíduo – viajante, bardo, aventureiro – mas um indivíduo. O projecto Beatnik Manifesto, concebido e coordenado por dieb13, assenta precisamente num pressuposto invertido, ou seja, ao longo do espectáculo o que sobressai é a dinâmica colectiva, a sonoridade obtida pela conjugação do extenso leque de músicos e a dimensão quase maquinal que se obtém com esse efeito. O simples facto de não ter sido dirigida ao público uma única palavra, entre o início e o final do concerto, bem como a ausência de qualquer apresentação dos músicos, não parece ser casual, antes acentua essa mesma construção.

Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, final da tarde de dia 9 de Agosto. O palco encontra-se repleto, são 14 músicos, incluindo dieb13, responsável pela composição desta peça (distribuída por vários movimentos), montagem das imagens de vídeo a que vamos assistindo e manipulação de um gira-discos. Este austríaco (cujo nome é Dieter Kovačič) tem trabalhado em colaboração com diversos nomes da vanguarda do Jazz, como John Butcher, Mats Gustafsson ou Günter Müller.

A orgânica desta pequena orquestra assenta na repetição de instrumentos: duas baterias, dois contrabaixos, duas guitarras eléctricas, dois clarinetes-baixo e um sax alto, dois manipuladores de electrónica. E uma dupla de vozes ao centro: Karolina Preuschl e o histórico Phil Minton (nome que se associa rapidamente a Mike Westbrook, Veryan Weston ou Roger Turner). Logo a abrir surgem palavras na tela que ajudam a contextualizar: Beatniks We Are. A voz que ouvimos é a de Minton e, sobre um crescendo dos sopros, demonstra um pouco das suas capacidades, começando pela leitura (ora suave, ora quase gritada), fazendo brotar perante os nossos olhos figuras que remetem para o universo do cartoon, sussurrando, graduando a cadência da respiração, percorrendo um manancial de efeitos torácicos que só ele conhece.

As imagens vão surgindo na tela, ora um cenário marinho e as suas vagas, ora rostos como os de Donald Trump ou Allen Ginsberg, ora animais fosforescentes. As duplas de instrumentos semelhantes dão, várias vezes, azo a diálogos mais ou menos frenéticos, como foi a dupla de guitarras eléctricas de Sandy Ewen e Finn Loxbo, ou as baterias de Erik Carlsson e Camille Émaille.

A composição que vai avançado assenta nas suas possibilidades orquestrais, sendo que o factor de improvisação está também presente de forma mais ou menos constante, embora sem que seja o de maior evidência. Ou seja, por cima da conjuntura colectiva vão discorrendo os diferentes naipes e, aí sim, há margem de manobra para confrontar o material já composto.

Há vários momentos de maior intensidade, como o despique entre os três instrumentos de palheta, a passagem em que os Karollina e Minton vocalistas assobiam com o nariz tapado, criando efeitos incríveis, a dinâmica entre declamação, quase no domínio da acalmia, e uma intervenção das vozes mais aguerrida (Minton esteve igual a si mesmo, com os trejeitos de corpo, o jogo de aproximação/ afastamento ao microfone e a sábia gestão de inspiração e expiração).

Uma pequena nota para reflectir sobre uma opção – legítima – que tem vindo a ganhar terreno em alguns locais de concertos (que a não tinham). Durante anos habituámo-nos a encontrar uma folha de sala, não apenas com informação referente aos músicos envolventes e respectiva instrumentação, mas também algumas considerações/ contextualização sobre o que vamos e ouvir. Numa lógica de sustentabilidade ambiental, várias são as instituições que abandoam a criação e difusão dessa mesma folha. Contudo, seria de reflectir sobre a pertinência da sua permanência.

A energia colectiva gerada pelas dinâmicas conduzidas por dieb13 resulta com eficácia em cada movimento, talvez falhando um pouco a noção de globalidade, a ligação entre as várias partes. Há um regular fluxo de tensão que não cede a repetições ou lugares-comuns, demonstrando uma vitalidade assinalável, explorando caminhos nem novas incursões na tantas vezes designada terceira via, ou seja, a confluência entre música composta e o espaço destinado a acolher a perspectiva individual que significa a improvisação. No fundo, como o Jazz tantas vezes tem feito ao longo da História.

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Jazz em Agosto 2024 – Com as cordas da alma [Darius Jones FluxKit Vancouver] https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-com-as-cordas-da-alma-darius-jones-fluxkit-vancouver.html https://branmorrighan.com/2024/08/jazz-em-agosto-2024-com-as-cordas-da-alma-darius-jones-fluxkit-vancouver.html#respond Sun, 11 Aug 2024 11:48:19 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25522 Jazz em Agosto 2024 – Com as cordas da alma

Este ano em versão reduzida, a presença do Bran Morrighan no Jazz em Agosto mantém-se. E começamos bem, com um dos mais aclamados saxofonistas do momento e um projecto que junta quatro cordas e uma bateria ao seu sax alto. 

Texto: João Morales

Fotos: Vera Marmelo / Gulbenkian Música

Darius Jones e o seu projecto conquistaram o anfiteatro ao ar livre da Fundação Calouste Gulbenkian, amplamente preenchido, rendido à simpatia sonora – que se confirmou quando o músico se dirigiu ao público. O programa para esta noite da 40ª edição do Jazz em Agosto estava delineado, com as antenas apontadas para a apresentação da suite “FLuxKit Vancouver”, construída em quatro partes. E assim foi. Com algo mais, no final.

Unanimemente considerado um dos grandes nomes do Jazz actual (“capaz de «rajadas» articulados e fugazes, bem como sequências equilibradas, confirma que é um dos saxofonistas mais interessantes dos nossos tempos”, escreveu – acertadamente – o português Filipe Freitas no site Jazz Trail, justamente a propósito deste álbum), além dos discos que tutelou, Darius Jones tem deixado a sua marca em álbuns de gente como William Parker, Sabir Mateen, William Hooker ou os Ceramic Dog, de Marc Ribot.

O conceito que nos trouxe, lançado em álbum em 2022, nascido de uma encomenda do Centro de Artes Western Front, em Vancouver, junta elementos de Música de Câmara, com a improvisação fluída do soprador que lidera o combo, algumas passagens com um cheirinho de Jazz-Rock, contando com a experiência e valências criativas de todos os intervenientes.

Logo no início percebemos como Gerald Cleaver, o baterista, será fundamental na definição do ritmo e do ambiente sonoro que impera a cada momento. Um músico extremamente competente (tem deixado a sua marca em diversos trabalhos com Mathew Shipp ou profícuo saxofonista brasileiro Ivo Perelman), sem alaridos exibicionistas. Aliás, um dos factores que marcam todo o concerto é a extrema unidade conseguida entre todos os elementos do sexteto, congregando em si uma espécie de mecanismo orgânico que respira a uma só voz, mesmo quando ela é construída por duas facetas (o que acontecerá, amiúde) – o naipe de cordas e o saxofone, em complemento.

Jones sopra em frases curtas e sincopadas, raramente se deixa arrastar para momentos de elevada continuidade. Mas quando o faz, transporta-nos consigo, espremendo a palheta com a mesma verdade com que nos encantou. Há um elemento constante de espiritualidade na sua música, nas suas ideias, que evocam outros territórios. Se a sua voz transporta heranças como a de Ornette Coleman (e até o formato escolhido para esta apresentação faz lembrar “Skies of America”), há também resquícios da procura de um Coltrane em final de percurso ou até da Mahavisnu Orchestra (na sua versão alargada de “Apocalypse”). E tudo faz sentido.

James Meger, o contrabaixista de serviço, já trabalhou com Kris Davis e Wayne Horvitz ou estevem palco com a Now Orchestra. Discreto, sem ser supérfluo, hipnotizante quando a conjuntura o pedia, também teve o seu tempo de improvisação a solo. 

A dupla de violinos esteve entregue a um par de irmãos, Jesse e Josh Zubot. Filhos de um baterista ouvinte de free jazz, estavam “condenados” à música. O seu papel no que escutámos é essencial, traçando linhas de orientação ao longo de várias passagens, alternado entre si a criação de um fundo com o dedilhar das cordas, correndo em simultâneo os arcos com a rudez pretendida para que se sinta, várias vezes em contraponto à doçura de Jones, contribuindo, em grande medida, para o ambiente vanguardista do início do séc. XX que várias vezes assomou perante nós.  

Claro, o trio de cordas contava com mais um elemento, um nome de peso na improvisação, um dos cartões-de-visita do Canadá.  Colaboradora reconhecida do baterista Dylan van der Shyff, do trompetista Dave Douglas ou do teclista Wayne Horvitz, cruzou-se com sumidades como Butcher Morris, René Lussier ou o “nosso” Carlos Zíngaro, com quem assinou “Western Front; Vancouver 1996”. Isto anda tudo ligado, como diria Eduardo Guerra Carneiro. E a violoncelista não deixou os seus créditos por mãos alheias, assinando alguns momentos de grande cumplicidade, quer com Jones, quer com a dupla de violinos que a acompanhava. 

Referiu-se a dimensão espiritual, e não por acaso. Ainda antes do encore (“não preparámos nada, esta é uma peça completa, que apresentámos, mas alguma coisa se arranjará para vocês”, ironizou Jones), ao apresentar a quarta parte da suite que serviu de trave-mestra ao concerto, o saxofonista (e compositor) explica-nos a razão do título dessa parte, “Damon and Pythias”, vindo de uma lenda grega. Pythias foi preso e pede ao Rei que o liberte, precisa de tratar de alguns assuntos. O Monarca aceita, na condição de alguém tomar o seu lugar, até ao seu regresso. Damon é esse alguém e, contra todas as expectativas, Pythias regressa, para assumir a sua palavra e as suas consequências. O Rei, abismado, liberta ambos. “E vocês, têm algum amigo assim?”, pergunta Jones ao público. Ao longo dessa peça, Darius Jones vogava pelo palco, tocando longe do microfone, mas já muito próximo de nós. 

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[Reportagem MDX] A Estreia Catártica de The Pineapple Thief em Portugal e a Magia Progressiva de um Concerto Memorável https://branmorrighan.com/2024/03/reportagem-mdx-a-estreia-catartica-de-the-pineapple-thief-em-portugal-e-a-magia-progressiva-de-um-concerto-memoravel.html https://branmorrighan.com/2024/03/reportagem-mdx-a-estreia-catartica-de-the-pineapple-thief-em-portugal-e-a-magia-progressiva-de-um-concerto-memoravel.html#comments Sat, 16 Mar 2024 14:33:12 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25513

Reportagem original: https://www.musicaemdx.pt/2024/03/05/a-estreia-catartica-de-the-pineapple-thief-em-portugal-e-a-magia-progressiva-de-um-concerto-memoravel/

Faz já quase duas semanas que me desloquei ao Lisboa ao Vivo para ver The Pineapple Thief, banda que conheci há já 16 anos atrás e que nunca tinha oportunidade de ver. Confesso que fiquei espantada com a sala completamente cheia e com fãs tão entusiastas quando na verdade não conheço quase ninguém que também seja fã da banda. Mas a espera valeu completamente a pena e foi um dos melhores concertos a que fui nos últimos tempos! Deixo-vos com o texto que escrevi para a família no Música em DX e com a playlist do concerto! As duas fotografias são do meu telemóvel.

Noite de domingo, noite de clássico no futebol, mas nada disso intimidou quem se deslocou ao Lisboa ao Vivo com casa cheia para homenagear os vencedores da noite – The Pineapple Thief! O espetáculo, com início marcado para as 20h30 e abertura de Randy McStine, prometia uma noite memorável. Às 20h15, ainda se via uma fila extensa à porta, enquanto no interior a sala já fervilhava de entusiasmo, marcando a estreia da banda britânica em solo português. A espera, embora longa, revelou-se insignificante perante a experiência única que se desenrolou, alimentando a esperança de um rápido regresso.

Com a pontualidade britânica, Randy McStine subiu ao palco munido da sua guitarra e loop station, entrelaçando as suas canções e colaborações com mestria, aquecendo a audiência com uma voz potente e vibrante. O seu último disco, Unintentional, foi lançado em Dezembro de 2023 e o artista americano conta já com 12 lançamentos na plataforma bandcamp. A sua simpatia e a sua disponibilidade para interagir com o público e vender o seu próprio merchandising deixou-nos cativados. Terminada a sua bela actuação, era palpável a expectativa crescente para os The Pineapple Thief.

Bruce Soord, vocalista e guitarrista, iniciou o projecto há já 25 anos atrás, tornando a banda numa das referências de rock progressivo internacionais. Acompanhado por Jon Skyes há mais de duas décadas no baixo, a formação actual conta também como membros fixos Steve Kitch nos teclados e Gavin Harrison na bateria, este último reconhecido também pelos Porcupine Tree (banda que tive o prazer de ver no Incrível Almadense em 2008!). Ao vivo, a banda tem-se feito acompanhar de Beren Matthews na guitarra e voz, tendo também contribuído com as mesmas em algumas partes nas gravações do último It Leads to This.

O quinteto sobe ao palco perante um público já efusivo, demonstrando já a sua expectativa.. Mesmo com expectativas elevadas, bastou o primeiro tema, “The Frost”, para rapidamente superá-las. A magia dos discos transformou-se em energia visceral ao vivo. A sinergia entre os músicos criou uma atmosfera libertadora, projetando ao mesmo tempo uma ligação crescente com a plateia que não hesitou em expressar o seu fervor.

O alinhamento da noite levou-nos por uma viagem de emoções fortes. Em canções como “Our Mire”, “Version of the Truth”, ou “Rubicon”, mas também como tema geral do concerto, testemunhámos o talento conquistador da banda, com uma bateria comandante, teclado envolvente, baixo dançante e pulsante, guitarras cavalgantes e a voz liderante de Bruce Soord irrepreensível. A performance da banda, a dança entre os elementos, os momentos mais calmos alternados com momentos explosivos, os solos mais vibrantes de Beren Matthews a complementarem a personalidade da banda, tornou toda a experiência catártica. 

Para além de temas do último disco e de Version of Truth, a banda tocou ainda dois temas de Give it Back (uma colecção de temas anteriores agora regravados também com as contribuições poderosas de Gavin Harrison) e “The Final Thing on My Mind”, do disco The Wilderness, que encerrou o set principal. Este último tema é um dos meus preferidos da banda e foi um privilégio vê-los a construir a narrativa com momentos sublimes e arrebatadores, e com uma carga emocional muito própria. Acredito que por esta altura a banda também já estava completamente rendida ao público português, o que tornou o momento muito genuíno. 

Felizmente a espera para o encore foi curtinha, e a banda voltou com “In Exile” e “Alone at Sea”. Confesso que soube a pouco, mas apenas porque foi uma noite tão bonita. Para quem tem acompanhado a banda, penso que fica a curiosidade dos primeiros tempos ao vivo e a vontade de não ficar muitos mais anos sem os ver novamente. Guardo um respeito e admiração enormes por este projecto, pela sua evolução sonora e lírica, que também reflectem as várias fases de vida e de intimidade, o que permite a quem ouve poder libertar alguns dos seus próprios “Demons”. Resumindo, queremos mais.

Mais novidades: https://branmorrighan.com/categoria/musica

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[Queres é (a) Letra!] Hipoteca, Homem em Catarse https://branmorrighan.com/2024/03/queres-e-a-letra-hipoteca-homem-em-catarse.html https://branmorrighan.com/2024/03/queres-e-a-letra-hipoteca-homem-em-catarse.html#respond Sun, 03 Mar 2024 17:49:53 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25505
Hipoteca

Já faz algum tempo que não volto a algumas das rubricas do blogue, mas esta semana que passou soube do novo single do artista português Homem em Catarse, e um Queres é (a) Letra! tornou-se imperativo. Hipoteca é a nova canção de Afonso, que nas suas palavras nos explica “50 anos depois do 25 Abril, ainda temos de dizer que um direito não é favor…. a Hipoteca é também um manifesto que dá voz à inquietude que atinge transversalmente o nosso país! Há que dar consciência à nossa voz e é através da música e das canções que o posso fazer.

E a verdade é que para quem é de Lisboa, vive em Lisboa, ou até apenas vai a Lisboa de vez em quando, esta canção vai soar tão verdadeira que dói. Já não é apenas no centro de Lisboa, é também nos subúrbios e até para além dos mesmos. A verdade é que Lisboa tem-se descaracterizado e tornado insustentável para a grande maioria dos portugueses. Em complemento à temática, como sempre, Homem em Catarse traz-nos mais uma canção cujo ritmo e melodia também nos incita a uma espécie de rebeldia e de bater com o pé no chão.

Deixo-vos com o videoclip e no final deste post podem encontrar link para as diversas plataformas onde poderão ouvir e partilhar Hipoteca, assim como as próximas datas ao vivo do artista português.

Venham todos, venham todos…
venham todos turistar!
não interessa gente sem casa,
o que interessa é faturar.

A economia é tudo
e assimetria é o que é
migalhas pró subúrbio
e hostéis juntos à sé.

Uma bolha a crescer,
mais um navio a chegar.
Não nos peçam um futuro
se o querem hipotecar.

Venham todos, venham todos venham todos turistar!
E a hipoteca por pagar.

Nem nas nossas casas
podemos viver
não cheira bem, não cheira a Lisboa
é o dinheiro a feder.

E uma criança…
lá no interior
Para ir prá a escola,
parece que é por favor.

Um direito não é um favor!

Venham todos, venham todos, venham todos turistar!
E a Hipoteca por pagar!
Nem nas nossas casas podemos viver.
E a Hipoteca por pagar!
Nem nas nossas casas
podemos viver.

Esta é a geração de jovens portugueses que, pela primeira vez, tem uma perspetiva de futuro mais sombria que a anterior. Esta é a geração de portugueses que anda uma vida inteira a pagar uma casa que nem chegará a ser sua. Esta é a geração do desequilíbrio, onde a qualidade de vida foge das grandes cidades amontoadas no tédio do excesso e da descaracterização. As senhoras à janela são expulsas da sua rua dando lugar aos nómadas sem rosto, como sem rosto fica a luz da cidade. Enquanto hipotecamos o nosso futuro e a descentralização é uma miragem, a hipoteca de todos nós continua a aumentar. E já começamos a pagar bem caro… a inflação dos nossos dias.

“Hipoteca” é o novo e interventivo single de Homem em Catarse, no qual explora novos caminhos mantendo a identidade da sua guitarra paisagista, inconfundível, aliada a novos ritmos e a uma mensagem muito pertinente e actual. “Hipoteca”, a par de “O tempo vem atrás de nós”, vai fazer parte do disco “Catarse Natural” que o músico edita no final do ano, mas, antes, vai ser possível constatar como soa ao vivo:

17 Abril | Cineteatro António Lamoso | Santa Maria da Feira
05 Maio | Fórum Municipal Luísa Todi “Guitarras ao Alto” | Setúbal

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[Diário de Bordo] Escrevendo sobre o Tim Bernardes para o Música em DX https://branmorrighan.com/2024/02/diario-de-bordo-escrevendo-sobre-o-tim-bernardes-para-o-musica-em-dx.html https://branmorrighan.com/2024/02/diario-de-bordo-escrevendo-sobre-o-tim-bernardes-para-o-musica-em-dx.html#respond Wed, 28 Feb 2024 19:35:23 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25502 Meus queridos leitores,

Como estão? Tenho andado a ameaçar que volto e depois não acontece, ou acontece muito devagarinho, nos bastidores. No entanto, no início do mês aventurei-me a juntar-me aos nossos amigos no Música em DX para escrever, pela primeira vez em quase cinco anos!, sobre um concerto. Fui verificar e o último texto tinha sido do enorme Olafur Arnolds!

Volta e meia vou a outros concertos, mas não tenho escrito sobre os mesmos. Este ano, a disponibilidade permitindo, conto pelo menos tentar fazê-lo de vez em quando. A família MDX não se importa de me ter de volta e dá-me motivação extra! Afinal tenho estado fora do circuito há algum tempo, mas o gosto pela música, se possível, só cresceu.

Quando vi o anúncio do concerto do Tim Bernardes, ainda nem sequer tinha ouvido o seu último disco Mil Coisas Invisíveis. Na verdade, conheci o Tim já em 2017 com O Terno! Já na altura tinha ficado com aquela sensação de quentinho e de serem uma banda tão querida, que achei que esta era uma excelente oportunidade para ver o Tim novamente, agora a solo.

Enviei a minha disponibilidade ainda antes de ouvir o disco. Tive a sensação que seria uma aposta segura. Para os leitores mais antigos, vocês sabem que eu escolho a dedo sobre o que escrevo. O meu tipo de escrita não dá muita flexibilidade para escrever sobre coisas que não me dizem nada ao coração. Já aconteceu, e consigo escrever sobre a qualidade de algo, mas é tão mais belo quando levitamos não só durante o concerto como durante a escrita.

Escrever novamente para o Música em DX (obrigada mais uma vez, família!) foi como sair de mim mesma durante um par de horas para mergulhar numa dimensão que misturou a minha experiência durante o concerto, o quanto as canções de Tim na verdade me dizem, e o quanto foi catártico no final juntar as duas coisas e ter novamente um texto cá fora.

Quando criei o rascunho deste post, a minha intenção era só copiar aqui o texto da reportagem (como podem ver no final do post), mas entretanto já me estou a esticar! Ainda assim, não quero carregar Publicar sem mencionar que para além de vos agradecer lerem o meu texto, sugiro que ouçam o disco do Tim Bernardes. Eu não estava à espera que me tocasse tanto, que me identificasse tanto com tantas canções e a sua performance ao vivo — um pequeno gigante sozinho num palco que a certa altura parecia não ser suficiente para a sua alma — levou-me às lágrimas mais do que uma vez.

Deixo-vos com o link para o MDX, no final deste post está a playlist do concerto e, com sorte, falamos em breve? Obrigada pelos comentários recentes em posts anteriores. Fico-vos muito grata pelo vosso carinho! Até breve!

Reportagem original em: https://www.musicaemdx.pt/2024/02/03/o-carisma-e-a-humildade-de-tim-bernardes-no-coliseu-dos-recreios/

Estamos em 2017 e eu ouço falar nesta banda brasileira chamada O Terno que iria actuar brevemente no Musicbox. E lá estava eu, e talvez muitos de vós, a conhecer uma banda pela qual foi tão fácil ganhar carinho pela simplicidade, cumplicidade e boa energia. Ao mesmo tempo, Tim Bernardes, um dos membros da banda, lança o seu primeiro disco a solo “Recomeçar”. Avançamos para o presente, 1 de Fevereiro de 2024, e Tim Bernardes enche duas datas no Coliseu de Lisboa para nos brindar novamente com o seu último disco “Mil Coisas Invisíveis”, mas também com temas do disco anterior, algumas de O Terno, canções que escreveu para outros artistas e ainda uma cover de Bob Dylan. 

As luzes baixam, e com uma voz vibrante, com um laivo de timidez, mas ousada, Tim Bernardes abre a noite com o primeiro tema do seu mais recente álbum Nascer, Viver, Morrer. E logo aqui percebemos porque é que Tim Bernardes enche o coliseu de forma tão fácil – os seus discos são belos, mas o poder da sua voz, da sua presença, e do seu sorriso tão genuíno, conquista-nos facilmente. A partir daquele momento, as nossas emoções já não são bem nossas, mas antes um reflexo da narrativa que Tim Bernardes nos traz com as suas canções. 

Esta viagem – com referências a Fernando Pessoa, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, entre outros – torna-se muito pessoal à medida que vamos de canção em canção, ora ao som de uma das suas guitarras, ora ao som do piano. É impossível não sorrir, ou até não largar uma lágrima aqui e ali, quando Tim Bernardes projecta a sua voz em canções como Realmente Lindo ou Velha Amiga. Quando Tim Bernardes referiu a sua admiração pelo Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, referindo que ele próprio sentia que era ele que estava ali naquelas páginas, há um momento de compreensão silencioso sobre o processo criativo e de onde vem parte da alquimia da escrita das suas canções.

Chega a vez de Melhor do Que Parece, do reportório de O Terno, e a reação do público foi de reconhecimento e carinho pela banda do cantor. Não foi raro ao longo do concerto ouvir ecos e o público a cantar com Tim Bernardes, mas o que me admirou mais, porque obviamente era um público entusiasta e conhecedor, foi o respeito pelo silêncio e pela solenidade da maior parte das canções. A sequência das canções Última Vez e até Esse Ar (uma canção sobre a lua!) trouxe um momento mais solene, apropriado para potenciais corações partidos em recuperação. 

O que mais me fascina no Tim Bernardes, é que ele é muito mais do que um cantor de canções românticas – ele vai ao âmago dos caminhos intrincados do nosso crescimento num mundo em constante mudança, expondo uma vulnerabilidade que todos sentimos e poucos conseguimos expressar. A sua humildade e o seu sorriso radiante, dão esperança a quem tem o privilégio de se sentar e partilhar estes momentos íntimos que é expor os seus pensamentos numa das salas mais emblemáticas de Portugal. Em cada interação entre Tim e o público houve uma troca de carinho muito grande, com o músico brasileiro a expressar a sua gratidão por estar ali, após ter passado também pelo Porto. 

O fim do concerto aproxima-se com o início d’A Balada de Tim Bernardes, uma canção que nos lembra que mesmo no meio de desafios, porque não cantar? Termina com Recomeçar, do seu primeiro disco a solo, fechando uma viagem que foi uma espécie de psicoterapia musical, em que Tim deu voz e som a um espectro de emoções, equilibrando entre o humor e a genuinidade de quem se expõe. Foi uma noite muito bonita e não tenho dúvidas de que Tim Bernardes irá voltar a encher o Coliseu no futuro.

Playlist do concerto:

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Jazz em Agosto 2023: Uma calma apenas aparente [Mary Halvorson’s Amaryllis] https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-uma-calma-apenas-aparente-mary-halvorsons-amaryllis.html https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-uma-calma-apenas-aparente-mary-halvorsons-amaryllis.html#respond Mon, 07 Aug 2023 20:36:47 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25467

Jazz em Agosto 2023: Uma calma apenas aparente [ Mary Halvorson’s Amaryllis ]

Um sexteto dedicado a receber-nos com bonomia. Todavia, a aparente facilidade que serve de primeira impressão, acaba por deixar à vista (e ao ouvido, principalmente) uma construção inteligente e bem estruturada. Com um pé na composição, outro na voz de cada músico.

Texto: João Morales

Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo

A música produzida pelo Mary Halvorson’ Amaryllis assenta numa leveza e numa capacidade de empatia, que não deve afastar o seu entendimento acerca da complexidade que envolve. Logo no arranque do concerto, um primeiro tema transmite um ambiente sonoro calmo, pastoril, acentuando uma dimensão cinematográfica que acompanha as opções do sexteto.

O anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian estava à cunha, para escutar a banda sonora ideal para uma noite de Verão assumido. Mary Halvorson chegou aos palcos portugueses em 2013, pela mão de Anthony Braxton (neste mesmo festival) e é hoje uma das mais populares propostas do jazz contemporâneo, com um leque de colaborações que engloba nomes como Ches Smith, Jessica Pavone, Peter Evans, MIchael Formaneck ou Ingrid Laubrock. O álbum que deu nome a este sexteto (e do qual a banda tocou apenas um tema, oferecendo-nos imenso novo material, como a compositora explicou quando se dirigiu à audiência) foi lançado em 2022 e unanimemente considerado como um dos discos mais importantes do ano.

A articulação entre os seis elementos do sexteto acentua a orquestração, uma textura elaborada mas de fácil adesão, que cobre uma sonoridade de um certo jazz de câmara, com as conexões entre cada elemento afinadas e precisas, expondo um caminho que faz cruzar composição e improvisação, trilhado sem esforço aparente e com subtil mestria de todos.

Os temas foram sucedendo, oito mais um curto encore. O segundo começa com o vibrafone de Patricia Brennan (com um percurso musical entre a improvisação e Música Clássica) e o trompete de Adam O’Farrill (filho e neto de músicos), partilhando uma sedução onírica, Mary discorre sobre o tema, o conjunto toma forma, a precisão das passagens é uma constante.

Já no início do tema seguinte, a guitarra de Halvorson tira partido de um pedal de delay, sublinhado aquilo a sua intenção já antiga de não ficar presa a um género musical, antes integrando nas suas composições elementos que nos trazem diferentes cambiantes, sem que em compartimentos específicos s e esgotem. Na sua mão, os movimentos repetitivos acentuam a novidade enclausurada. Há, na música produzida por este sexteto, um rejuvenescimento do easy listening, um sentimento já depurado que nos chega da década de 50 do séc XX ou uma longínqua nostalgia de algumas orquestras de salão, tudo destilado num caudal de modernidade e contemporaneidade que fica bem expresso na forma como as bases rítmicas sustentam os solos ou na recusa de qualquer evidência mais histriónica. Contudo, não se confunda a adesão melódica que a música pede com qualquer simplicidade ou cedência – tudo é filtrado e preenchido, com rigor e pormenor.

Apesar da coerência entre todos, será justo destacar o solo efectuado pelo já referido O’Farrill ou a constante vivacidade do contrabaixista Nick Dunston (músico que já tocou com Marc Ribot, Ches Smith, Craig Taborn ou Vijay Iyer), incluindo alguns momentos em que demonstrou uma sábia manipulação do arco. O agrupamento é completado com o trombone de Jacob Garchik (homem que tem no seu currículo sumidades como Lee Konitz, Henry Threadgill ou o fabuloso Kronos Quartet e, em 2022 publicou o magnífico álbum Assembly, pela Yestereve Records) e a bateria de Tomas Fujiwara (que integra um outro colectivo com Mary Halvorson, Triple Double), responsável igualmente por uma prestação assinalável.

Em suma uma noite de música extremamente agradável, sem momentos de mestria individual à cabeça, antes privilegiando um ambiente conjunto, um avanço em bloco ao longo da noite, que permitiu aos músicos irem abandonando alguma contenção para, gradualmente, exporem um pouco mais a sua faceta de improvisadores.

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Jazz em Agosto 2023: De corpo e alma [Zoh Amba Trio] https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-de-corpo-e-alma-zoh-amba-trio.html https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-de-corpo-e-alma-zoh-amba-trio.html#respond Fri, 04 Aug 2023 18:00:03 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25456

Jazz em Agosto 2023: De corpo e alma [Zoh Amba Trio]

Seguindo a linha claramente traçada para este ano, o trio que actuou na noite de dia 2 de Agosto foi militantemente dirigido por uma mulher, a jovem Zoh Amba, que nos deixou sem respiração, sem nunca perder o fôlego.

Texto: João Morales

Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo

Não há qualquer período para prólogo ou introdução. Assim que os três músicos começam a sua função, o ritmo dominante está estabelecido e o clima sonoro em que estamos mergulhados não deixa grande margem para dúvidas: vai ser uma noite de Free jazz, o que Zoh Amba Trio propõe no anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian. E cumprirá.

Há na música de Zoh uma urgência e uma entrega que são características de toda uma herança sonora citada e revisitada amiúde ao longo das suas intervenções, uma genealogia que passa por nomes como Albert Ayler, Frank Wright, Frank Lowe ou David S. Ware – como bastas vezes tem sido referido, denunciando logo uma corrente de saxofonistas onde a espiritualidade tem um papel fulcral na criação e entendimento do que é a música – mas que não se esgota nestes mestres. Ao longo de uma hora de concerto (talvez um pouco menos, diga-se em abono da verdade), passagens existiram que podiam perfeitamente prestar homenagem ao recentemente desaparecido Peter Brotzmann, mas em outros momentos a sonoridade poderia remeter para um outro nome maior do jazz mais liberto da década de 60, hoje algo esquecido, o grande Arthur Jones (que, radicado em França, assinou uma das obras-primas do jazz, o disco Scorpio, gravado em 1969 e publicado dois anos depois).

«Aos 23 anos, a saxofonista tenor Zoh Amba é nada menos que um fenómeno. Deixando o seu Tennessee natal para se estabelecer em Nova Iorque e movida por uma energia extraordinária, ela faz virar muitas cabeças, começando por improvisadores que têm duas, três ou até quatro vezes a sua idade», lia-se nas notas de apresentação do icónico Festival International de Musique Actuelle de Victoriaville, em Maio deste ano. Amba conta até agora com dois discos publicados, ambos em 2022, O, Sun e Bhakti, (o primeiro, com a produção de John Zorn, publicado na sua editora, Tzadik, e contando na bateria com Joey Baron, elemento central do “Dowton New York” e do ciclo de Zorn). Impossível que não fosse uma das grandes expectativas na edição do Jazz em Agosto 2023. Contudo, o anfiteatro não estava a abarrotar, embora composto…

O portento que nos visitou foi servido em formato de trio, ligação propícia para que cada um dos elementos pudesse ser devidamente apreciado. Atenção, não estamos a falar de longos solos individuais, mas de um ritmo trepidante – na maioria do tempo – que exigia a um o controlo mais que razoável da evolução da realidade e uma sensibilidade apurada para o que ia surgindo em palco, em grande medida impulsionado pela intervenção visceral que a pequena saxofonista, ao centro, vociferava em plena dedicação. A improvisação perfilhada que escutámos deve mais a um entendimento intuitivo e sensorial do que tocar e de como fazê-lo, do que a uma concepção cerebral e teórica.; estamos perante uma improvisação extremamente “física”.

A ligação entre os três músicos foi excelente. Luke Stewart, homem que tem no seu currículo nomes como Archie Shepp, Ken Vandermark, Daniel Carter, Hamiet Bluiett ou Wadada Leo Smith – e que ainda em 2022 nos visitou, então integrado nos Irreversible Entanglements – teve desta vez todo o espaço por onde demonstrar a sua virtualidade, correndo o braço do contrabaixo, fixando dinâmicas, assegurando contraponto aos seus dois pares, raramente abrandando o ritmo, ao sabor da ofensiva que pouca trégua permitia. Algumas vezes, quando a utilização do arco pretendia suavizar o colectivo, foi acompanhado por uma das contingências obrigatórias destas noites do Jazz em Agosto: adivinharam, os aviões.

A outra metade da secção rítmica foi assegurada por Chris Corsano, artista bem conhecido do público português (até pelo seu trabalho regular com Rodrigo Amado), com mais de uma centena de discos gravados, envolvendo Evan Parker, John Edwards ou Paul Flaherty, mas também os Six Organs of Admittance (nomes seminais da corrente New Weird America), o ecléctico Jim O’Rourke ou Thurston Moore (o guitarrista dos Sonic Youth).

Corsano esteve imparável, num constante cruzamento de ritmos, uma utilização sagaz dos pratos e uma perecpção rítmica assaz responsável, consolidando o edifício sonoro que se foi erguendo perante uma plateia rendida à entrega e ao desempenho dos três, entendendo rápida e eficazmente os momentos de ascese em que Amba passa do sopro sibilante ao vociferar em entrega total, demonstração da sua própria entrega e concepção pessoal acerca da função da música na nossa vida. Não deixa de ser curioso, a mais jovem presença deste festival trazer-nos a herança do período áureo da improvisação no jazz.

A dada altura, ao meu lado, alguém perguntava: “onde é que ela vai buscar aquela força toda?”. O artigo publicado em Setembro de 2022, no The New York Times, foi um dos sinais de alerta sobre uma nova voz no jazz. E a própria Zoh afirmava nesse artigo: “A música é Deus, Deus é a música. De mãos dadas”, dando continuidade à união tão celebrada na década de 60 por músicos cuja grande aspiração era contribuir para um mundo mais harmónico, a partir de uma música que parecia denunciar harmonias apenas aparentes.

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Jazz em Agosto 2023: seis músicos encontram-se num palco… [Trance Map +] https://branmorrighan.com/2023/07/jazz-em-agosto-2023-seis-musicos-encontram-se-num-palco-trance-map.html https://branmorrighan.com/2023/07/jazz-em-agosto-2023-seis-musicos-encontram-se-num-palco-trance-map.html#respond Sun, 30 Jul 2023 10:21:21 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25443

Jazz em Agosto 2023: seis músicos encontram-se num palco…

Improvisação radical, com músicos experientes e sapientes. Trance Map +, o sexteto que protagonizou a segunda noite do Jazz em Agosto, na Fundação Calouste Gulbenkian, trouxe diversidade ao programa.

Texto: João Morales

Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo

Os membros do sexteto acomodam-se e a primeira coisa que salta à vista é a posição ocupada pelo saxofonista, instrumento habitualmente colocado na linha frontal do palco. Apesar de se tratar de uma figura de nomeada, Evan Parker senta-se ao centro, atrás de todos. O colectivo designa-se Trance Map + e nasceu da junção do histórico inglês (n. 1944), figura seminal do jazz mais arrojado (nos anos 60 do séc. XX integrava o Spontaneous Music Ensemble) com Matt Wright, nome ligado a referências da electro-acústica como Ikue Mori ou Spring Heel Jack (emblemático duo de John Coxon e Ashley Wales, que desafiou várias figuras do jazz, na editora Thirsty Ear). A função de Wright passa, em boa medida, pela apropriação dos sons dos seus parceiros, devolvidos depois de moldados, reintegrados no discurso colectivo. 


A função inicia-se com o famoso sopro contínuo de Evan Parker, no soprano que utilizará toda a noite. É uma serpente que surge norteando o dealbar do percurso, uma serpentina que se desenrola enfeitiçando os ares que nos rodeiam e demonstrando que a dimensão xamânica estará sempre alerta durante uma cerimónia partilhada que se avizinha. Tónica que, aliás, se enquadra perfeitamente na linha programada para este ano pelo curador do festival, Rui Neves.

Entre momentos empolgados e outros devedores da mais dedicada contenção, os ambientes vão-se metamorfoseando, numa cadência contínua – a noite é preenchida com um único tema, sem interrupções – deixando gradualmente comprovadas as palavras da descrição prévia do colectivo, quando se podia ler no programa do festival que esta é uma abordagem desenvolvida «sem sofreguidão, explorando ambientes electro-acústico e sonoridades que vivem fora das grandes artérias, em caminhos pouco iluminados  e percorridos».






Rapidamente entendemos que estamos um momento de criação comunitária, onde cada um dos elementos está atento ao respirar dos restantes, a cada gesto mínimo e as suas consequências, consolidando um manto sonoro partilhado, longe do modelo em que uma base mais previsível e cada solo enunciador se evidenciam. A noite não será de jazz, pensarão os mais afoitos ao cânone ancestral. A noite será de comunhão e improvisação, radical, talvez, mas segura e ponderada, reconhecerão todos.

O segundo sopro que bafeja na noite é Peter Evans, um dos prodígios dos anos mais recentes, figura que também já nos visitou em diversos formatos e ocasiões. Evans, ora espreme o trompete, ora retira dele um frasear lancinante, ora vocifera enquanto toca o seu instrumento (sonoridade sabiamente integrada), ora dedilha com delicadeza e notas quase soletradas. Figura central do mítico quarteto Mostly Other People Do the Killing, Evans é, sem dúvida, um dos maiores trompetistas da sua geração.


Ao lado do já referido Matt Wright, há mais um músico encarregue de valorizar a electrónica, humanizando-a e integrando-a nesta cadência colectiva que se vai propagando, com oscilações entre o eclodir do enxame que zumbe a seis vozes e um amainar das tensões e dos sons, rente ao minimalismo e ao mais rústico metrónomo. Trata-se do veterano Pat Thomas (n. 1960), que ainda em 2022 fez furor neste mesmo festival com o projecto Ahmed, e tem no currículo nomes como Tony Oxley, Lol Coxhill, Steve Beresford Phil Minton ou Roger Turner. Pianista, desde 1989 tornou-se um explorador das novas tecnologias e a forma como utiliza o laptop espelha bem uma alegria contagiante.

Um violoncelo pertinente esteve entregue a Hannah Marshall, figura com ampla experiência no campo da música para teatro e cinema, com interpretação de trabalhos de figuras como Simon Fell, John Butcher, Tim Hodgkinson ou Alex Ward e partilha de palcos com Veryan Weston, John Edwards, Tony Marsh, os já referidos Beresford e Butcher ou, claro, Evan Parker. Mostrou-se muito segura do seu papel nesta nova aventura, sendo responsável por algumas passagens entre a calma e a avalanche, recorrendo ao arco e ao dedilhado consoante a inspiração lhe pedia.


Por último, ao centro do palco, o percussionista, Toma Gouband (n. 1976), uma figura surpreendente e original, que se tem notabilizado por um conjunto de workshops em ambiente académico, sobre polirritmia. Logo a começar pela sua bateria, constituída por um bombo, largo, na horizontal, um prato e um prato choque. Na maioria do tempo, os instrumentos que brandia nas mãos eram pedras, troncos, pinhas, ou um conjunto de ramos com que vergastava a pele do bombo ou os pratos (ou até mesmo sibilando no ar), criando alguns momentos quase hipnóticos pelas opções rítmicas que empregava (sempre calmas e longe de qualquer espectacularidade), mas também pela articulação com a electrónica de Pat Thomas, talvez o músico com que melhor se entrosou, sem nunca abdicar da sua singularidade musical, mais intuitiva e espiritual, do que tecnicamente evidente.

Mesmo quando recorreu a algo semelhante a baquetas, os ritmos adoptados, a forma como ataca a “bateria” e distribui os gestos, confundirá, certamente, os mais clássicos, ainda que encontrando alguns traços hereditários, vindos das experiências de Han Bennink, Roger Turner ou até Max Eastley. Na base da sua abordagem peculiar estará, em grande medida, uma estadia junto dos pigmeus dos Camarões, em 2006, que o levou a reequacionar toda a abordagem ao instrumento (percussão).

Ao longo dos 60 minutos que durou a prestação, sem encores, Evan Parker parou por diversas vezes de tocar, de saxofone em riste, olhos cerrados, escutando, interiorizando o que se passava à sua volta, sem ímpetos de fulgor permanente. Não demorou a percebermos porque, apesar de o sexteto funcionar bem como um todo e Evan Parker se silenciar amiúde, uma boa parte da energia que comandou a noite nascia daquele sax soprano e daquele fôlego inconfundível, mesmo quando calado. Há vozes assim.

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Abertura do Jazz em Agosto 2023 – Cruzar o Deserto em Conjunto https://branmorrighan.com/2023/07/abertura-do-jazz-em-agosto-2023-cruzar-o-deserto-em-conjunto.html https://branmorrighan.com/2023/07/abertura-do-jazz-em-agosto-2023-cruzar-o-deserto-em-conjunto.html#respond Fri, 28 Jul 2023 15:36:35 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25434

Abertura do Jazz em Agosto 2023 – Cruzar o Deserto em Conjunto

Uma dúzia de instrumentistas em palco, uma sonoridade que sublinha a noite de Verão, e durante 90 minutos pairou uma reconfortante união sonora sobre o anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian. Eve Risser’s Red desert Orchestra. Está em marcha a 39ª edição do Jazz em Agosto.

Texto: João Morales

Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo

Perante uma audiência animada que poucos lugares vagos deixou, o concerto começa com um quase silêncio, o raspar da pele do Djembe de Oumarou Bambara. Piano, percussão ao de leve… Mélissa Hié (que faz dupla com a irmã Ophélia, ambas no balafon) toma agora a dianteira no seu djembe, o baixo eléctrico de Fanny Lasfargues anuncia a marcação do ritmo, os metais alinham-se. Está dado um dos tons que vão pautar a prestação de todo o concerto. O projecto de Eve Risser (que nos visitou em 2026, então com a sua White Desert Orchestra, mas já tocou diversas outras vezes entre nós) assenta numa forte presença de elementos de percussão, conjugada com um generoso naipe de sopros: saxofone barítono (Grégoire Tirtiaux, com um percurso que o levou a arriscar já diferentes geografias musicais), saxofone alto (o francês Antonin-Tri Hoang, n. 1989), saxofone tenor (Sakina Abdou, n. 1984), trompete (Nils Ostendorf, músico com uma vasta experiência na composição de música para teatro ou dança) e trombone (Mathias Müller, músico que já tocou com  George Lewis, Johannes Bauer, Jeb Bishop, John Edwards, Mark Sanders ou Tobias Delius). Um conjunto de metais que funciona de forma assumidamente intrincada, avançado sobejamente em uníssono, malgrado os empenhados solos que pudemos assistir. Um dos pontos altos do concerto, explorando o contraste entre o carácter acústico e artesanal dos diferentes timbres que a gama de percussionistas no oferecia e a electrónica manejada em tempo real por Nils Ostendorf.

O alinhamento proposto coincidiu com o do disco de estreia do agrupamento, “Eurythmia”, dado à luz em 2022, na cada vez mais fundamental (e internacional) editora (portuguesa) Clean Feed. Assim, começámos com a introdução, SO (horse), depois SO (snake) e Red desert.

A saxofonista Sakina Abdou destacou-se mais que uma vez, evidenciando solidez e capacidade de envolvimento (ela que, em 2022, arriscou um álbum a solo, o interessante “Goodbye Ground”), mas todos os músicos acabaram por ter alguns momentos para demonstrar a sua própria linguagem, incluindo os ainda não referidos Emmanuel Scarpa (numa competente e omnipresente bateria) e a guitarrista Tatiana Paris (que, em 2022, igualmente se aventurou numa aventura a solo, explorando as diferentes texturas e possibilidades da guitarra – eléctrica e acústica – álbum designado “Gibbon”). Ou até mesmo a líder do projecto, com um “pianar” suave e contemplativo, docemente contaminado por algum impressionismo.


No global, fica-nos uma música que vive da memória e enaltece os padrões basilares do ritmo, ao mesmo tempo que elabora um discurso contido e renovado sobre a dimensão melódica e a noção de orquestração, não escondendo uma conexão entre as sonoridades ditas ocidentais e os ritmos ancestralmente africanos. Se Eve Risser gosta de evocar o deserto para nomear os seus projectos musicais, sabe igualmente como povoá-los de forma construtiva.

As já referidas irmãs Hié trabalharam diversos momentos em articulação directa com Risser, ao longo de uma noite em que bastas vezes evocou a marcha de uma caravana. Talvez por isso mesmo, Risser, quando se dirigiu ao público, apresentando o tema seguinte, G​Ä​MSE (chamois), nos falava sobre os dromedários em deslocação, em fila, em demanda. Por mais quem vez referiu-se (e não de forma abonatória) a um outro aspecto identitário deste espaço, e que foi sendo encarado de diferentes formas pelos diferentes músicos que por aqui passaram, ao logo de quase quatro décadas: os aviões.

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