Os Meus Discos – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Thu, 19 Jan 2023 13:13:27 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.2 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Os Meus Discos – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 [Os Meus Discos] Adeus, de Indignu https://branmorrighan.com/2023/01/os-meus-discos-adeus-de-indignu.html https://branmorrighan.com/2023/01/os-meus-discos-adeus-de-indignu.html#respond Thu, 19 Jan 2023 12:49:33 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25419

Os indignu são uma banda portuguesa de post-rock pela qual nutro um imenso carinho. Penso nunca ter escrito extensivamente sobre eles, mas há pelo menos um par de memórias em concertos ao vivo das quais não me consigo esquecer. Uma sensação de eternidade, transcendência. Uma sensação de casa. Um espaço onde as emoções podem fluir livremente, sem julgamentos.

O post-rock é um género musical que, na minha opinião, nem sempre tem a devida apreciação. Talvez porque fuja aos clichês do POP (que também gosto), mas pergunto-me se não será essencialmente pela inquietação que consegue provocar. E os indignu têm não só o dom de se destacam pela sua própria personalidade, mas essencialmente pela conjugação dos instrumentos que usam, pela forma delicada, porém incisiva, com que chegam ao nosso coração.

adeus é o mais recente disco da banda e proporciona-nos uma viagem sensorial quântica pura. a noturna, a primeira faixa, estende-nos uma passadeira láctea em que a percepção do espaço e do tempo se entrelaçam com o nosso espaço emocional incitando-nos à descoberta, mas com cautela. É com esse mesmo tom que devolução da essência do ser começa. indignu tem-se destacado sempre pela forma magistral com que conjuga bateria, baixo, guitarra, violino e piano, para além de toda uma atmosfera electrónica etérea. Há laivos de fado, há laivos de clássico, há centelhas da herança das inspirações que usam, mas acima de tudo há a mestria da forma única com que se expressam.

devolução da essência do ser é uma canção na qual temos a oportunidade de deixar fluir o cosmos num grito de liberdade que ecoa e que nos retorna a casa. São 14 minutos em que começamos de forma compassada, urgindo pela respiração, uma de cada vez, com paciência, com aceitação. E depois crescemos com a canção, com a sua intensidade, com o abrir do peito e a sensação de sermos arrebatados por algo que é maior do que nós. Nesta devolução da essência do ser, há muitas despedidas, há muitos adeus. Há uma urgência de paz. Mas para a alcançar, primeiro precisamos de exorcizar o que nos consome. Abrir espaço para que possamos respirar e ser novamente completos.

Avançamos para em qualquer entranha, uma balada ao piano que chega após uma pequena catarse, que comove, mas que também traz alguma luz, um pingo de inocência, seguido do peso da realidade. É aí que chega urge decifrar no céu. Somos liderados pelo belo violino, pelo seu tom encantatório suportado por uma guitarra que faz as horas à melancolia, para rapidamente tudo ser arrebatado por uma bateria e um baixo que se recusam a ficar no chão. Juntam-se vozes que ao primeiro momento nos arrepiam, que nos dão a mão, que gritam connosco e partilham a nossa dor de uma forma que sozinhos talvez não conseguíssemos expressar.

E ainda assim, sentimos esperança, precisamente por não estarmos sozinhos nestas múltiplas despedidas. Porque um fim, traz sempre um novo início. E num tom saltitante, abraçados por uns fios de fado e de universo, lá nos vamos reinventando com os indignu até chegarmos à última canção — sempre que a partida vier. Depois de todo o turbilhão emocional, esta última canção fez-me dançar, entregar-me ao que não se pode controlar.

Uma partida pode não significar nada, ou pode significar tudo. Ainda assim, são inevitáveis. E a vida continua. Mesmo que ao início haja sombras, mesmo que o adeus seja duro, eventualmente a luz chega e o sorriso brilha novamente. sempre que a partida vier significa para mim esse balanço entre a felicidade e a tristeza, entre o olá e o adeus, entre o que foi e o que é. E todas as emoções são válidas e aceites nesta maré de um mar tão vasto e profundo que é o pequeno espaço que temos entre as nossas costelas.

Gostaria de ter mais vocabulário para vos descrever melhor a composição musical deste disco, mas estou destreinada e, honestamente, prefiro que ouçam. Sem dúvida que será uma experiência super pessoal e eu aqui limito-me a descrever a minha. E se não é esta a beleza da música, o que é? Aconselho apenas a que tenham uns bons headphones ou barra de som, porque sem dúvida que este disco merece. Infelizmente estive doente quando apresentaram o disco em Lisboa, mas espero vir a ter a oportunidade de os ver ao vivo, porque tenho a certeza que vai ser dos concertos mais belos que irei ver. Um grande abraço a todos vós, meus queridos indignu.

Indignu
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[Os Meus Discos] Cajarana, de André Henriques https://branmorrighan.com/2021/03/os-meus-discos-cajarana-de-andre-henriques.html https://branmorrighan.com/2021/03/os-meus-discos-cajarana-de-andre-henriques.html#respond Mon, 15 Mar 2021 13:25:02 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25071
Cajarana
O design de “CAJARANA” tem a assinatura do colectivo Dobra.

Cajarana, de André Henriques

Dia 13 de Março fez um ano que Cajarana, o primeiro disco a solo de André Henriques, viu a luz do dia. Lembro-me bastante bem de quando este disco saiu e do quanto esteve em repetição nas minhas idas para a faculdade. Na altura, do outro lado do oceano, qualquer contacto com este pedaço à beira-mar era tido com cautela. Emigrar não foi fácil para mim e à distância física juntei a distância cultural para que tudo se tornasse mais fácil. No entanto, houve alturas em que me foi impossível ficar indiferente. A saída de Cajarana foi um desses momentos.

Sendo completamente fã de Linda Martini há quase duas décadas, habituei-me a ver o André armado de guitarra eléctrica e autor de letras disruptivas e viscerais num registo colectivo em que a catarse chegava nos mais altos decibéis e num estado de êxtase frenético. O que descobri com Cajarana é que o músico português consegue ter um efeito semelhante, porém num registo despido, perspicaz, direccionado à simplicidade acutilante que é rendermo-nos sem pretensiosismo àquilo que nos habita a mente, mas que tendemos a dispensar com a facilidade de quem evita olhar-se ao espelho.

E o mais engraçado é que a capa do disco, em colaboração com o colectivo Dobra, vem precisamente desse exercício: “A capa do disco é um auto-retrato cego que fiz em frente ao espelho, sem nunca olhar para a folha ou para a mão que desenhava. Fiz vários desenhos seguidos, em cada um demorava não mais do que 2 minutos. No final, ao ver todos os que tinha feito acabei por escolher o primeiro”. Este exercício de humildade e de auto-inspecção reflecte-se também nas composições do disco. É difícil colocar Cajarana numa qualquer caixa etiquetada e acredito que o processo de procura de uma prateleira onde o colocar é o próprio destino.

Nesta viagem, não só navegamos por diferentes ritmos que tanto nos embalam como nos inquietam. O mesmo acontece com as letras. Existe por vezes uma leveza na musicalidade de certas canções que contrasta com a simplicidade inquietante e desconcertante das letras. Refiro-me por exemplo a “Maria Odete”, um exemplo claro de violência doméstica ou “Para me aleijar” que é a banda sonora perfeita para aquele amor arrependido que ficou lá atrás ou que ainda estará para vir, porque “quem nunca?”.

Já “Pais e Mães e Bichos” alicia uma vibração sonora pujante a uma espécie de grito que tantos silenciam relacionado com isto da expectativa de se crescer, ter um trabalho, uma família e ainda assim perseguir sonhos sem nos perdermos pelo meio. Uma ilusão que nos incutem e que vivemos enquanto miúdos e adolescentes e que facilmente se torna num pequeno pesadelo quando lá chegamos. Ou assim interpreto, perdoem-me a liberdade. Em relação a “Platão pediu um Gin” eu sou mais de cerveja ou um bom vinho tinto, mas foi uma canção que também encontrou a sua ressonância empática.

A verdade é que o próprio início do disco avisa-nos que está na altura de nos libertarmos de acessórios e olharmos de frente para dentro com a honestidade possível – ou não tivesse André gravado “Espelho Meu” numa casa de banho em frente ao espelho com a sua guitarra acústica e o seu telemóvel. Os singles “E de repente”, “Uma casa na praia“, e “As Melhores Canções de Amor”, exploram também um pouco um ideal de enamoramento e relacionamento que são desconstruídos com uma linguagem a roçar o romântico, mas que é sobretudo incisiva na sua mensagem sem que ainda assim se perca um lado necessariamente sonhador.

Já “Tecido não tecido” é-me uma realidade ainda distante – mas adoro o ritmo e só posso imaginar a montanha russa. “O seu melhor chapéu” evocou-me um qualquer duelo por ser resolvido, entre a expectativa e a condenação, com uma sequência rítmica de registo. “De tudo o que fugi” é um corrida metafórica muito pessoal que também evoca uma fuga literal do ponto onde se está até onde quer que a vida nos leve que contrarie tudo o que nos oprimiu antes. O disco termina com “Pese embora” é o fechar do círculo em Cajarana. E o fim encontra o início através da simplicidade da melodia e da produção, com uma letra com que é fácil identificarmo-nos quando pensamos nas expectativas que outros podem ter sobre nós.

Acabei a escrever mais do que estava à espera, mas a verdade é que este disco acompanhou-me tanto enquanto estive nos Estados Unidos que serviu muitas vezes de banda sonora a uma reflexão mais profunda sobre as minhas opções e decisões, o que foi e o que é, o que gostava que fosse? Quando se sente muito é bom encontrar estes discos que nos ajudam a não sentirmos sozinhos. E é isto. Obrigada, André.

André Henriques sobre “Cajarana”:

A inspiração para o nome do álbum remete para uma novela brasileira da década de 80: “Pai Herói”. “O personagem principal, interpretado por Tony Ramos, chamava-se “André Cajarana” e eu, como era o único André na minha escola, ganhei uma alcunha que detestava. É uma memória de desconforto e de construção de identidade, duas questões com as quais me debati quando decidi fazer um disco a solo”, avança o músico.

Anos mais tarde, conheceu Ricardo Dias Gomes, músico brasileiro, que viria a co-produzir o álbum de estreia com André Henriques. “Durante um mês encontrámo-nos algumas vezes para registar as canções que me iam surgindo e pensar os arranjos. Num desses encontros disse-lhe que queria chamar ‘Cajarana’ ao disco e contei-lhe a história da novela e do desconforto que me causava a alcunha em miúdo”.

A curiosidade é que o músico brasileiro respondeu que não se lembrava da novela mas ao pesquisar na internet deparou-se com a curiosidade máxima: “Caramba, foi a minha avó que escreveu essa novela”. Ficámos os dois perplexos. Nascemos os dois no mesmo ano, em dois lados opostos do Atlântico, decidimos trabalhar juntos sem nos conhecermos e no final de tudo tínhamos entre nós esta desconcertante coincidência”.

Cajarana é um álbum feito de impulso, composto num período de 2 meses, juntando músicos em 6 ensaios e, em menos de uma semana, concluindo o álbum que vê agora a luz do dia.

É um exercício de humildade, fazer canções simples sem cair na tentação de as limar e as reescrever vezes sem conta. É um disco de impulso que quer expôr a fragilidade das canções. Como se elas exigissem o cuidado de quem escuta para não se partirem antes de chegar ao fim.

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[Queres é (a) Letra!] Linda Martini – E Não Sobrou Ninguém https://branmorrighan.com/2021/02/linda-martini-e-nao-sobrou-ninguem.html https://branmorrighan.com/2021/02/linda-martini-e-nao-sobrou-ninguem.html#respond Fri, 05 Feb 2021 10:42:22 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24991 E Não Sobrou Ninguém

Linda Martini – E Não Sobrou Ninguém

Os Linda Martini sempre foram uma banda de instintos aguçados que com uma sonoridade incisiva conseguiram apelar sempre a um lado humano muito visceral. Desde o primeiro EP (Linda Martini, 2005) que cada disco trouxe uma reinvenção tanto lírica como sonora, sem nunca perder a personalidade forte que lhes conquistou milhares e milhares de fãs por todo o país e além fronteiras.

Não será arriscado dizer que dificilmente desiludem e quem segue os elementos da banda pelas redes sociais também se consegue aperceber que existe uma veia activista forte e exemplar (pelo menos na minha opinião). Esse activismo é agora mais uma vez reforçado com “E Não Sobrou Ninguém”, tema hoje lançado pelos Linda Martini.

O título de “E NÃO SOBROU NINGUÉM” é inspirado no célebre poema de Martin Niemoller sobre a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha. É uma reflexão sobre eventos recentes e sobre séculos de atrocidades, injustiça, preconceito e discriminação para com seres humanos que não se enquadram na etnia, género, religião, posição social ou comportamento sexual dominante.

A cor da nossa pele, com quem nos deitamos, o que temos entre as pernas, que língua falamos, em que país nascemos, a que Deus rezamos, quanto ganhamos por mês. Nada disto nos define, nada disto nos faz melhores pessoas. – Linda Martini

Nunca tanto como hoje foi urgente quebrar barreiras racistas e discriminatórias. A desinformação abunda até em meios de comunicação credíveis e o ser humano tem–se deixado levar por aquilo que lhe é mais fácil acreditar se puder culpar uma terceira pessoa/entidade pela sua desgraça, sem qualquer esforço de verificar a veracidade do mesmo.

Para mim, esta canção dos Linda Martini é uma chapada de luva branca e uma espécie de manifesto contra a imbecilidade que parece reinar estes dias entre a população portuguesa e até internacional. Tenho a certeza que, quando finalmente pudermos voltar aos mosh pits e à catarse dos concertos, este vai ser um dos temas mais aclamados da banda. Merece-o, certamente. Obrigada, Linda Martini.

E NÃO SOBROU NINGUÉM” é uma canção escrita e interpretada por André Henriques, Cláudia Guerreiro, Hélio Morais e Pedro Geraldes, que dão pelo nome coletivo de LINDA MARTINI. Foi gravada por Santi Garcia em Lisboa, nos estúdios Namouche, em Janeiro de 2021.

Créditos 

Título: E NÃO SOBROU NINGUÉM
Duração: 04:17
Letra: André Henriques
Música: André Henriques, Cláudia Guerreiro, Hélio Morais, Pedro Geraldes
Intérpretes: André Henriques – voz e guitarra / Cláudia Guerreiro – Baixo e voz / Hélio Morais – Bateria / Pedro Geraldes – Guitarra
Produção: Santi Garcia e Linda Martini
Gravação: Santi Garcia assistido por Bernardo Centeno e Francesca River, nos Estúdios Namouche 
Mistura: Santi Garcia nos Estúdios Ultramarinos Costa Brava
Masterização: Victor Garcia nos Estúdios Ultramarinos Mastering
Realização, Câmara e Edição: Ana Viotti

Letra

Preto, negro, de cor escura
Branco ou cor-de-rosa, como cal em pedra dura
Chinês made in Taiwan, amarelo, olhos em bico
Um cigano, um do leste e um zuca
Entram num bar com um ar aflito

Por cada braço em riste
Será que te riste,
Ou levaste a sério?
Quando vierem por ti amanhã
Vais gritar “ai mamã, ai mamã,
Cresceu-me um império de ódio no cu!”

Ai, que te roubam o trabalho
A mulher, o salário, ai
A bandeira, o país
Ai, a culpa é dos outros,
Tu pagas impostos, não é?
Só queres ser feliz

A minha pele é cor de água
A minha pele é cor de vidro
A minha pele é cor de mágoa
Um tom qualquer desconhecido

A tua pele é cor de pó
A tua pele é cor de mofo
A tua pele é uma cor só
Um tom qualquer, eu nem te oiço

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[Os Meus Discos] Uma Palavra Começada por N, de noiserv https://branmorrighan.com/2021/01/os-meus-discos-uma-palavra-comecada-por-n-de-noiserv.html https://branmorrighan.com/2021/01/os-meus-discos-uma-palavra-comecada-por-n-de-noiserv.html#comments Mon, 25 Jan 2021 16:34:40 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24931 Uma palavra começada por N

Uma Palavra Começada por N, de noiserv

“Eram 27 metros de salto mas parou, meio picotado neste andar, neutro, sem tempo, por arrasto, sempre rente ao chão.”

Cada vez que noiserv lança um disco sabemos que, mais do que um conjunto de músicas, o que nos chega às mãos é uma autêntica composição artística em que sonoridade, estética e lirismo se conjugam de forma a que o todo não seja a soma das partes, mas antes uma espécie de ser vivo a viver as suas diferentes fases de metamorfose.

Eram dias mortos numa luta de querer ser sempre

Uma palavra começada por N, a meu ver, marca um ponto de destaque no caminho que David Santos tem percorrido na música. Entre o projecto noiserv e You Can’t Win Charlie Brown, o conceptualismo e a engenharia musical têm sido a grande imagem de marca do artista português. Cada disco de noiserv tem-se revelado uma partilha íntima e que de alguma forma se liga a uma manifestação necessária do universo interior e complexo da sua mente. Conhecido como o homem-orquestra, as suas criações evocam fascínio, empatia, alegria, mas também melancolia.

Eram 27 partes de um olhar, aquele que tu nunca vais querer parar

Neste disco, não só temos todas essas componentes como também é fácil sentir uma maior aproximação de um lado talvez ainda mais vulnerável e pessoal do artista português. Depois de em 00:00:00:00 termos voltado a ouvir noiserv em português (que só tinha acontecido numa canção – Palco do Tempo), eis que temos um registo completo na língua de camões. E porque é que destaco este aspecto? Porque, na minha opinião, existe uma maior intensidade emotiva quando noiserv canta em português.

Porque nunca vês o que nunca te dói

O seu timbre associado à sua sonoridade faz com que as frases mais simples sejam sentidas no nosso âmago que nem pedras num charco. Por outro lado, esta combinação também acontece no sentido oposto, fazendo com que declarações mais intensas sejam recebidas de forma mais leve. Esta dualidade entre a luz e as sombras de um espírito inquieto, numa demanda que cada um forma na sua cabeça, é enriquecida pela exploração de diferentes paisagens instrumentais que têm sempre algo em comum – uma espécie de omnipresença e omnisciência estruturalmente rica que une todos os temas.

Mas é o céu que me desfaz, aperta um pouco ao respirar

Honestamente acho que é o melhor disco de noiserv até ao momento. Não digo isto de ânimo leve, dado o significado especial que tem A.V.O, mas acho que é preciso coragem para dar o passo de se mudar não só a língua a que os fãs estão habituados a ouvir, como também a nível visual acho que foi feito um trabalho extraordinário. A colaboração com a Casota Collective na produção dos vídeos de cada uma das músicas do disco resultou muito bem e a imagética explorada reforça este contraste entre leveza e intensidade, desorganização e concentração emocionais. Para além disso, o facto de terem sido lançados com um mês de intervalo até à saída do disco, revelou-se uma estratégia vencedora.

Eu já me remendo por dentro, sem tocar

Acho que a única coisa que ainda me aperta o coração é não ter tido a oportunidade de ver nenhuns dos espectáculos esgotados. Ainda me lembro que quando o disco saiu, ainda eu estava a viver nos Estados Unidos, acordei antes das 7h da manhã e logo depois do yoga liguei o Spotify para finalmente ouvir a obra completa oficialmente cá fora e sorri. Um sorriso que emergiu de uma espécie de luto (que eu sentia devido a circunstâncias da minha vida) que se viu finalmente manifestado numa obra sonora a que me podia agarrar, assim libertando-me. Obrigada, noiserv.

Não estar é perto de ser o que não fui.

Uma brincadeira que fiz com as letras deste disco. O tamanho de cada palavra representa a quantidade de vezes (relativa) que aparece ao longo dos temas. Foram excluídas palavras que só aparecem uma vez e as palavras “por”, “de” e “que”.
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[Os Meus Discos] Vénia, de João Vairinhos https://branmorrighan.com/2021/01/os-meus-discos-venia-de-joao-vairinhos.html https://branmorrighan.com/2021/01/os-meus-discos-venia-de-joao-vairinhos.html#respond Mon, 18 Jan 2021 20:31:33 +0000 https://branmorrighan.com/?p=24860 Vénia

Vénia
João Vairinhos

Com uns meses de atraso, aqui fica a devida menção honrosa a um daqueles que foi, para mim, um os discos do ano. Vénia é o primeiro EP de João Vairinhos, disponível em vinil no seu bandcamp. Diz a sua biografia que “é um baterista que cresceu como músico no circuito punk/hardcore nacional. Atualmente colabora de forma regular com MURAISLÖBORicardo Remédio e Wildnorthe, e de forma mais pontual noutros projectos como os The Youths com Bruno Cardoso (XINOBI), ou Altura (João Brito), com quem gravou um EP colaborativo com o nome The Citadel.

Com um currículo destes, quem não ficará curioso por ouvir o resultado de uma experiência a solo? O single de estreia, Vala Comum, abriu portas para um universo que nos veio mostrar um lado de João Vairinhos ainda inexplorado e que muito se tem apurado desde a sua primeira criação Eternos São os Corvos. A viagem que percorremos com Vénia é uma que é capaz de inspirar os cenários literários e cinematográficos mais intensos, em que todo o ambiente nos parece encaminhar para aquele acontecimento que poderá mudar a vida de todos.

Curioso que, nos temos em que vivemos com a pandemia a morder-nos os calcanhares, a criação deste disco foi uma espécie de premonição. Os seus três temas – Chegaram, Vala Comum e Vénia – encadeiam-se de uma forma orgânica e desafiadora, ao mesmo tempo que contemplativa e de cariz distópico. Com o caos em que vivemos, os hospitais sobrelotados, as mortes a aumentarem, o desespero e a solidão que a tantos assaltam, ouvir estes disco é uma espécie de catarse.

A partir do momento em que os sinos são evocados na faixa “Chegaram”, iniciamos uma marcha que podia ser muito bem pelo universo de Hades, com todas as aventuras e desventuras da selvajaria com que são relatadas as aventuras dos deuses. Mas tal como Hades tem Perséfone, também a criação de João Vairinhos tem um cariz sedutor pelas sombras que evoca e que destrói. Este universo noir conta com as colaborações de Sérgio Prata Almeida na faixa “Vala Comum” e de Ricardo Remédio na faixa homónima “Vénia”, que vieram enriquecer ainda mais a paisagem fascinantemente dantesca.

As sonoridades exploradas estão longe de conter apenas a bateria com a qual estamos habituados a ver o músico português a ser dono e senhor. Fazendo uso de outras maquinarias, o aprendiz tornou-se mestre. Vénia constrói uma realidade na qual nos podemos refugiar e reflectir, na qual nos podemos desconstruir e recriar, estando à mercê de luz e escuridão, rendendo-nos aos demónios interiores que enfrentamos e seguindo em frente. Já dizia Bukowski “what matters most is how well you walk through the fire“. Fica a recomendação: não sei se encontram melhor companhia.

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