Rachel Cusk – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Mon, 28 Dec 2020 05:56:42 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.3 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Rachel Cusk – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 Citações Aleatórias – Rachel Cusk https://branmorrighan.com/2017/05/citacoes-aleatorias-rachel-cusk_8.html https://branmorrighan.com/2017/05/citacoes-aleatorias-rachel-cusk_8.html#respond Mon, 08 May 2017 09:37:00 +0000

Suponho, continuei eu, que seja uma definição do amor, a crença em alguma coisa que somente aquelas duas pessoas conseguem ver, e, neste caso, veio a revelar-se um fundamento precário da vida. (…) Era difícil, disse eu, não ver nesta transposição do amor para a facticidade um espelho das outras coisas que se estavam a passar na nossa casa naquela altura. O mais surpreendente naquela transição era a pura capacidade negativa da intimidade que eles partilhavam anteriormente: era como se tudo o que estivera no interior se tivesse mudado para o exterior, peça por peça, como mobília tirada de dentro de uma casa e colocada no passeio. Parecia ser tão intenso porque o que estava invisível era agora visível; o que fora útil era agora redundante. O antagonismo entre ambos surgia na exacta proporção à sua anterior harmonia, mas, enquanto a harmonia fora intemporal e inefável, o antagonismo ocupava espaço e tempo. O intangível tornara-se sólido, o visionário encarnara, em guerra, o privado era agora público: quando a paz se transforma em ódio, há alguma coisa que nasce para a vida, um impulso de pura mortalidade. Se o amor é aquilo a que nos agarramos para nos tornarmos imortais, o ódio é o inverso. E o mais espantoso é a profusão de pormenores que este reúne para si mesmo, de modo que nada permanece intocado por si. (…) debatiam-se para se libertarem um do outro, porém a última coisa que poderiam fazer era deixar o outro só. Lutavam por tudo, disputavam  posse do objecto mais insignificante, ficavam enfurecidos pela mais leve variação do discurso e, quando por fim ficavam enlouquecidos pelo pormenor, irrompiam na violência física, golpeando-se e arranhando-se um ou outro; o que, obviamente, os devolvia à loucura do pormenor, pois a violência física acarreta o longo e arrastado processo da justiça e da lei. A história de quem tinha feito o quê a quem tinha de ser contada, e as questões da culpa e do castigo, identificadas, embora tal nunca satisfizesse nenhum dos dois; na realidade, piorava as coisas, porque parecia prometer uma resolução que nunca chegava. Quanto mais os meandros eram particularizados, maior e mais real a discussão se tornava. Cada um deles desejava acima de tudo ser declarado o detentor da razão e que o outro fosse declarado como estando errado, mas era impossível atribuir inteiramente a responsabilidade a qualquer um deles. E acabei por compreender, concluí eu, que isso nunca poderia ser resolvido, pelo menos enquanto o objectivo fosse estabelecer a verdade, pois já não existia uma só verdade, e isso era a questão. Já não existia uma visão partilhada, ou até mesmo uma realidade partilhada. Cada qual via agora as coisas unicamente a parti da sua própria perspectiva: e existia apenas um ponto de vista.


A Contraluz, Rachel Cusk

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Citações Aleatórias – Rachel Cusk https://branmorrighan.com/2017/05/citacoes-aleatorias-rachel-cusk.html https://branmorrighan.com/2017/05/citacoes-aleatorias-rachel-cusk.html#respond Sun, 07 May 2017 12:25:00 +0000

Recordei o modo como os meus filhos, quando eram ainda bebés, deixavam cair deliberadamente as coisas do alto das suas cadeirinhas para as ficarem a observar enquanto caíam no chão, para eles uma atividade tão encantadora quanto as suas consequências eram assustadoras. Ficavam a olhar fixamente para baixo, para a coisa caída no chão – uma tosta meio comida ou uma bola de plástico – e tornavam-se cada vez mais agitados diante da incapacidade de aquele objecto regressar por si às suas mãos. Acabavam por começar a chorar e normalmente descobriam que o objecto caído regressava para eles por essa via. Nunca deixou de me surpreender que a reacção deles perante esta cadeia de acontecimentos fosse repeti-la: mal o objecto se encontrava nas suas mãos, deixavam-no cair outra vez, inclinando-se para o ver cair. O seu prazer nunca diminuía, nem tão-pouco a sua angústia. Eu achava sempre que a determinada altura eles iriam compreender que a sua angústia era desnecessária e que iriam optar por a evitar, mas eles nunca a evitavam. A memória do sofrimento não tinha qualquer efeito sobre o que elegiam fazer: pelo contrário, compelia-os à repetição, pois o sofrimento era o toque de mágica que fazia com que o objecto voltasse a eles e permitia o prazer de o deixar cair novamente fosse possível. Tivesse eu recusado a devolvê-lo na primeira vez que o deixaram cair, julgo que eles teriam aprendido alguma coisa muito diferente, embora não tivesse certa do que tal poderia ser.

A Contraluz, Rachel Cusk

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