Trance Map + – Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Sun, 30 Jul 2023 10:22:41 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.1 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Trance Map + – Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 Jazz em Agosto 2023: seis músicos encontram-se num palco… [Trance Map +] https://branmorrighan.com/2023/07/jazz-em-agosto-2023-seis-musicos-encontram-se-num-palco-trance-map.html https://branmorrighan.com/2023/07/jazz-em-agosto-2023-seis-musicos-encontram-se-num-palco-trance-map.html#respond Sun, 30 Jul 2023 10:21:21 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25443

Jazz em Agosto 2023: seis músicos encontram-se num palco…

Improvisação radical, com músicos experientes e sapientes. Trance Map +, o sexteto que protagonizou a segunda noite do Jazz em Agosto, na Fundação Calouste Gulbenkian, trouxe diversidade ao programa.

Texto: João Morales

Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo

Os membros do sexteto acomodam-se e a primeira coisa que salta à vista é a posição ocupada pelo saxofonista, instrumento habitualmente colocado na linha frontal do palco. Apesar de se tratar de uma figura de nomeada, Evan Parker senta-se ao centro, atrás de todos. O colectivo designa-se Trance Map + e nasceu da junção do histórico inglês (n. 1944), figura seminal do jazz mais arrojado (nos anos 60 do séc. XX integrava o Spontaneous Music Ensemble) com Matt Wright, nome ligado a referências da electro-acústica como Ikue Mori ou Spring Heel Jack (emblemático duo de John Coxon e Ashley Wales, que desafiou várias figuras do jazz, na editora Thirsty Ear). A função de Wright passa, em boa medida, pela apropriação dos sons dos seus parceiros, devolvidos depois de moldados, reintegrados no discurso colectivo. 


A função inicia-se com o famoso sopro contínuo de Evan Parker, no soprano que utilizará toda a noite. É uma serpente que surge norteando o dealbar do percurso, uma serpentina que se desenrola enfeitiçando os ares que nos rodeiam e demonstrando que a dimensão xamânica estará sempre alerta durante uma cerimónia partilhada que se avizinha. Tónica que, aliás, se enquadra perfeitamente na linha programada para este ano pelo curador do festival, Rui Neves.

Entre momentos empolgados e outros devedores da mais dedicada contenção, os ambientes vão-se metamorfoseando, numa cadência contínua – a noite é preenchida com um único tema, sem interrupções – deixando gradualmente comprovadas as palavras da descrição prévia do colectivo, quando se podia ler no programa do festival que esta é uma abordagem desenvolvida «sem sofreguidão, explorando ambientes electro-acústico e sonoridades que vivem fora das grandes artérias, em caminhos pouco iluminados  e percorridos».






Rapidamente entendemos que estamos um momento de criação comunitária, onde cada um dos elementos está atento ao respirar dos restantes, a cada gesto mínimo e as suas consequências, consolidando um manto sonoro partilhado, longe do modelo em que uma base mais previsível e cada solo enunciador se evidenciam. A noite não será de jazz, pensarão os mais afoitos ao cânone ancestral. A noite será de comunhão e improvisação, radical, talvez, mas segura e ponderada, reconhecerão todos.

O segundo sopro que bafeja na noite é Peter Evans, um dos prodígios dos anos mais recentes, figura que também já nos visitou em diversos formatos e ocasiões. Evans, ora espreme o trompete, ora retira dele um frasear lancinante, ora vocifera enquanto toca o seu instrumento (sonoridade sabiamente integrada), ora dedilha com delicadeza e notas quase soletradas. Figura central do mítico quarteto Mostly Other People Do the Killing, Evans é, sem dúvida, um dos maiores trompetistas da sua geração.


Ao lado do já referido Matt Wright, há mais um músico encarregue de valorizar a electrónica, humanizando-a e integrando-a nesta cadência colectiva que se vai propagando, com oscilações entre o eclodir do enxame que zumbe a seis vozes e um amainar das tensões e dos sons, rente ao minimalismo e ao mais rústico metrónomo. Trata-se do veterano Pat Thomas (n. 1960), que ainda em 2022 fez furor neste mesmo festival com o projecto Ahmed, e tem no currículo nomes como Tony Oxley, Lol Coxhill, Steve Beresford Phil Minton ou Roger Turner. Pianista, desde 1989 tornou-se um explorador das novas tecnologias e a forma como utiliza o laptop espelha bem uma alegria contagiante.

Um violoncelo pertinente esteve entregue a Hannah Marshall, figura com ampla experiência no campo da música para teatro e cinema, com interpretação de trabalhos de figuras como Simon Fell, John Butcher, Tim Hodgkinson ou Alex Ward e partilha de palcos com Veryan Weston, John Edwards, Tony Marsh, os já referidos Beresford e Butcher ou, claro, Evan Parker. Mostrou-se muito segura do seu papel nesta nova aventura, sendo responsável por algumas passagens entre a calma e a avalanche, recorrendo ao arco e ao dedilhado consoante a inspiração lhe pedia.


Por último, ao centro do palco, o percussionista, Toma Gouband (n. 1976), uma figura surpreendente e original, que se tem notabilizado por um conjunto de workshops em ambiente académico, sobre polirritmia. Logo a começar pela sua bateria, constituída por um bombo, largo, na horizontal, um prato e um prato choque. Na maioria do tempo, os instrumentos que brandia nas mãos eram pedras, troncos, pinhas, ou um conjunto de ramos com que vergastava a pele do bombo ou os pratos (ou até mesmo sibilando no ar), criando alguns momentos quase hipnóticos pelas opções rítmicas que empregava (sempre calmas e longe de qualquer espectacularidade), mas também pela articulação com a electrónica de Pat Thomas, talvez o músico com que melhor se entrosou, sem nunca abdicar da sua singularidade musical, mais intuitiva e espiritual, do que tecnicamente evidente.

Mesmo quando recorreu a algo semelhante a baquetas, os ritmos adoptados, a forma como ataca a “bateria” e distribui os gestos, confundirá, certamente, os mais clássicos, ainda que encontrando alguns traços hereditários, vindos das experiências de Han Bennink, Roger Turner ou até Max Eastley. Na base da sua abordagem peculiar estará, em grande medida, uma estadia junto dos pigmeus dos Camarões, em 2006, que o levou a reequacionar toda a abordagem ao instrumento (percussão).

Ao longo dos 60 minutos que durou a prestação, sem encores, Evan Parker parou por diversas vezes de tocar, de saxofone em riste, olhos cerrados, escutando, interiorizando o que se passava à sua volta, sem ímpetos de fulgor permanente. Não demorou a percebermos porque, apesar de o sexteto funcionar bem como um todo e Evan Parker se silenciar amiúde, uma boa parte da energia que comandou a noite nascia daquele sax soprano e daquele fôlego inconfundível, mesmo quando calado. Há vozes assim.

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