[CINEMA] Crítica ao filme «Enemy» – O Homem Duplicado – por Tiago Silva

A escrita de Saramago é uma ordem por decifrar

Se a adaptação ao cinema de qualquer obra literária constitui sempre uma tarefa complexa e exigente, lidar com a escrita de Saramago e reinventá-la de modo a permitir a sua representação visual é um esforço particularmente trabalhoso — não por qualquer delito ou ambiguidade do autor, antes pela efervescência e singularidade do seu discurso. Esta ideia tornou-se evidente aquando da estreia de Ensaio Sobre a Cegueira de Fernando Meirelles (encarado como medíocre e decepcionante pela generalidade dos espectadores, apesar dos emocionados elogios tecidos pelo escritor) e acentua-se com este Enemy de Denis Villeneuve. Sendo trabalhos em que os realizadores se comprometeram a deixar de lado as questões mais formais e a focar-se exclusivamente na acção, é natural que não se verifique qualquer reflexão sobre o processo e a densidade da escrita, com os seus enigmas tão característicos; o que não chega a ser censurável, embora pudesse produzir resultados bem mais interessantes. No entanto, esta nova tentativa de assimilação da sua prosa é indubitavelmente mais pertinente.

Convém salientar, antes de mais, que Enemy é uma interpretação deveras livre da obra de onde extrai o seu conteúdo e que quem procurar fidelidade aos vários aspectos da narrativa sentir-se-á desiludido: é que o homem duplicado que nos é lentamente revelado nas páginas do livro é diferente daquele que é interpretado por um Jake Gyllenhaal competente e enloquecido pelas várias facetas da sua identidade. No filme, apenas se aproveitam algumas premissas que servem de base à história, transformando-se grande parte da atmosfera em que os acontecimentos se desenrolam: tudo é mais opressivo, claustrofóbico e desesperante, não só pela ausência do delicioso sarcasmo tão presente no romance, como pela fotografia soturna e trabalho de som admirável, que ataca os sentidos sem qualquer aviso na sequência inicial, onde o desejo atinge níveis doentios. E é sobretudo de desejo obsessivo e controlador que se fala durante a hora e meia seguinte. O ambiente obscuro criado por estes primeiros planos mantém-se durante toda a diegese e faz do filme uma experiência verdadeiramente perturbadora e verosímil.

Os ecos de Franz Kafka eram já notórios no livro e Villeneuve faz questão de engrandecer essas peculiaridades, transfigurando-as através de uma desorientação mental que roça o ensurdecedor; o que resulta bem na maior parte da narrativa e confere originalidade ao seu trabalho, apesar de algumas falhas ocasionais criadas pela montagem e que revelam alguma insegurança, especialmente na transição entre planos (os flashes, as constantes fusões em negro, as elipses) e na falta de um dispositivo que assegure a fluidez dos acontecimentos. Ainda que muito daquilo que vemos em Enemy se processe ao nível do inconsciente, o surrealismo cai por vezes num espalhafato despropositado — e neste sentido, as comparações com Lynch são hiperbólicas e até dispensáveis. O realizador tem, no entanto, o mérito de provocar no espectador uma sensação semelhante aquela que nos acompanha nos dias posteriores à leitura do thriller: a paranóia e a consciência do absurdo de tudo trepam por nós como os aracnídeos imprevisíveis do filme. Em suma, Enemy é uma homenagem hábil à obra de Saramago. Mas ainda não foi desta vez que conseguiu encontrar equivalente fílmico.

Tiago Silva

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