Xerazade
Manuela Gonzaga
Editora: Bertrand
Sinopse: Xerazade – A Última Noite leva-nos aos meandros de uma fascinante tapeçaria narrativa, onde podemos encontrar referências díspares, quer de mitos clássicos ou pré-clássicos, quer ainda de histórias de encantar, juntamente com «memórias» soltas como «um colar de pérolas» desatadas, que a narradora, Xerazade, tenta reconstruir para confortar o amante que, inconformado, se recusa a deixá-la ir embora.
Opinião: O meu primeiro contacto com a escrita da autora Manuela Gonzaga deu-se com a sua obra Moçambique – Para a Mãe Lembrar Como Foi, escrito em honra e memória da sua mãe. Mesmo sendo autobiográfico, houve algo na sua forma de expressão que me conquistou, um sentido de personalidade e força, mesmo no meio das fraquezas, que rapidamente humanizou aquela imagem de escritor que muitas vezes temos tida como distante e fria. Não foi surpresa para mim quando, fazendo o balanço das leituras de 2014, não tive dúvidas que aquele era um dos livros do ano, não havia outra hipótese dada a sua qualidade. Quando elevamos assim a consideração e o gosto por um escritor, pegar em algo novo seu causa sempre aquele formigueiro de expectativa. Irei gostar tanto como o outro? Tendo lido apenas um único livro, que poderei esperar deste novo num formato diferente? Lido este segundo, Xerazade – A Última Noite, tenho a certeza que não podia estar mais certa quanto à minha opinião e que Manuela Gonzaga é das melhores escritoras que alguma vez li.
«Não tenhas medo. Não é para sempre. Se nunca nos perdemos até agora, não será desta que tal acontecerá. Temos de aprender a aceitar as separações com a serenidade que nos for possível. Sabendo que todas elas escondem a alegria dos reencontros que nunca nos falham.»
Ao contrário do que nos tem habituado, Xerazade até pode ter algo de auto-biográfico, mas pegamos nele enquanto romance, enquanto universo que nos engole e nos consome à medida que percorremos cada página. Tal como a própria narrativa o vai demonstrando, também a leitura se torna febril capítulo após capítulo. “Não me deixes.”, desejo sentido pelos protagonistas, mas também pelo leitor, que se vê vazio quando tem que pousar o livro.
«Nunca devemos mostrar tudo o que temos, quando o que temos é mais do que quase toda a gente tem. Não são luxos, mas passam por isso. São mais do que isso, até. São frutos de muito amor e muito labor. Mas as pessoas só vêm o resultado final e então provam o mais ácido dos venenos. A inveja.»
Quem é que não conhece as Mil e Uma Noites? Em que Xerazade empreende num plano arriscado para salvar a vida das mulheres que o sultão insiste matar todos os dias? É com estórias, as mais belas e aterradoras, em que a eloquência e a sagacidade com que desenrola cada fio narrador lhe concede mais algum tempo de vida. É num formato parecido que viajamos por uma estória que é de dois, mas de muitos mais, uma trama apaixonada que não se prende a estereótipos e que expele as mais diversas emoções inerentes ao ser humano – paixão, amor, dor, ódio, rancor, lealdade e traição, entre tantos outros.
«A dor tem muitos rostos e muitas formas de se fazer sentir.»
Existe uma genialidade nesta narrativa que está ao alcance de muito poucos, ou de mais ninguém. Não é algo que se compare, é certamente belo e fascinante, mas penso que acima de tudo único e, mais uma vez, Manuela Gonzaga mostra a fibra de que é feita. Flexível, sem quebrar, forte sem deixar de ser sensível, e uma capacidade de projectar os cenários mais simples de forma tão intensa. Existe uma estética e uma imagética tão sedutores quanto torturantes, no bom sentido, pois queremos rapidamente chegar ao fim sem que na verdade toda esta musicalidade mitológica, real, filosófica e paisagística termine.
«No princípio de todos os princípios, foi o som. Depois, a palavra. Por fim, a música. A trindade primeva da criação. A sua emergência em espírito, alma e corpo. Um corpo de glória, cuja pauta são os números sagrados. É por isso, que a música está em todo o lado — desde os confins do espaço e do fundo dos tempos, à incerta e delicada estrutura atómica. Cada estrela, cada planeta, cada galáxia, cada cometa e cada asteróide cantam na sua própria vibração. Assim como cantam todos e cada um dos corpos — da célula ao átomo e seus componentes até à plataforma fantasmática da preexistência quântica. A música mora em tudo e em todos. E está presente até no silêncio. É a assinatura da vida.»
Todos conhecemos a lei da atracção e da unicidade da matéria que nos faz reflectir, que nos leva a questionar o que nos rodeia. Neste contexto, mais do que um livro que dá respostas, através de Xerazade a escritora levanta várias questões, confronta o leitor com a sensação do todo, mas também com a inevitabilidade da perda, do que fica no fim. Era capaz de esgotar elogios no que a este livro diz respeito e mais, tenho a certeza que esta obra se vai tornar num Clássico da Literatura Portuguesa.
Até me arrepiei toda! O que acontece quando alguma coisa nos toca bem no fundo (e não é o frio…) 🙂
Obrigada, Isabel 🙂