Não é preciso ter uma relação de grande profundidade com a música portuguesa para se reconhecer o nome Tó Trips. Nos dias que correm, principalmente, é tido e comprovado como um dos grandes guitarristas portugueses e mestre naquilo que faz. Teve vários projectos musicais, mas actualmente mantém o seu trabalho com Pedro Gonçalves nos Dead Combo e lançou agora um novo disco a solo – Guitarra Makaka – Danças a um Deus Desconhecido. O primeiro foi lançado em 2009, Guitarra 66, tendo sido dedicado à sua mulher, Raquel. Sobre estas coisas e muitas mais podem ler na entrevista que se segue.
Fotografia por Raquel Castro |
A guitarra é já uma extensão do Tó Trips, mas uma curiosidade tomou a dianteira, se este se lembraria dos seus primeiros contactos mais a sério com a música! «Lembro-me do primeiro concerto que dei, foi com Amen Sacristi na escolha primária de Chelas, acho eu. Começámos em 1986!» Imaginem só que ainda nem eu era nascida!
A formação académica em si não esteve ligada ao meio musical, Tó Trips contou que andou na D. Pedro V., passou pela António Arroio e depois quis ir para cenografia. «Eu gramava pintar e depois consegui arranjar um estágio numa agência de publicidade na Thompson e fiquei na publicidade até 2000.» Depois de Amen Sacristi ainda vieram os famosos Lulu Blind que acabaram por não resistir à mudança dos tempos: «Nos anos 90 ainda não havia a cena dos auditórios e sendo punk/hardcore fazíamos basicamente bares e clubes. Quando surgiu a cena dos DJs, muitos desses bares optaram por, em vez de pagar a bandas, ter DJs que enchiam mais a casa (risos). No final dos anos 90 essa quebra foi mais forte. O único bar que continuava com concertos de bandas era o Bafo de Baco no Algarve.»
Nisto das bandas, estamos habituados a ver o Tó sempre agarrado à guitarra, mas o que se calhar alguns não sabem foi que ele também foi vocalista por uns tempos… «Fui vocalista porque a malta tinha vários problemas com vocalistas e alguém tinha de se chegar à frente. (risos) Eu não era vocalista, até tinha um certo preconceito de ser vocalista e guitarrista, o que eu gostava era de tocar guitarra, mas na altura cansámo-nos de ter problemas com vocalistas e nóias de vocalistas e então cheguei-me à frente. O que a malta queria era divertir-se, tocar, ter uma banda e não estar sempre com problemas, daí termos resolvido as coisas dessa maneira.»
Ter uma banda nem sempre é tão fácil quanto parece e daí o Tó também se ter começado a isolar mais no seu trabalho artístico: «Cansei-me um bocado do pessoal trazer problemas pessoais, que todos temos, para os ensaios. Por mais que goste dessas pessoas, chegas a uma altura em que passas mais tempo a discutir do que a ensaiar, quando o que queres é estar ali a tocar e a perderes-te naquilo. Depois também foram saindo pessoas que começaram de início, por se terem cansado, e eu então comecei a compor umas malhas sozinho, até encontrar o Pedro que também estava farto da cena do Jazz. Basicamente fiz isto para não desistir de uma coisa que eu gosto que é a música. Se havia problemas com outro pessoal, por que não fazer alguma coisa sozinho? Também comecei a ouvir outras coisas, comecei a ser um pouco mais eclético. Nos anos 90 ouvia muito rock, cenas pesadas também. Foi uma boa escola, em tudo aprendes sempre alguma coisa. Mas comecei a ser curioso por outras coisas, Jazz, música africana, música improvisada… Acho que a idade também leva um pouco as pessoas a serem mais tolerantes. A idade tem alguns defeitos, mas também te traz outras coisas. E se tocas um instrumento deves ser sempre curioso em relação a esse instrumento e a quem o toca de maneiras que não conheces ou não estás habituado. Deves investigar o máximo que puderes sobre ele.»
Neste seu percurso a solo, li uma vez que tinha sido através da sua mulher, Raquel, que acabou por conhecer outros guitarristas e também o seu primeiro trabalho é-lhe dedicado. «Sempre aprendi muito com as mulheres com quem eu andei, com as minhas namoradas e actualmente com a minha mulher. Acho que as mulheres são sempre muito mais curiosas que os homens. Isto é a minha opinião, não é por seres mulher. (risos) Mas acho que muitas vezes até são mais para a frente que os homens no sentido de abertura e gostarem de coisas que possam não ser a praia delas. Já nos anos 90 e mesmo agora, estou sempre a aprender com a minha mulher que me mostra coisas novas. Cheguei a ter uma namorada, que ainda hoje é nossa amiga, que me mostrava drum&bass e essas coisas, que não eram a minha cena, e acabei por ouvir e interessar-me. Aliás, tenho um amigo meu que tem a teoria que as bandas só têm sucesso se a maior parte das mulheres gostar (risos). Uma vez li uma entrevista do Fat Boy Slim que dizia que cada vez que fazia as músicas mostrava a duas amigas e que se elas gostassem que aquilo ia ser um sucesso. (risos) E tens o caso dos Beatles, em que tens as miúdas todas loucas. E isso porque as mulheres têm esse lado mais aberto, menos conservadoras do que os gajos.»
Surge então o Guitarra 66, o primeiro trabalho a solo, resultado de tocar todos os dias e da construção de uma homenagem não só às viagens que fez como à sua própria mulher, Raquel. 66, ano de nascimento de Tó Trips dá o moto ao título. Guitarra Makaka é o sucessor, num estilo bastante diferente com utilização tanto da guitarra clássica como da Resonator numa afinação diferente. «O que aconteceu foi, primeiro arranjei aquela afinação, foi quase como reaprender a tocar por ter de adequar o som da guitarra aos sons do zither da Adriana que me convidou a tocar com Timespine. Perguntei-lhe como é que aquilo estava afinado, conseguimos arranjar uma afinação que soasse bem em conjunto e depois comecei a experimentar isso em casa. Nessa altura topei que aquilo tinha coisas que tanto podiam ser árabes, como portuguesas e até africanas. Entreti-me à volta dessa afinação que ao fim ao cabo acaba por ser um desafio para mim, aprender uma linguagem para tocar na guitarra.»
Damos por nós numa ilha imaginária com diversos cenários: «Tem um lado talvez mais primitivo e espiritual. Associei às vezes a cantares africanos, a ritos. Depois andei à procura de mapas antigos, e gravuras antigas, de ilhas do Pacífico. Por exemplo, há um filme que eu gosto que é A Revolta na Bounty em que eles revoltam-se e piram-se para uma ilha que não vinha no mapa, esse tipo de imaginário. Como era uma coisa nova para mim[a afinação da guitarra], estava a explorar o desconhecido. E isso da Guitarra Makaka é porque os dedos saltam bué de um lado para o outro e aquilo às vezes faz uma espécie de guinchos. Entretanto lembro-me de ter visto uma ilustração num livro do Voltaire, uma gravura antiga, em que eram uns macacos a dançar com umas mulheres. Acabei por adaptar essa ilustração antiga a uma cena mais tropical, mais exótica, que se passaria nessa ilha por onde passaram várias culturas. Chegado a essa ilha era aquela a forma de tocar a guitarra.»
Também não será de estranhar algum tipo de evocação quase pagã ao tema do disco. Coincidências, o próprio Steinback, escritor, tem uma obra chamada A Um Deus Desconhecido que aborda precisamente esse tema. O disco do Tó, disse-me ele, nada tem a ver com a obra, mas sobre o tema, que me interessava, disse mais: «Eu tive uma educação católica, mas eu desisti disso com uns 18 ou 20 anos. Respeito, mas basicamente acredito que se estou mal, sou um gajo que vai até à praia ver o mar, já estive nas montanhas… Respeito muito essas forças, são maiores que nós. Se existir Deus será dessa forma, mas respeito as religiões, a minha própria família é católica.»
Voltando ao disco, este é rico em ritmos diferentes, uns mais calmos, outros mais eufóricos, sendo que as guitarras utilizadas influenciaram o estilo. Em particular nos temas mais harmoniosos, quase tristes: «Tenho duas músicas que são gravadas com a guitarra clássica como se fosse o gajo ocidental que tenha chegado a esses sítios mais exóticos. Tudo isto também tem aquele lado romântico, não é? Uma ilha, uma coisa assim muito fantasiosa, imaginária, romântica. Um sítio onde ninguém pôs os pés ou puseram e só há uns vestígios… Deuses que não conhecem, há uns rituais… Por aí!»
Imagética e sonoridade andaram de mãos dadas à medida que uma inspirava a outra e vice-versa: «Neste caso trabalhei várias gravuras e às vezes estava com a guitarra a olhar para elas. Como sou um gajo muito da imagem, gosto de trabalhar nesse sentido. Sou capaz de pegar numa fotografia e fazer uma música para essa imagem. Aliás, fiz primeiro a capa, fiz várias capaz, do que o disco. Ajuda-me bastante no processo criativo. Primeiro já tinha descoberto a afinação, depois foi encaixar isso em algum sítio e este processo ajudou-me nisso.»
Apesar de o disco só ter sido lançado no mês passado, no Verão de 2014 o Tó já tocava algumas das músicas: «Eu tinha isto gravado apenas no iPhone e até tinha pensado lançar o disco gravado mesmo assim. Como o disco tem um lado primitivo pensei – se estivesse sozinho em qualquer sítio e tivesse uma guitarra, como é que registava as coisas para ficar alguma coisa daquilo que eu fiz? Só que depois fui adiando e adiando… E também gosto de deixar passar algum tempo sobre as coisas para um gajo também pensar sobre elas, questioná-las… Passado esse tempo decidi gravá-las como deve ser e ir a um estúdio. Quando foi nas misturas até entreguei ao João Santos e ao Eduardo Vinhas as gravuras e as imagens, até com um mapa, para eles imaginarem os cenários ao misturarem aquilo.»
Fotografia por Raquel Castro |
O facto de ter começado a tocar nessa altura, tendo feito, inclusive, uma apresentação na ZdB tem razão de ser: «O que eu gosto de fazer é do género, ao princípio tens aqui uma banda, antes de gravares um disco andas aí a tocar e só mais tarde é que gravas o disco. Isto porque acabas por ir tocando de várias formas. Eu se gravasse este disco hoje já gravava de maneira diferente porque há músicas que já toco de maneira diferente. Seriam os mesmo temas, mas vais descobrindo mais coisas. Ao vivo, dentro dos temas, já existem outras fases, outras variações.»
Pouco antes do disco sair, também tivemos a oportunidade de ouvir algumas das músicas através do projecto Guitarras ao Alto em que o Tó e o Filho da Mãe partilham o palco. Fizeram um remake no Maria Matos, mas o Tó explica que essa experiência foi diferente da anterior: «No Guitarras ao Alto fazíamos uma coisa diferente do Maria Matos que era eu tocava um set e o Rui Carvalho tocava outro. No fim fazíamos uma espécie de Jam. Foi óptimo, a cena da comida, dos vinhos, a cena de tocar numa adega lindíssima. Quando tivemos o convite para fazer no Maria Matos tentámos fazer uma coisa mesmo entre os dois. Ensaiámos na Casa Independente, convidámos a Cláudia para fazer as imagens e foi uma coisa mais a dois. Aprendes sempre coisas, aprendes sempre com os outros.»
Na preferência entre estar sozinho em palco ou acompanhado, em banda por exemplo, o Tó diz que o importante são as pessoas que gostam da música e que contribuem para ela: «Eu gosto das pessoas que estão na música, desde músicos a técnicos, quem for. Se me perguntares se prefiro andar na estrada sozinho ou com uma banda é claro que prefiro com uma banda porque estou com outras pessoas. Mas não vou deixar de tocar em casa e de construir as minhas coisas porque não existem os outros, ando com isso para a frente. E como acho que quando um gajo faz as coisas deve mostrá-las, porque isso ajuda-me a evoluir, aprendes sempre com essa experiência. Se trabalhas e não mostras, não tens feedback nenhum das pessoas, quando mostras tens sempre comentários que te ajudam a melhorar ou a fazer diferente. Tu que jogas basquet, imagina que os jogos são os concertos (risos). É lá que aprendes.»
Dizem que aprender nunca é demais e que o conhecimento pode ser sempre transportado para diversas áreas. Fazendo um balanço desta experiência com o Guitarra Makaka, isto confirma-se, especialmente no que toca ao enriquecimento de reportório que Tó poderá levar para os Dead Combo: «Exactamente, isto tem esse lado que é aprender esta afinação é mais uma coisa que eu sei, como pessoa e como músico, e que depois poderei usar, ou não, nos Dead Combo.»
Ainda não está anunciado qualquer concerto de lançamento, mas por entre os locais que tem passado, perguntei-lhe qual o seu cenário preferido para tocar: «Eu tinha pensado no B.Leza, mas depois disseram-me que o pessoal para chegar lá poderia ter dificuldades, porque é um local que até se adequa ao disco. O Filho Único como é a minha agência é que depois tratou disso. Também tinha pensado numa igreja, mas também já lá têm tocado uns quantos e seria quase uma repetição. Mas eles tentam arranjar locais assim diferentes.»
Num futuro próximo, projectos para além do trabalho a solo, temos os Dead Combo a pensar num novo disco: «Queremos tentar gravar por uma editora lá fora em vez de sermos nós a editar cá. Tentar que o projecto se internacionalize mais. Queremos arranjar uma coisa mais coerente, mais sólida do que apenas andar em tour lá por fora. Não sei se vamos conseguir, mas a ideia é essa. As coisas aqui às vezes correm-nos bem, mas estamos num país pequeno… Até para não nos desgastarmos aqui. Porque já apanhas pessoal que depois comenta que já viu Dead Combo cinco vezes… Estás sempre aí a aparecer e pode ser cansativo. A mim não me faz confusão fazer discos, até podia fazer dois ou três disco por ano, mas acho que isso não faz muito sentido num país como o nosso. Tivemos uma tour nos Estados Unidos que correu bem, agora se calhar é arranjar uma agência por lá até para haver um maior espaçamento. Aqui estás sempre a aparecer, parece que de dois em dois anos tens que estar a fazer um disco e isso é cansativo. Nem é que seja cansativo para os músicos, mas vais estar a percorrer novamente os mesmos sítios, com as mesmas pessoas em muito pouco tempo.»
__
É sempre um prazer falar com o Tó e aconselho vivamente a que comprem e ouçam o disco. O trabalho está fantástico, o disco é uma delícia de se ouvir e a rendição é automática.
Para os fãs de Dead Combo podem consultar uma entrevista feita há pouco mais de um ano sobre o disco A Bunch of Meninos: http://www.branmorrighan.com/2014/03/entrevista-aos-dead-combo-se-nos.html