Vinte anos é muito tempo. É tempo suficiente para se crescer e atravessar pelo menos duas a três gerações. Em tempo de vida de uma banda, é um marco difícil de igualar e que só foi possível de atingir graças à marca única que têm deixado tanto em Portugal como no estrangeiro. Eles são os Primitive Reason, começaram em 1993, e após um tempo de paragem, voltaram em força o ano passado com o lançamento do seu sexto álbum de originais – Power to the People – e continuam a perpetuar o seu estatuto como pais do experimentalismo e da fusão de géneros, sempre com um tom de rock envolvido com o Ska lusófono e muitas vezes a puxar o punk/hardcore ou até mesmo o reggae/funky. A diversidade sonora pode ser muita, mas o produto final é uma conjugação poderosa, como um palpitar de vida debaixo dos nossos pés e dentro dos nossos corações, cujas letras nos falam ao ouvido para serem novamente expelidas pela nossa garganta enquanto os ouvimos. Tendo um início de carreira brutal em Portugal, chegaram a estar nos Estados Unidos, entre 1998 e 2000, onde também aí se tornaram em autênticas referências musicais.
Foi com tremendo respeito e uma grande lisonja que estive com Guillermo de Llera e Abel Beja à conversa sobre estes últimos 20 anos de carreira extraordinária.
Guillermo de Llera é o único elemento do grupo original dos Primitive Reason. Desde 1993, vários músicos passaram pela banda, mas desde que voltaram dos Estados Unidos que Abel Beja nunca mais a deixou, sendo o duo a representação icónica, nos dias de hoje, dos Primitive Reason. Pelas palavras do Guillermo, soubemos como tudo começou, de que forma é que diferentes pessoas chegaram e partiram da formação PR e o que é que acaba por definir a identidade de PR mesmo com essas entradas e saídas:
«Começou nos anos 90, comigo com o Jorge e com o Brian, em Cascais, éramos todos estudantes de escolas internacionais, daí esta pluriculturalidade que existe na banda. O Jorge que era meu amigo de infância, convenceu-me a tocar baixo para entrar numa banda de covers. Após um mês, convenci-o que não devíamos fazer covers, mas sim coisas nossas. Então, encontrámos o Brian para ser vocalista. Juntos, encontrámos Mark Cain que foi o primeiro saxofonista e que é inglês e o Mikas Ventura que era o único português e que agora está em Dublin. Até o roubámos a uma banda de hardcore, foi uma coisa engraçada. Fizemos o primeiro disco, rapidamente ganhámos um seguimento enorme, muito por causa do estilo tão diferente que havia naquela altura. Ganhámos os Prémios Blitz para Melhor Canção do Ano, Banda Revelação, chegou a disco de prata foi um sucesso. Depois editámos o segundo disco Tips Shortcuts, ainda com a mesma formação, que também chegou a disco de prata na primeira semana e nessa mesma semana partimos para os Estados Unidos para tentar a nossa sorte. Alguns dos membros não conseguiram essa transição, por questões familiares, entre outras, e aí já entrou o Abel. Desde então passaram também outras pessoas. Fizemos o terceiro disco já com uma secção de sopros muito conceituada lá e outros artistas de renome de Ska dos Estados Unidos… A verdade é que nunca passámos mais de cinco anos com a mesma formação, mas nunca despedimos ninguém e cada um acabou por ter as suas razões para sair e não por desentendimento. Mas isto não é necessariamente mau porque a identidade musical de Primitive Reason tem uma vida própria. Desde que cada membro que entre queira cumprir com esta escola — que tem de fazer para conseguir tocar Primitive Reason, pois é obrigatório aprenderem as músicas (e as músicas cobrem géneros musicais diferentes e não é qualquer um que tem coragem para tentar isso) — normalmente as pessoas especializam-se.. Para fazer Primitive Reason, tem que ser uma pessoa que gosta de toda a música e que quer saber aprender tanto riffs de metal como reggae. É quase como um mestrado na generalidade da música (risos).»
Muitos consideram os Primitive Reason como os pais da mistura de géneros. Sendo pioneiros nessa mistura musical, quis saber como é que eles se sentiam perante o resultado desse sucesso e do seguimento que houve a esse experimentalismo: «Eu acho fantástico, essa irreverência que nos fez ir para esse som, resultou! A nossa ideia era ir contra o paradigma do sistema do que se pode ou não fazer no mundo da música em Portugal, e lá fora também. Porque o que começámos a fazer já tinha algumas repercussões lá fora.» (Guillermo)
«No início dos anos 90, o pessoal estava a ficar um bocado cansado do grunge e nos Estados Unidos, por essa altura, estava já a haver muita experimentação. Mesmo quando andámos em digressão com bandas que também já misturavam sons afros com rock, as pessoas encontravam em Primitive Reason um som único. Se dura há 20 anos é porque realmente estás a fazer alguma coisa bem.» (Abel)
Fotografia por Sofia Teixeira |
O porquê de irem para os Estados Unidos acabou por surgir da vontade de arriscarem uma nova experiência. Abel e Guillermo contaram-me que, como tinham lá casa e pessoas que conheciam, acabou por ser um risco calculado: «Nós tivemos uma ascensão meteórica com o Seven Fingered Friend, num ano passámos de banda zero a banda de festival, a abrir para David Bowie num dos primeiros Super Bock Super Rock. Musicalmente fazia parte dos tempos, e as rádios e a comunicação social estavam preparadas para aceitar Primitive. Estávamos em tempos de mudança, com a entrada dos fundos europeus, e Portugal estava ao rubro em termos de criatividade de ideias e de dinamismo dos negócios. Tínhamos tudo preparado em Portugal para continuarmos, mas íamos ter que nos manter presos àquela fórmula para fazer produto, daí o nome do primeiro álbum Alternative Prison. Então decidimos ir lá para fora continuar com esta aventura. Por causa dessa ascensão rápida e por sermos jovens, tínhamos muita coragem e pensávamos que ia tudo funcionar. Faz parte da juventude! Dissemos “Siga!” e nem pensámos duas vezes, a oportunidade surgiu e fomos. (risos)»
O balanço da experiência nos Estados Unidos foi positiva: «Foi muito fixe. Estivemos lá dois anos e meio, conseguimos reconstruir a banda, conquistámos Nova Iorque em termos do culto underground e ainda fomos convidados a fazer tournés à volta do país.» (Guillermo)
«A primeira tournée foi uma digressão pela Costa Leste, a fazer a primeira parte de concertos. Como éramos jovens e com muita garra, era quase como fazer novamente a cena de banda de garagem – pegar numa carrinha, fazer oito horas de estrada, sem dormir e com poucos confortos. Passadas duas semanas, recebemos uma chamada da editora a dizer que tínhamos uma audição, que tínhamos de ir para Los Angeles. De repente, estávamos a tocar com os Fishbone. Estamos a falar de 20 anos, eles nessa altura já os tinham e ainda continuam. Estávamos com mestres da fusão de música! Eles adoraram tocar connosco e convidaram-nos para ir um mês em tournée com eles. Depois recebemos um telefonema para estender a digressão mais um mês, desta vez com os The Misfits. Eram públicos muito diferentes e conseguimos arranjar ali multidões de fãs que ainda hoje seguem a banda. Ainda encontrámos fãs portugueses no meio desses concertos que iam ter connosco e que ficavam admirados por sermos de Portugal.» (Abel)
O regresso a Portugal aconteceu por causa daquele belo sentimento que só tem tradução em português – Saudade! Após dois anos e meio fora, quando voltaram, a intenção era só ficarem durante algum tempo: «Nos Estados Unidos já éramos uma banda de culto. Tínhamos tido a nossa ascensão brutal ao início, fomos para os Estados Unidos e foi um sucesso, quando voltámos a recepção foi tipo “wooooow”. Começámos logo a dar concertos e fomos ficando.» (Guillermo)
«No fim dessa digressão cá em Portugal, já estávamos a gravar o próximo disco e se tínhamos boas condições para gravar cá, para quê voltar? Entretanto, formámos a nossa própria editora e às tantas já tínhamos muita coisa à nossa volta e não fazia sentido voltarmos aos Estados Unidos para já. Depois de The Firescroll, o Jorge saiu. Foi uma loucura, tivemos algumas dificuldades em conseguir substituí-lo tivemos algumas dificuldades em conseguir substituí-lo — ainda por cima era um membro fundador. Atravessámos uma fase em que parecia que cada vez que estávamos prontos para ir lá para fora, alguma coisa acontecia. Agora tem piada (risos), mas na altura não tanta.» (Abel)
Fotografia por Sofia Teixeira |
Ainda assim, o regresso ao estrangeiro, mesmo que só em digressão, não está de todo posto de parte e após os festivais de Verão, que inclui o Fusing, é isso que contam fazer: «Estamos novamente numa fase em que recebemos muitos pedidos para ir lá fora. O disco já está editado pela Europa, vai agora ser editado no Brasil, e continuamos com essa fome de ir lá para fora e expandirmos a carreira internacional. Depois dos festivais, sendo o Fusing um dos pontos altos, na nossa opinião, vamos para Espanha e devemos ficar lá fora uns tempos. Entretanto vamos lançando coisas novas, pois temos já muita coisa feita. Uma outra ideia é fazermos uma tour em acústico. Nunca o fizemos.» (Abel)
Entretanto, entre o regresso e o estado actual da banda, houve uma pausa de alguns anos. Segundo Abel e Guillermo, essa pausa deveu-se principalmente à fase da vida que atravessaram: «Foi uma decisão consensual entre mim e o Abel. Estava na altura de nos dedicarmos à nossa família, criarmos os nossos filhos e reflectirmos. Nós temos vinte anos disto e queremos mais vinte.» (Guillermo)
«Depois de todo o processo, de criarmos a editora, de nos tornarmos independentes, já tínhamos cinco discos, fora os EPs. Já tínhamos feito tanta coisa que também nos sentíamos algo cansados. Foi o momento certo também para decidirmos, depois de tudo, o que é que queríamos fazer com a banda.» (Abel)
Power to the People é o disco que marca o regresso dos Primitive Reason após essa paragem e um facto curioso é que foi financiado por crowdfunding. Se muitos pensaram que poderia dever-se à falta de meios, a posição da banda é bem diferente. Guillermo e Abel contaram-nos que houve quem duvidasse do sucesso do seu regresso e este meio, já muito utilizado no estrangeiro para financiar bandas, acabou por servir para mostrar que ainda havia todo o interesse em que a banda voltasse e também para servir de exemplo para outras que possam não ter os meios necessários: «Mais uma vez quisemos quebrar barreiras. Nós sabíamos que ia funcionar, afinal somos cidadãos do mundo e somos conhecidos lá fora. Isto lá fora já é muito feito e nós quisemos fazê-lo cá em Portugal como exemplo de que é possível fazer isto através desse meio. Se tens fãs, se calhar eles querem contribuir directamente em vez de através de vários intervenientes. O contacto é muito mais directo, precisas de menos pessoas, e desde que o fizemos, muitas mais seguiram o exemplo. Foi tudo 100% orgânico, tudo fãs internacionais e portugueses. O sistema é de confiança, se não se chegar à meta, o dinheiro é devolvido. É um investimento completamente seguro.» (Guillermo)
«Nós somos casmurros. Cada vez que temos uma barreira à frente, não deixamos que nos pare. À nossa volta duvidaram de que seria possível fazer isto desta maneira, e às vezes até batemos com a cabeça na porta, mas grande parte das vezes funciona e esta funcionou. Havemos de arranjar sempre maneira de fazer aquilo que gostamos de fazer, que é música à nossa maneira.» (Abel)
Este novo disco leva-nos um pouco às origens e, tendo sido sempre o Guillermo a compôr ao longo dos anos, a marca de Primitive manteve-se e Power to the People traz um reforço ao sentimento de que quando alguma coisa não está bem, há que combatê-la. «É um bocado esse o sentido de Power to the People. Estamos numa situação em que uma bolha económica nos rebentou na cara e temos de reagir.»
Dada a experiência da banda no estrangeiro, perguntei-lhes qual a maior diferença de mentalidades, no meio musical, entre Portugal e os outros países. «É preciso ires lá fora e voltares, para cá seres o maior. É essa a realidade do nosso país no que toca à música e às outras artes. Outra coisa diferente é que enquanto lá fora, encontras outro músico e encontras um irmão, em Portugal encontras um rival.» (Guillermo)
«A nível de público, é igual, quase todos os que cá vêm dizem que um dos melhores concerto que deram foi em Portugal. Os portugueses gostam de música. Muitas vezes é o pessoal que está dentro da indústria que ou quer apostar em algo mais seguro ou então não têm a visão de investir. Preferem o retorno fácil. Mas as pessoas querem e temos cada vez mais festivais. Se calhar sacam os mp3, mas depois vão as festivais e apoiam os artistas na mesma.» (Abel)
«Ao nível do negócio da música cá em Portugal, se calhar estamos 10 anos atrás de alguns países estrangeiros, isto não por culpa do país em si, mas porque é um país pequeno. Quem está está, e quando alguma coisa funciona resiste-se à mudança. Isso não permite inovação.» (Guillermo)
«Por vezes as pessoas conseguem oportunidades pelas pessoas que conhecem e não pela qualidade, lá fora isto não acontece tanto.» (Abel)
Após vários pedidos de fãs que atravessaram tempos desde o MySpace até ao Facebook, eles lá voltaram e uma das coisas mais fantásticas deste regresso é o cruzar de gerações. Em relação a isto, recentemente tiveram uma experiência muito engraçada que partilharam connosco: «Demos um concerto numa feira em que o ambiente era mais familia e quem estava no mosh pit eram as crianças. Existe uma forma primal de reagir à nossa música. Foram até os miúdos a chamarem os pais! Levámos as crianças para o palco e já temos aqui uma nova geração de fãs. (risos)» (Guillermo)
Em relação ao Fusing e à sua componente tão nacional, Guillermo e Abel partilharam connosco que achavam que deviam haver mais festivais assim. «Devia-se apostar mais na música portuguesa. Estamos a atravessar uma boa fase e vale mais apostarem numa banda portuguesa de qualidade, do que pagarem a um nome estrangeiro que cá ninguém conhece. É de investir em novas bandas portuguesas. Não dizemos que se feche o mercado ao que é estrangeiro, há coisas boas para se conhecerem, mas cá temos muita qualidade.»
Para terminar, pedi-lhes uma mensagem para os (novos) fãs de Primitive Reason: «Continuem Primitive, esperem mais e melhor de nós.» (Guillermo) «Se houvesse dúvidas, agora já não há, nós estamos de volta e para o bem e para o mal – we are gonna be here for a while! (risos)» (Abel)
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Muito obrigada ao Guillermo e ao Abel! Falámos de muito mais, mas penso que o essencial está aqui. São uma banda que nos seus vinte anos de carreira têm muito para partilhar e ensinar. Que tudo lhes corra pelo melhor, é isso que lhes desejo do fundo do coração. Ainda me lembro do primeiro concerto que vi deles, mas melhor ainda do segundo, no Super Bock Super Rock de 2006. Hipócrita foi um tema que me marcou logo na altura, mas que ainda hoje é uma delícia de vê-los tocar. Dia 14 de Agosto reencontramo-nos no Fusing!