As deidades celtas estão longe, muito longe daquele maniqueísmo cosmogônico construído no discurso do Bem e do Mal, pois não existem Deuses e Deusas “puristas”, que personifiquem apenas um “lado” desse tratado dialético de unilateralidades com que parte das tradições religiosas e filosóficas cataloga o mundo e sela o destino de seus habitantes, enviando para os confins do mundo (limite de Hades, Inferno etc.) aqueles que ousam contrariar a ordem.
Nesse sentido, a mitologia celta mostra-se caótica, libertária e contestadora, porque não se propõe a reproduzir uma percepção de moral higienizante e angelical, típica da predileção dual com que boa parte das tradições religiosas se fundamenta.
As deusas celtas, em particular, são o retrato fiel da complexidade humana tangida pela imortalidade, materializando a consistência existencial que nos coloca, no aqui e no agora, a questionar nossas condutas e atitudes, em cima de uma “reta razão” que somente poderia acenar para um, dentre os dois caminhos a seguir: céu e inferno, bem e mal, na despótica dualidade política do ideário teológico ocidental que empunha armas para a destruição do outro.
Passamos boa parte do tempo na preocupação em conduzir nossas vidas de acordo com princípios éticos absolutos, que levam à medonha escolha entre dois caminhos, como se fosse muito simples, fácil e cômodo o despojamento de todo rol de informações imemoriais que trazemos de outras existências, onde o bem e o mal nem sempre são visíveis.
Sempre existe uma metáfora para a estrada bifurcada nas escolhas que selam nosso futuro para cima ou para baixo de algum lugar que-não-sabemos-qual-dentro-do-critério-dual (de propósito todo esse grande hífen).
Quando me deparei com Morrighan, a incompreendida Deusa do Viver e do Morrer, desisti de negar em mim a densidade e a complexidade presentes na alma e gravadas com sangue, suor e lágrimas: paguei, muitas e muitas vezes, um preço existencial muito grande em negar em mim a ira, a raiva, bem como o desejo e o amor, por achar que os sentimentos podem ser segregados em compartimentos estanques de nossas almas e que, assim, não se comunicam. Engano, porque a racionalidade catalogadora não consegue lidar com o vendaval emocional que, ao invés de segregar, unifica, as polarizações.
Morrighan é a contramão da dualidade puritana, porque encerra em sua fecunda personalidade a complexidade e a riqueza de uma entidade que se compõe de unidade, profundidade e latência.
Acredito, inclusive, que a polarização em torno da expressão Morte-Vida também seja, ao final, um simples trocadilho semântico que induz ao erro de crermos na existência de situações definidas de mundos (mundo dos vivos, dos mortos) quando, no simbolismo celta, o material e o espiritual constituem a mesma essência, tendo por elo a Natureza e seus mistérios.
Morrighan ama, odeia, fere, cura e mata, colocando, assim, em xeque-mate a compreensão de um mundo dual, em que as “qualidades más” são colocadas embaixo do tapete, enquanto a “suprema bondade” é revelada e enaltecida.
James Mackillop traduz o nome Morrighan (ou Mórrígna) por “great queens”, ou seja, grandes rainhas, no plural, para lembrar da dimensão tríplice da deusa contida na referência trina de Macha, Badb e Morrighan, divindades que irradiam, ao mesmo tempo, fertilidade, soberania e beligerância.
Ao mesmo tempo em que é a amante ardorosa de Dagda e a ptonisa que aparece para Lugh, uma Morrighan contrariada aparece em cena diante da rejeição de Cúchulainn. Mais uma vez, três aspectos distintos aparecendo diante de três heróis celtas, por meio dos encontros mágicos com cada uma das três faces da Grande Rainha.
Aliás, a trindade não é novidade na mitologia celta, porque o três invoca o triquete ou triskle, no simbolismo da perpetuação da roda da vida e da morte (dentro da qual não existe distinção). Isso indica, mais uma vez, como a perspectiva separatista de mundo mantém a ilusão de dualidade, criando a sensação de antagonismos e, a partir daí, alimentando a perspectiva de distinção entre razão e emoção, corpo e mente, homem e mulher, natureza e homem. Ou seja, novamente, nossa interpretação condicionada limitando nossa percepção de mundo, que é uno, holos.
Numa das famosas batalhas contra os Fomoire (especificamente na segunda batalha de Moytura), Morrighan aparece para Lugh, profetizando a vitória mediante a conclamação poética para que o herói tome seu lugar de direito e guie os Tuatha para a guerra.
Como oráculo, Morrighan estabelece, naquele momento, a soberania do conhecimento além-mundo e, revestida de poder, concita o Deus-Sol a chamar para si a tarefa de guiar o povo. Deusa e Deus, ali, compondo a harmonização e a unidade, para lembrar da complementaridade entre gêneros, e não da competitividade.
Em outro episódio, a Grande Rainha une-se sexualmente com Dagda na véspera de Samhain no rio Unshin, em meio aos corpos ensangüentados daqueles que, no dia seguinte, iriam ser mortos em combate. Interessante refletir sobre a percepção oracular e meta-temporal do evento, por conta do encontro se dar num momento “fora-de-tempo”, já que, de fato, a guerra iria ser travada no dia seguinte. Amorosa, a Rainha forneceu ao Deus importantes informações sobre o combate, além de informá-lo que também iria tomar parte na luta.
A história que acho mais intrigante, porém, relaciona Morrighan a Cúchulainn, o herói que despreza a deusa e, assim, atrai sua ira eterna, ao ponto de aguardá-lo ao final da jornada mítica. Reza a lenda que a Rainha enamorou-se do herói, prometendo-lhe o mundo se ele com ela se casasse.
Cúchulainn, porém, no auge de sua determinação guerreira, recusa a oferta, dizendo que “not have time for a woman’s backside” (não tenho tempo para uma traseira de mulher), menosprezando os favores da rainha e, com isso, produzindo sua ira.
Depois disso, Morrighan ainda apareceu, em luta, para o guerreiro, sob a forma de um lobo, uma enguia, de uma novilha vermelha descornada e, por último, de um corvo, que iria aguardar o fim da agonia de um moribundo Cúchulainn. Mais uma vez, a trindade, pois a deusa encarnou três animais de poder para, por último, incorporar o corvo, guardião eterno dos segredos do Além-vida. Detalhe: ela a negou, por três vezes, porque, a cada momento de sua aparição para o jovem, a deusa fora por ele ferida. Mesmo assim, continuou esperando por ele até o final…
O coração possui razões das quais a própria razão desconfia? Não, sei, ao certo, porque, lendo a história da deusa, passo, cada vez mais, a desconfiar que a razão tenha razão, pois acredito que o coração, ao final, detém todos os segredos do mundo. Apenas sei – porque sinto, não porque saiba – que a transcendência da polarização é a chave para a compreensão da mitologia celta, de suas deidades e, para nós, humanos e humanas, mortais, de nossa própria história e jornada.
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Por Audrey Donelle Errin
Pesquisadora do Sagrado Feminino, dentro do foco celtíbero.
Retirado de: http://www.templodeavalon.com/modules/articles/article.php?id=60