Pecados Santos
Os meus dedos segredavam sem parar às teclas do computador, enquanto sucessões de frases e parágrafos enchiam o ecrã que se encontrava perante mim. Estava lançado. Todo o tempo do qual dispunha era destinado a escrever. Retirara-me das redes sociais por tempo indeterminado, lutava por debelar alguns problemas de saúde inesperados e dormia cerca de seis horas por noite. A minha vida era uma obsessão com a data limite. Redigia, revia, apagava e reconstruía capítulo após capítulo, em busca somente daqueles que conseguissem satisfazer-me. Porém, o esforço estava a compensar. O livro que iniciara oito meses antes com uma curta viagem a Londres e o princípio de uma pneumonia, ganhara corpo, crescera. Já não era o meu menino. Em breve tornar-se-ia definitivamente independente e nada mais me restaria do que ter de o abandonar.
Dei por mim expectante, fixo no monitor. Um dos momentos mais importantes do livro, o qual planeara com afinco, chegara, enfim. Não haveria muito mais a fazer depois de escrever aquelas linhas. Vários, depois de o lerem, tanto poderiam dizer que o livro era bom ou mau, mas ninguém iria ficar indiferente àquela passagem.
Faltava-me apenas cerca de um quarto da história para a terminar e já matara várias personagens, algumas delas com pormenores próprios de rituais satânicos. Mas o que estava prestes da brotar a ponta dos meus dedos era especial. Iria marcar o livro.
As palavras surgiram no ecrã quase como se fossem dotadas de vontade própria. Eu, que normalmente reescrevo a maior parte dos parágrafos mais do que uma vez, redigi estes de um só fôlego, sem sequer hesitar. As dúvidas surgiram depois. Tinha-me expressado como bem entendera; o ato fora consumado. Li o que tinha escrito e ainda pensei em apagar.
Não me sentia inseguro em relação ao enredo. Eu sabia que aquele era o caminho. O meu problema era outro — temia o que as pessoas pudessem vir a pensar.
Inseri uma quebra de página no documento e comecei a trabalhar no próximo capítulo. Não se escrevem um, dois, ou três episódios de grande violência sexual no mesmo livro sem esperar chocar quem o venha a ler. E eu pura e simplesmente teria de aprender a lidar com isso, com os riscos que estava a correr, ou com a sucessão de críticas que daí poderiam advir.
Tudo naquele livro era ousado, perturbador. Desde a contradição latente no título, à natureza sensível do conteúdo. Sim, continuava a chamar-se Pecados Santos. Mas não, eu não escrevi «cenas quentes». Todavia, de certeza que perdera o meu lugar reservado no Céu. A ligação à morte de Arafat, a vida escondida das personagens principais e a crueza das descrições ia valer-me algo bem diferente. Eu vou arder no Inferno.
Acabei o livro e reli-o todo duas vezes um dia antes do que prometera ao meu agente. Foi marcada uma data, janeiro ou março, sendo que se tentaria cumprir com a primeira. Muito havia para fazer até lá. O projeto que começara depois de publicar A Célula Adormecida ficara pendente quando percebi que o meu futuro era algo incerto. E foi assim que se marcou a primeira reunião.
Sentado a uma mesa de aspeto contemporâneo, rodeado pelo João, a diretora de marketing da Cultura Editora, uma engenheira de software e dois assessores de imprensa, começámos a planear para a frente. O meu site oficial tinha de ser renovado; eu necessitava de tirar algumas fotografias; o livro iria seguir para edição e revisão; e não, não foi preciso reescrevê-lo.
Dei a minha opinião face a algumas questões que surgiram. Eu apenas queria uma coisa — que o livro fosse bom.
E que todos o lessem.