Uma Rapariga É Uma Coisa Inacabada
Eimear McBride
Editora: Elsinore
De tempos a tempos apanho livros sim, livros que contém em si muito mais do que meras páginas com letras que em sequência formam frases de uma história linear. Uma Rapariga É Uma Coisa Inacabada é, provavelmente, uma das obras mais perturbadoras e brutais que já li. Demorei algum tempo a arrancar com a leitura, esta requer alguma atenção e concentração iniciais para que possamos perceber a (não) estrutura da narrativa e que papel directo outros intervenientes têm na forma como a protagonista expõe as suas vivências. Apanhado o ritmo, e ritmo é coisa que não falta nestas palavras que tanto se atropelam como se parecem estender para lá do infinito, houve alturas em que li dezenas de páginas seguidas, outras que li meia dúzia e parei.
Não acho que seja um livro para o estômago de toda a gente, apesar de o achar acessível a qualquer pessoa. Estamos perante um romance que impressiona, que mostra uma realidade algo fragmentada, mas que toca, que acorda demónios, que incita a que se abram os olhos, a que se limpem os ouvidos, a que se desperte para uma realidade que gostamos de pensar existir só em livros e em filmes, mas que na verdade poderá estar ao virar da esquina. Quero muito ler a versão original deste livro. Não que esteja a criticar a tradução, mas dado o estilo da escrita de Eimear McBride, tenho imensa curiosidade em estar em contacto directo com a língua nativa, quanto mais não sejas pelos preciosismos.
Entremos neste enredo que tanto comove como nos revolve as entranhas. As primeiras páginas, exigência de concentração ultrapassada, mostra-nos uma narradora ainda em criança, com um irmão pouco mais velho às portas da morte. Este sobrevive, mas quando regressa casa é o pai que abandona a família. A mãe é uma mulher católica que usa e abusa da religião como desculpa para agredir tanto fisicamente como psicologicamente os filhos.
Entre um sentido protector em relação ao irmão mais velho e alguma perda de identidade, assistimos ao crescimento da criança em jovem, mais tarde quase adulta, através de uma fragmentação mental que procura na dor um alívio e uma limpeza que só a condenam cada vez mais. Desde a relação precoce e abusiva com o tio, à procura de outras experiências que a libertassem, o percurso da protagonista é feito através de caminhos sinuosos em que assistimos a modos de pensar e de agir que desafiam a lógica e qualquer sentido. São abusos atrás de abusos, alguns provocados por outros, a maioria procurada por ela. O conforto encontrado na violência.
Ao mesmo tempo existe toda a ligação com o irmão, que acaba por crescer sempre com uma espécie de atraso em relação aos da mesma idade, ou assim nos vai parecendo pela narrativa, e que a certa altura sofre uma disrupção. Mais tarde, com novos acontecimento, que não vou referir aqui para não desvendar mais do que desvendei da leitura, existe toda uma tentativa de redenção, do voltar às origens. É uma fase muito sofrida, angustiante, desafiadora.
O que diz na sinopse é totalmente verdade: este livro é uma autêntica descoberta. Uma Rapariga É Uma Coisa Inacabada é daquelas obras em que perdemos consciência real do acto de ler por nos transportarmos para os escombros mentais e para o físico imaginário da protagonista. Sentimos a sua dor, a sua loucura, o seu medo, o seu fascínio, a sua incapacidade de parar, a sua perdição. O fim, para mim, era o único possível. Acho que vivi tanto a personagem que a uma ou duas dezenas de páginas antes de terminar só pensava que aquela era a única via possível. Não tenho qualquer problema em recomendar este livro, fica apenas o aviso que é bom que se preparem, tem tanto de fascinante como de aterrorizador.