Alcanhões, 25 de Abril de 2012
Exmo. Sr.
Presidente do Conselho de Ministros
António de Oliveira Salazar,
É com um sentimento de profunda estranheza que te escrevo. Tamanho desassossego poderia dever-se ao acto de escrever ter caído em desuso, ou ao (meu) atrevimento em escrever a figura tão… ditatorial. Mas não. Outras razões motivam esta estranheza que se instalou em mim por te escrever. Antes de mais, porque não gosto de ti; eu e os ditadores não nos damos bem. Segundo, porque morreste, é incomum escrever aos mortos. Depois, porque pareces ainda viver como fantasma desejado, qual D. Sebastião por ti travestido. Por último, porque é hoje o dia em que recordo aqueloutro dia em que caiu a cadeira em que te sentavas; não a da tua casa, mas a do poder que sob a tua sombra resistia. Pois eu não esqueço quem és, Salazar. Nem gosto que se esqueçam!
Escrevo-te esta carta para que possas recordar o dia em que pereceu a tua maldita obra, não vás tu querer voltar sob a pele de brando cordeiro e com a promessa da salvação nacional (e que todos acreditem em ti). Pois os que prometem a salvação desta pátria lusitana através da sua mão-de-ferro, são tiranos em busca da alienação do povo. D. Sebastião não habita no íntimo de nenhum humano único e especial, mas na consciência de todos os portugueses. D. Sebastião só regressará quando todos os filhos de Portugal aceitarem que o resgate d’O Desejado só é possível através do colectivo nacional, não pelas mãos de um ou dois homens. Tu não entendias isso, Salazar. E há ainda quem resista, não entendendo também.
Dói-me que sejas recordado como um mero Presidente do Conselho e ouvir que no tempo do Salazar é que era. Dói-me que tentem aligeirar o som do teu nome, tornando-te marca comercializável e consumível. Dói-me que te evoquem como um modelo cujo propósito foi engrandecer Portugal. Dói-me que te façam ser o que nunca foste. Pois não esqueço que conduziste Portugal para uma guerra insana e repugnante. Não esqueço a fome e a privação por que passaram os portugueses sob a tua tirania. Não esqueço a tua afinidade (por vezes secreta) com os regimes de Hitler, Mussolini ou Franco. Não esqueço a sombra da polícia política, o horror da tortura, a incerteza das prisões arbitrárias e a castração de todo um país através do seu silenciamento. Não esqueço o orgulhosamente sós que pregavas convictamente. E pergunto-te, ó orgulhoso Salazar: que orgulho há na atrofia de um povo? Que orgulho há em ser-se um odiado?
Poderias dizer-me, Salazar, se fosses vivo, que não sei do que falo. Terias razão, não sei do que falo. Mas se não sei do que falo, devo-o aos que, em Abril, ousaram resistir ao teu condenado regime. Se não sei do que falo, devo-o aos pais e avós que ousaram depor a Velha Senhora Ditadura, sentando no seu lugar a Nova Senhora Democracia. Se não sei do que falo, devo-o aos que restauraram a liberdade portuguesa por ti suprida. Posso não saber do que falo, mas sei o que é crescer com o pensamento livre. E se hoje te escrevo, se hoje posso ter a ousadia de escrever a um ditador morto, devo-o aos que ainda acreditam que o caminho deste Portugal cabisbaixo passa por manter vivos os ideais do Abril que te venceu.
Despeço-me de ti com um adeus para sempre e com o desejo de que, estejas onde estiveres, possas sentir a profunda liberdade que se manifesta quando se fazem livres os oprimidos.
Cordialmente,
Samuel Pimenta.
https://branmorrighan.com/2012/04/carta-salazar.html