A Laranja Mecânica
Anthony Burgess
Editora: Alfaguara
Opinião por joanapontoneto
Penso que esta é – na verdade não penso, sei-o tão bem quanto sei ser violenta a escrita deste livro – uma violenta estreia neste meu percurso na crítica literária.
É costume dizer-se que os filmes ficam muito aquém dos livros que lhes deram origem. É costume dizer-se, também, que não há regra sem excepção. Diria, no entanto, que, neste caso, caminham ambos de mãos dadas, com o filme a dar as maiores passadas – Kubrick exponenciou graficamente as palavras originais de Anthony Burgess, atribuindo ao filme um efeito visualmente visceral. E não sirva isto para dar lugar a interpretações erradas, atenção, já que ambos são absurdamente geniais. Visceral e violentamente geniais.
Acompanhada por um glossário de Nadsate – linguagem inventada por Burgess, na qual todo o livro está assente -, a leitura deste livro foi-se tornando, ao longo das primeiras páginas, um desafio possível. Não nego quão grande foi o choque pois, apesar de ser de fácil intuição o sentido da frase, a ausência de conhecimento sobre o vocabulário empregue tornaram os primeiros parágrafos uma verdadeira batalha. Uma curiosa batalha, não obstante.
“Tais mestos não possuíam licença para venda de álcool, mas ainda não havia lei contra prodar algumas das novas veches que eram acrescentadas ao moloco, pelo que era possível piteá-lo com velocete ou sintesmeque ou drencrome ou mais uma ou outra veche que nos proporcionavam uns belos, tranquilos e horrorochosos quinze minutos de admiração a Feus E Todos Os Seus Anjos e Santos Sagrados no sapato esquerdo com luzes a explodir-nos pelo mosgue fora.”
(Não fossem já complicadas as primeiras páginas de um livro, tentando nós, leitores, enquadrar-nos e conhecer aquela que é a estória das palavras escritas à nossa frente, ainda há toda uma linguagem – calão, ainda por cima! – a aprender. É um desafio, é certo, mas também uma aliciante descoberta.)
Ultrapassada a barreira linguística, que é feita entrando-se no universo Nadsate com algum poder dedutivo, somos automaticamente absorvidos por Alex, que é tão fascinante quanto violento – poderão facilmente questionar o emprego da palavra “fascinante” face a tamanhos traços de personalidade criados, mas há uma certa sedução relativamente ao que não compreendemos.
Alex é um deliquente, mas não é um inocente deliquente – leia-se aqui inocente deliquente como a categoria onde se inserem os praticantes de pequenos furtos que não infligem dor (física, pelo menos) ao demais. Não, Alex é um violador e é violento pelo simples e primal prazer que extrai da violência, pelo gosto que tem em ver o sangue escorrer.
Alex é um deliquente e é um amante conhecedor de música clássica. É, também, um ávido praticante do calão e um deliquente capaz de abordar uma vítima empregando uma linguagem tão erudita que deixaria em muitos linguístas uma enorme satisfação – ainda que, de seguida, deixe à beira da morte o abordado. E como é que alguém que se mostre tão culto é praticante de tamanhos actos? Eis o que não compreendo, mas também o que me fascina.
Não apenas a personagem, também fascinante é a própria história. Não querendo descortinar o que esta laranja mecânica nos traz nas suas páginas, gostaria apenas frisar a construção genial de um processo de re-educação comportamental, e sua consequente instrumentalização política, que levanta tantas questões éticas e morais quanto me amargurou o desenlace do livro – ambos de um elevado grau de intensidade.
(Uma má página poderia deitar por terra um livro bem conseguido, mas não é o caso presente. Apenas senti que Alex era merecedor de um final mais… Grotesco.)
Se a violência das acções contida nas palavras assusta e, de certo modo, repugna, voraz é o desejo de conhecer o mundo criado por Burgess que nos desperta tais sensações.
Não é um percurso fácil, a leitura deste livro, mas é um caminho que merece – e arriscava dizer, deve – ser percorrido.
joanapontoneto
Algumas citações
” O aspecto do Lerdo não me estava a agradar; apresentava-se sujo e desmanzelado, como um veco que tivesse andado à bulha, coisa que obviamente tinha acontecido, mas nunca devemos ter ar de quem andou à bulha.”
“Pois eu conhecia aquilo que ela tinha contado. Era uma ópera de Friedrich Gitterfenster chamada Das Bettzeug, e aquela era a parte em que ela está a esticá-lo com a garganta cortada, e os eslovos que ela diz são “talvez seja melhor assim”. Enfim, arrepiei-me.
Já o Lerdo, assim que soluchar aquele excerto de música como uma loutica de carne a escaldar escarrapachada no prato, soltou uma das suas vulgaridades, que no caso foi uma trombeta labial seguida de um uivo canino seguido de um dedo a furar duas vezes o ar seguido de uma gargalhada de palhaço. Sentindo-me febril e tipo a afogar-me em sangue ao rubro, a soluchar e a videar a vulgaridade do Lerdo, disse:
– Cabrão. Meu cabrão nojento, tanto e sem maneiras.”
“Não há nada a fazer – disse o Dr- Branom. – Todos matamos aquilo que amamos, como disse o poeta-prisioneio.”
“E aquilo, irmãos, a que tive então de escapar sono dentro foi da horrível e equivocada sensação de que era melhor apanhar do que dar. Se aquele veco tivesse ficado, talvez eu tivesse tipo chegado a oferecer-lhe a outra face.”
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