Lembram-se de vos ter apresentado o novo disco de Filho da Mãe? (http://www.branmorrighan.com/2013/11/musica-novo-disco-de-filho-da-mae.html) Lembram-se também da sua entrevista? (http://www.branmorrighan.com/2013/11/entrevista-filho-da-mae-musico-portugues.html)
Pois bem, também o nosso tão querido escritor Afonso Cruz se rendeu a Cabeça e escreveu umas palavras sobre o mesmo. Ora vejam:
“Lembro-me de, em miúdo, olhar para o meu tio-avô a tocar guitarra. As unhas encurvadas e amarelas dos cigarros, o cabelo branco e liso, colado à cabeça. Não havia muitas perguntas, o mundo era simples. Na verdade, aquilo que eu via não era um homem encanecido, dobrado sobre si mesmo, a dedilhar, era, isso sim, algo mais evidente, como haveria de perceber mais tarde: a guitarra e o guitarrista eram a mesma música. Mas o nosso crescimento passa pelo arrefecimento do mundo, pela necessidade de o dissecar, de o enfiar no microscópio e em equações de terceiro grau. O mundo começa a ganhar linhas rectas, torna-se geométrico, onde até as lágrimas são uma espécie de matemática. Pitágoras dizia, e os seus seguidores, como aquele de Crotona, repetiam, que a música e a matemática são exactamente a mesma coisa.
Uma oitava corresponde precisamente a 1/2 da corda da viola; a terceira nota natural é 1/3 da corda; e a quinta natural é 3/4. E isto é apenas um pequeno exemplo de como as músicas que ouvimos são feitas de matemática, tal como as pedras são feitas de música e os nossos sentimentos são rigorosamente geométricos. É assim que se compreende a música utilizando a razão. Mas, lamentavelmente, não se ouve nada, não se sente nada. Para isso é preciso fazê-lo com o corpo, que, sendo uma espécie de tabuada, não deixa de ser feito de terra e de entender essa linguagem que se escreve com uma pá. Por vezes é preciso um filho da mãe capaz de nos colocar outra vez naquele lugar da infância, naquele espaço antigo, onde a guitarra e o guitarrista eram a mesma música. Melancólico, o filho da mãe, consegue conjugar memórias, partindo de uma base que se repete e que se vai tornando cada vez mais complexa, como os pássaros fazem quando cantam. Os ritmos cruzam-se, para cima e para baixo, como barcos a vencer tempestades, fazendo com que tudo se confunda, os ossos com a pele, o interior com o exterior, a sede com o vinho. Não é só tocar, é escavar os sons e trazê-los para fora da guitarra. E a música, com o seu poder catártico, faz-nos acordar. Não há arte nenhuma capaz de nos fazer mover, mexer e dançar como faz a música. Para
que, no dia do Juízo, os mortos se levantem, serão necessárias trombetas. Ou, sendo menos ortodoxo, guitarras. Um quadro do Rembrandt não atinge os ossos, chega a muitos lugares, mas não faz dançar, não faz bater o pé. Se há alguma coisa capaz de nos fazer levantar, dançar, exultar, de um momento para o outro, é a música. Abre caminho pelas nossas veias,pelos músculos, é feita de carne e fala essa linguagem. Todo o universo se move por causa da música das esferas, por causa dos acordes que Deus tocou no Início, dobrado sobre si mesmo, a dedilhar uma guitarra. Tudo se move por causa de um filho da mãe.
Afonso Cruz