O bom de se ter um blogue que aborda vários temas, é mesmo este, de vez em quando recebemos correspondência electrónica por parte dos artistas para nos dar a conhecer o seu trabalho, que de outra maneira não seria tão fácil termos conhecimento do mesmo. João Martins é um músico português que vive neste momento nos Estados Unidos. Gravou, recentemente, o álbum The Sky Over Brooklyn e teve a amabilidade de me enviar um disco directamente de Nova Iorque, o qual ouvi com um sorriso no rosto e um sentimento de orgulho. Decidi entrevistá-lo, desta vez teve de ser por mail, e aqui fica o resultado. Obrigada, João, pela tua simpatia e disponibilidade. Desejo-te tudo de bom e certamente continuarei a acompanhar o teu percurso.
Olá João, fala-nos um pouco sobre ti, os teus gostos e sobre como é que foi o teu percurso até chegares a Nova Iorque e gravares o teu cd “The Sky Over Brooklyn”.
Comecei por estudar com o Filipe Melo, na escola do Hot Club, durante um ano. Depois, fui morar em Amesterdão, porque tinha ouvido dizer que lá havia uma cena musical muito forte – o que era mentira. Mas comecei a tocar com pessoas brasileiras, incluindo o Alaor Soares, que foi o meu mentor na Holanda e com quem aprendi muito sobre música brasileira. Depois, fui morar para o Brasil, em São Salvador da Bahia, onde estudei vários ritmos tradicionais e folclóricos (samba de roda, cabula, congo, pagode baiano, ritmos de capoeira, maracatu, ijexá, samba, samba duro, etc.). Em Salvador, as pessoas com quem aprendi mais foram o Kinho Santos, da Oficina de Investigação Musical, e o Mestre João do Morro, da Capoeira Kilombolas. Depois, fiquei a saber que tinha sido aceite na Berklee College of Music (Boston, EUA) e fui para lá. Estudei na Berklee de janeiro de 2010 a dezembro de 2012 e formei-me em Professional Music and Film Scoring, ou seja, performance de piano e escrever música para cinema/media visuais. Na Berklee, os professores de piano com quem trabalhei mais foram o Doug Johnson, o Ray Santisi e a Suzanna Sifter. Também estudei com a Joanne Brackeen e a Jennifer Elowsky-Fox. Na parte da composição, o Tibor Pusztai e o Yakov Gubanov foram as pessoas essenciais e na parte de improvisação o Dave Santoro. Depois, vim morar para Nova Iorque, onde toco com o meu quarteto e com várias outras pessoas, onde ensino, e onde acompanho aulas no Alvin Ailey American Dance Theater.
As músicas que o compõem têm várias influências, desde percussão brasileira a jazz americano. Porquê estas escolhas?
Esses são os géneros em que mais tenho estado envolvido, os estilos com que mais me identifico. E a combinação de estilos tradicionais/folclóricos brasileiros com improvisação influenciada pelo jazz americano é algo que ainda se está a desenvolver e é interessante fazer parte desse processo.
Existe uma história para cada música? Um fio condutor que as una formando então este céu sobre Brooklyn? Em que sentido é que esta cidade tem um papel no teu álbum?
Existem conceitos específicos para cada música, não necessariamente histórias. Mas foram todas compostas ou definidas nas suas formas finais enquanto eu estava em Brooklyn.
Brooklyn tem um papel essencial no sentido em que me permite ter acesso a músicos de grande nível com quem toco no quarteto mas também nos outros projectos em que estou envolvido. E por estar em constante mudança, Brooklyn combina música e culturas do mundo inteiro e isso acaba por informar o que eu toco e componho.
A faixa “Baião” é inspirada na música do Nordeste brasileiro em combinação com conceitos contemporâneos: é em compasso de 13/16, a melodia é baseada em exercícios técnicos para contrabaixo e a harmonia é relativamente complexa.
“Iemanjá” é inspirada em melodias de cantos de caboclo, do candomblé de São Salvador da Bahia, no Brasil. As melodias habitualmente são acompanhadas só por percussão, por isso eu compus uma harmonia baseada no jazz contemporâneo.
A faixa “The Sky Over Brooklyn” surgiu quase automaticamente. Não existe um conceito específico, foi só o que eu achei que fazia sentido musicalmente na altura.
“Brigas, Nunca Mais” é um tema do compositor brasileiro Tom Jobim. É um tema que o meu quarteto toca regularmente, por isso decidimos inclui-lo no álbum.
“Maracatu Thingy” combina padrões rítmicos do Maracatu Estrela Brilhante de Recife com ideias melódicas da música de Nova Orleães.
“Iemanjá” (versão ao vivo) é inspirada no famoso quarteto do Coltrane, com o McCoy Tyner, o Jimmy Garrison e o Elvin Jones. É uma tentativa de criar algo espiritual a partir de uma melodia.
Já ouvi o álbum e gostei muito da frescura, o conseguir transportar-nos mentalmente para outros cenários e quem sabe até décadas passadas, sempre num ritmo dançante. Como tem sido a recepção ao disco? Tanto em Nova Iorque como fora?
Por enquanto, muito boa. Desde as pessoas que compraram o álbum ao público nos espectáculos, as reacções têm sido entusiásticas.
Se estivesses em Portugal, achas que terias conseguido produzir o mesmo?
Teria sido muito mais difícil. Este estilo de música ainda não existe propriamente em Portugal.
É fácil ser-se um músico português nos Estados Unidos? Como têm corrido as actuações?
Ser-se músico nos Estados Unidos não depende propriamente da nacionalidade, pelo menos na minha experiência. Um bom exemplo disso é o grupo de pessoas envolvidas neste projecto, que inclui tantas nacionalidades diferentes. As actuações têm corrido bem, os músicos da banda são muito sérios e dedicados e o público tem sido sempre extremamente receptivo.
Já pensaste em vir actuar a Portugal?
É uma hipótese para o futuro mas por enquanto ainda não tenho nada de concreto em termos de actuações.
Consegues ser músico a tempo inteiro?
Sim. Claro que a definição de músico a tempo inteiro nos Estados Unidos é muito diversa. Para além de tocar, ensino música, componho e arranjo para outros artistas e para filmes.
Imagina que um escritor pegava no teu cd e se sentava a escrever uma obra baseada no mesmo. Que tipo de história/colectânea achas que daria?
Espero que algo com substância, esse é o objectivo do álbum. Tenho a sensação de que seria algo de urbano, com a intensidade e a seriedade das cidades modernas.
Costumas ler? Alguma obra preferida que até te possa eventualmente ter influenciado?
Bastante, sobretudo no metro. Alguns dos meus autores favoritos de ficção, que provavelmente influenciam o modo como interpreto o dia a dia, são: Thomas Pynchon, John dos Passos, Kurt Vonnegut.
E escrever?
Costumava escrever mais, agora é mais esporádico. Mas tenho alguns textos (em inglês) neste blogue: http://canneverwin.wordpress.com/
Tens algum sonho, algum objectivo, que queiras realmente tornar realidade e que ainda não conseguiste?
Sempre o mesmo, de ser um músico melhor, um artista melhor. Idealmente, criar algo de belo que possa ser apreciado de uma forma universal.
Que projectos tens em mente para o futuro?
Tenho mais alguns temas que quero gravar no futuro próximo. E tenho desenvolvido alguns estudos para piano que vou pôr em pauta e tornar disponíveis para quem quiser experimentar alguns dos conceitos em que estou a trabalhar agora.
Pergunta da praxe: o que achas do blogue Morrighan e que mensagem queres deixar aos seus leitores?
Acho que é um ótimo projeto, visto que combina música e literatura. Para alguém como eu, que estudou literatura na universidade antes de se dedicar profissionalmente à música, é a combinação perfeita.
Se os leitores do Bran Morrighan quiserem ouvir o álbum, está disponível em http://joaomartins.bandcamp.com/album/the-sky-over-brooklyn