Opinião: O Tempo Morto É Um Bom Lugar, de Manuel Jorge Marmelo

O Tempo Morto É Um Bom Lugar

Manuel Jorge Marmelo

Editora: Quetzal

Sinopse: Galardoado recentemente com o Prémio Correntes d’ Escritas/Casino da Póvoa 2014, pelo romance Uma Mentira Mil Vezes Repetida, M.J. Marmelo lança um extraordinário romance em que temas fundamentais do nosso tempo são tratados com a mais apurada mestria literária.

Depois de acordar ao lado do cadáver de Soraya – a mestiça belíssima, estrela televisiva, com quem mantinha uma relação íntima a pretexto de lhe escrever a autobiografia -, o jornalista desempregado Herculano Vermelho entrega-se à polícia e é preso. Não tem memória de nada, nem de que possa ter sido ele a matar a jovem mulher, mas a prisão parece-lhe ser o lugar ideal, o espaço de sossego e de liberdade (sem contas para pagar, sem apresentações regulares no centro de emprego, sem pressões de qualquer espécie), para passar a sua vida em revista, a relação com as mulheres, e escrever a autobiografia da rapariga morta.

Opinião: Existem estreias, com certos autores, que jamais serão esquecidas. Não é que nos recordemos completamente da narrativa, dos pormenores, dos nomes dos personagens, da sua projecção visual… Não, não é nada disso. É antes uma daquelas reacções inexplicáveis quando nos lembramos do que sentimos com a leitura. Já o disse aqui antes, e volto a reforçar, sou uma pessoa muito emotiva, introspectiva boa parte do tempo, mas que vive muito aquilo que lê, aquilo que ouve. Nesta estreia com a escrita de Manuel Jorge Marmelo, não podia deixar de destacar a capacidade do autor nos transportar para a mente dos protagonistas, de nos confrontar com as suas realidades e de ainda nos fazer reflectir sobre as nossas próprias vidas, o que nos rodeia e as nossas motivações. 

Rita, a minha filha, tem dezoito anos e também não parece apreciar que se lhe recorde que tem um pai.

Herculano Vermelho é aquela personagem que nos persegue ao longo dos tempos. Jornalista, pai, um ser humano que se vê perante um impasse – uma idade em que se vê dispensado do seu cargo, uma relação complicada com a filha, um estado económico decadente e uma possibilidade de ser um ghost writer de uma ex-concorrente de um reality show. Após aceitar ser o escritor da biografia de Soraya, mesmo mediante uma data de condições, a tragédia acontece. Se para muitos, acordar ao lado de um cadáver seria uma razão de preocupação, para Herculano é quase como um meio para atingir um fim, um fim contraditório, mas que o leva a sentir-se confortável, em paz consigo mesmo – livre, em plena prisão. 

Enquanto o estabelecimento prisional sossega, neste espaço ainda mais parado que o tempo morto da reclusão, escrevo e penso naquilo que aqui me trouxe: em todas as frases que não disse à minha filha, nos dias em que não a vi crescer, no silêncio que é o meu mais eficaz refúgio e nas mulheres todas que, calando-me, expulsei da vida – na Sofia e na Soraya, claro, mas também nas outras todas que talvez apenas tivessem necessitado de ouvir a minha voz e de sentir a minha presença para terem a certeza de que estava com elas e não afastando-me já para longe, ausente e concentrado num ponto invisível diante do nariz, à espera de que os problemas se resolvessem por si mesmos, puta que pariu, puta que pariu, puta que pariu, tão distante e alheado da minha própria vida como das pendências domésticas de um vizinho qualquer.” 

Dentro da prisão, encontra um conforto e uma despreocupação que o leva a retroceder na sua história pessoal com uma necessidade latente, embora talvez inconsciente, de justificar o rumo da sua vida. Neste caminho introspectivo, Manuel Jorge Marmelo incute na sua escrita o tom agridoce da realidade como ela é – sem adornos, sem tentativas de apaziguamento, mas antes com um sentido que nos revolve, que nos activa e que nos faz abrir os olhos. Regras cínicas e preceitos hipócritas, é assim com estas características que a vida, fora da prisão, emerge aos olhos de Herculano.

Não preciso, aqui, de ser cortês, educado, político ou simpático com sujeitos que me repugnam, e posso muito bem ignorar que existem.

Desde críticas sociais a políticas, existe um chicote literário que é peremptório – estamos perante um autor que, usando vários recursos linguísticos e narrativos, pega num enredo supostamente banal e transforma-o numa obra prima. O que poderia ser a vida de um ex-jornalista com uma vedeta das revistas cor-de-rosa, é elevado ao estatuto de uma busca pela motivação humana, pela necessidade, neste caso de João António Abelha, de ver um mistério resolvido que está muito além da sua compreensão. Cada personagem de O Tempo Morto É Um Bom Lugar tem o seu propósito. A teia tecida consegue explodir numa panóplia imensa de emoções e descrições imagéticas fortes, deixando a sua marca psicológica, qual tatuagem. 

Tinha sido sempre assim: passara a vida a fechar portas, a instalar ferrolhos e a erguer os muros em seu redor. Vendo bem, o suicídio na cadeia constituía o corolário lógico de um percurso e de um modo de vida. Era como uma fuga definitiva, o desaparecimento final, e havia que reconhecer que Herculano tinha conseguido ser consequente. Abelha sentiu, por isso, admiração e inveja.

Estamos perante uma obra tão rica, tão cheia de possibilidades que é impossível ficarmos-lhe indiferentes. Não falei um décimo daquilo que poderia abordar nesta opinião, mas afinal este é um daqueles livros dos quais era capaz de me colocar aqui a escrever ou a falar horas e horas. Qualquer texto que escrevesse iria sempre sempre abaixo do merecido, mas fica a recomendação sem restrições para quem gosta de boa literatura portuguesa, como só um bom português sabe escrever. 

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

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