Entrevista a Tiago Sousa, Músico Português

Já passaram algumas semanas desde que tive o prazer de entrevistar o Tiago, mas só hoje consegui sentar-me com tempo e disposição para a transcrever. Gostava de ter conseguido fazê-lo logo na altura, mas andei algumas semanas doente e este é um trabalho que também requer concentração e disponibilidade mental. O que é certo é que desde então esta é uma entrevista que me “assombra” porque o Tiago Sousa é daqueles artistas interessantíssimos, com uma obra musical que transcende a própria música e que abraça também a literatura e outras artes. A entrevista surgiu através do Magafest, que se realizou no dia 6 de Setembro e chega então agora até vós. 

Fotografia Vera Marmelo

A aventura do Tiago no mundo da música já traz consigo uma longa história, começando pela sua infância e pela sua avó que dá aulas de piano: «O piano é um instrumento que me acompanha há bastante tempo, deve ter sido das minhas primeiras brincadeiras de miúdo – improvisar ao piano. Ainda tive aulas até aos 8 ou 10 anos, mas depois entrou aquela fase mais parva, da pré-adolescência, e os teus interesses começam a ser outros. (risos) Desliguei-me um pouco do piano, que é um instrumento muito rígido e com uma disciplina muito marcada, mas sempre mantive uma ligação à música – comecei a tocar guitarra, entrei em bandas de rock… Aquelas coisas normais (risos), aquela rebeldia de tentar sair das saias da minha mãe e da minha avó. Passei por essas fases todas até chegar a uma altura em que senti uma espécie de crise de identidade – que o que estava a fazer não era particularmente diferente do que o que os outros já faziam. Foi então que o piano surgiu novamente como uma espécie de desbloqueio criativo, precisamente porque havia uma ligação muito anterior e um bocado emocional. Eu não queria seguir um procedimento muito académico, não queria ter aulas, não queria nada disso. Queria mesmo pegar no instrumento e tentar descobrir por mim o que é que conseguia fazer com ele. E nos últimos seis anos a minha dedicação tem sido precisamente essa.»

O primeiro trabalho do Tiago, Crepúsculo, data do ano de 2006. Desde então, vários foram os discos lançados, e com eles veio a particularidade de, ao contrário do que é habitual, as suas músicas se manifestarem como uma longa-metragem, ultrapassando, em tempo, o período habitual de três ou quatro minutos. Essa escolha, disse-me o Tiago, foi um pouco acidental: «Aquilo que se começou a tornar cada vez mais claro para mim foi que eu gostava, de facto, da música dita erudita – é precisamente um certo comprometimento com a obra estética e não só a forma como atinge o público, mas também todas as questões filosóficas, sociológicas, antropológicas e políticas que possam surgir no simples acto de criador. Isso interessa-me muito e eu acho que é isso que faz com que a minha música ganhe alguma densidade e que torne difícil ter um princípio, meio e fim num curto espaço de tempo. Mas isso não é um cânone para mim, se olhares para um disco como, por exemplo, o Insónia, e mesmo um disco que estou a preparar agora para sair, já são discos de faixas curtas. Às vezes quando estou a trabalhar num disco como o Crepúsculo, o Samsara ou o Walden Pond’s Monk, de facto há uma ideia muito mais cinematográfica de construir um disco, de haver uma narrativa que conduz o ouvinte ao longo de trinta minutos, o que seja. Mas não é sempre assim, depende sempre do tema que estou a tratar. Há discos que têm uma narrativa e uma ligação conceptual muito próprias, que faz sentido aprofundar e olhar para eles como uma peça inteira e não como uma série de canções. Já o Insónia, por exemplo, não é nada disso, é muito mais inconsequente nesse sentido. e é simplesmente eu a tentar fazer algo de música com o piano. Não existe nada assim adquirido, na realidade. (risos)»

Seja qual for o disco, existe sempre esta imagética cuidada e pensada que também bebe muito da mitologia. Sendo fascinada pelas várias mitologias, não resisti e perguntei-lhe o porquê dessa referência: «Como te disse, a música erudita tem sido um foco meu. Não é tanto o lado virtuosístico ou o lado mais académico, mas sim esse lado que eu acho que ascende mais à origem da própria prática musical, que tem uma ligação muito forte com a religião cristã, e penso que isso tem repercussões em todos os músicos que surgiram ao longo dos séculos. Existe um comprometimento muito forte entre o autor e a obra que está a criar, não é de ânimo leve e muitas das vezes consegues até pressentir a pessoa que está por trás da música que faz. Eu acho que aí é que a coisa é mesmo importante e mágica – é a ligação a metáforas e outras imagens que possam surgir e que é muito importante para mim porque revelam esse lado mais profundo da música que não se esgota na simples audição, mas antes que desperta o ouvinte numa descoberta, ele próprio, em torno daquilo que estou a tentar aludir. Cada um ouvirá coisas diferentes nos meus discos e acho que isso também é interessante. Não quero limitar a experiência de quem ouve e por isso vou deixando umas pistas ou no nome do disco, ou no texto que o acompanha, mas que terá sempre interpretações diferentes e eu gosto disso, acho que enriquece a obra.»

As referências são muitas, e algumas vão mesmo até à literatura: «No Walden Pond’s Monk, a principal influência é o Henry David Thoreau, escritor americano do séc. XIX, que passou dois anos junto ao lago Walden a tentar perceber qual era a essência da vida, tentar ir ao mais profundo âmago da vida, ou seja, viveu praticamente sem materialismo nenhum, construiu a sua própria casa, vivia daquilo que conseguia plantar, basicamente tentava viver numa espécie de auto-subsistência super reduzida. A forma como ele explica isso no livro é absolutamente mágica e também está cheia de referências de mitologia clássica, referências dos pensadores orientais, e é delicioso também por isso mesmo, porque tu estás a aceder a um ensaio filosófico de uma profundidade incrível. Foi isso que me inspirou na altura a fazer esse disco, precisamente por haver uma interligação muito forte entre aquilo que eram os meus ideais e a minha forma de fazer a música e aquilo que ele estava a transmitir por palavras. Houve uma identificação imediata que aconteceu nos valores e na ética de fazer as coisas, que transportou depois para a música e a tornou tão natural, que a homenagem quase se tornou inevitável. No caso do Samsara já foi um bocadinho diferente, já foi mais ponderado, é um disco que tem uma narrativa mais densa, penso eu. Tem uma ligação bastante forte com o termo hindu que significa precisamente o ciclo de repetição do nascimento, da vida, da morte e do renascimento. No fundo é esta constante passagem de estados, um fluxo perpétuo que se prolonga pela existência, as coisas nunca são estanques. Essa ideia interessou-me muito, não tanto pela questão religiosa, mas muito mais pela ideia desse fluxo contínuo que surge e que eu identifico não só ao nível individual, porque isso também acaba por ser uma forma filosófica de resolvermos o problema da morte e da finitude, mas muito mais de olharmos para isto como um todo. Sociologicamente, se olharmos para a civilização e percebermos como ela evolui é porque existe uma interligação cultural, das diferentes gerações, que vai perpetuando uma série de valores e de princípios, alterando também, com o curso do tempo, através da radicalização do pensamento, de transformação de formas de estar, e foi sobre isso que eu quis falar. Ou seja, como é que construindo opostos consegues encontrar uma linha harmónica que consegue equilibrar isto tornando-o tão mágico. (risos)»

Para o processo criativo, estabelecidas as bases, todas as influências acabam por contar, inclusive as colaborações com outros músicos. Uma delas aconteceu no álbum Walden Pond’s Monk, em que participaram Ricardo Ribeiro e Baltazar Molina: «Começou comigo a mostrar inicialmente ao Ricardo, e depois ao Baltazar, a peça que eu tinha, e eles construíram em cima disso. Foi uma construção em conjunto e não eu a escrever a parte deles. Foi dada total criatividade, tanto a um como a outro, para interpretarem a peça como melhor entendessem. Às vezes há alturas em que, por imposições de prazos ou outras razões, me vejo obrigado a ser mais objectivo e a escrever as partes dos outros músicos. Mas mesmo quando o faço tento ao máximo ter a sensibilidade de perceber como é que o músico olha para aquilo que lhe estou a mostrar. Quando mostro uma pauta a um músico existem muitas imprecisões e gosto de trabalhá-las com eles, por isso estas experiências com músicos têm sido bastante enriquecedoras, precisamente porque eles têm outras visões que eu não tenho e que trazem uma profundidade que às vezes eu não consigo. Mas todas as relações, mesmo no quotidiano, acabam por me influenciar. Não há um Tiago Sousa músico e um Tiago Sousa outra coisa qualquer, as coisas estão todas interligadas. Eu tento ser uma pessoa o mais honesta e sincera possível e tento transportar isso na minha música como no dia-a-dia. No fundo é tentar ser consequente com aquilo que faço e que não sejam demasiado estanques.»

Uma das coisas que caracteriza muitas vezes o mundo da música são os vários circuitos que existem consoante o género. Apesar de a música de Tiago Sousa beber muito da música erudita e das referências que tal apela, Tiago não considera que a música que faz seja erudita, nem que haja propriamente um circuito a que possa pertencer: «Eu não vou fazer os circuitos dos festivais de Verão, por acaso este ano tive a oportunidade de tocar no festival Bons Sons e foi uma experiência muito enriquecedora, mas foi muito particular porque toquei num auditório, ou seja, não é música que tu possas trazer para um espaço exterior e fazer aquilo funcionar. Não existe um circuito muito claro ao qual eu possa pertencer, acabo por ir gravitando à volta de uma série de pessoas que muito generosamente vão apreciando aquilo que faço e que me vão convidando e dando apoio, como o caso da Inês (Magafest). E é assim que as coisas têm acontecido comigo, são pessoas que vão descobrindo a minha música e vão ficando interessadas, por qualquer razão que seja, e que me vão dando essas oportunidades. Mesmo quando vou tocar lá fora, tem sido um bocado assim. Tento sempre é que exista esse respeito porque de facto é uma música que tem um espaço muito particular e é necessário que esse espaço lhe seja dado para poder ser devidamente apreciada.»

Qual será a maior diferença ao tocar este tipo de música em Portugal, que é um país de massas e mais comercial, e no estrangeiro? «O que tenho sentido quando vou tocar lá fora é que as pessoas estão muito predispostas a ouvir. Que é uma coisa que aqui, às vezes, tenho dificuldade em sentir. Tem acontecido menos porque vais ganhando algum reconhecimento e as pessoas ficam mais atentas, mas em Portugal as pessoas vão aos concertos mais para estarem umas com outras e não tanto para usufruir do concerto. O que é um pouco estranho e paradoxal, estamos a viver uma das fases em que mais festivais e concertos existem, a oferta é imensa, e depois vais ver as experiências que as pessoas trazem deles e são, muitas vezes, superficiais. Lá fora, parece-me, e não é exclusivo, em Portugal também acontece, é que existe um hábito muito maior de perceber a complexidade das coisas e de estar predisposto a ouvir e a respeitar. Mesmo que depois no fim cheguem à conclusão que não gostaram. E isso tem também a ver com o contacto com a tal música erudita. Qualquer puto de Paris já foi pelo menos uma vez à Ópera, ou ver a Orquestra Sinfónica, ou um solista tocar. Em Portugal, se fores perguntar à maior parte dos teus amigos, se calhar ainda nenhum viu um concerto de música acústica (risos). A sensibilidade também é uma coisa que se cultiva, tem de haver uma certa prática. E acho que essa é a maior diferença.»

Fotografia Vera Marmelo

Quanto ao concerto mais intenso, e por ser péssimo em questões de algibeira, Tiago Sousa elegeu o último no Bons Sons: «Foi um concerto onde tudo funcionou bem, consegui eliminar uma série de preocupações e de abstrair-me de tudo à minha volta. Consegui ser mais objectivo com aquilo que estava a fazer. Durante muitos anos andei a recusar o academismo, e depois cheguei à conclusão que precisava de uma série de preceitos e de uma série de métodos que esse academismo transporta. Portanto, fui eu próprio estudar, sem um professor, porque eu tenho um bocado essa necessidade de correr pela minha própria vontade. Fui então pesquisar e desenvolver algum conhecimento sobre como é afinal tocar piano! (risos) Porque afinal é uma coisa bastante complexa, requer uma boa coordenação motora e uma grande capacidade de concentração. E de facto, neste concerto, correu tudo muito bem, ao ponto de que quando comecei o concerto tinha uma sala simpática à minha frente e, de repente, quando estava a terminar, olhei para a frente e tinha a sala completamente cheia e nem sequer me apercebi de nenhuma daquelas pessoas ter entrado na sala. Consegui mesmo estar naquele momento presente. Foi uma coisa mesmo especial para mim, principalmente porque tem todo um processo atrás, de alguma dor e sofrimento (risos), quando aquilo aconteceu foi mesmo – bolas! – agora é só continuar e prosseguir que assim as coisas conseguem ser muito mais valiosas para mim e para o público.»

Na calha já estão mais dois álbuns, um deles com voz para sair no início de 2015, mas o foco vai estando em apresentar os trabalhos mais antigos. Da minha parte, que tenho ouvido os seus discos com frequência enquanto trabalho no meu doutoramento, só posso aconselhar a que ouçam e a que vão ver o Tiago assim que possam. Deixo-vos os links principais para o seguirem e ao seu trabalho:

Facebookhttps://www.facebook.com/tiagomsousa

Site Oficialhttp://www.tiagosousa.org/

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

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