Coro das Vontades
um disco com música de Tiago Sousa e textos de Joana Rosa, Inês Leitão e Paulo Carvalho
O Coro das Vontades é o novo disco de Tiago Sousa. A edição desta obra comissariada pelo Teatro Maria Matos, será assinalada com um concerto a ter lugar no teatro lisboeta, a 8 de Abril, momento em que o CD será oferecido a todos os que a ele assistam.
Em antecipação, Tiago irá enviar O Coro das Vontades, em formato digital, a todos os subscritoes da sua newsletter no final deste mês, Fevereiro. Quem ainda não tiver subscrito poderá fazê-lo através do site www.tiagosousa.org. No dia 15 de Março a versão digital será dispnibilizada ao público em geral através do mesmo site e no novo Bandcamp do músico.
Teatro Maria Matos 8 abril 22h
Do coro das vontades a um piano nas barricadas
O Coro das Vontades, originalmente comissariado pelo Teatro Maria Matos, e aí apresentado no Dia do Manifesto a 14 de Julho de 2012, parte da criação de dois finlandeses, Tellervo Kalleinen e Oliver Kochta-Kalleinen, que em 2005 organizaram o primeiro Complaint Choir na cidade de Birmigham. Os artistas decidiram disponibilizar o conceito na Internet em open source. Os coros de queixas começaram a emergir em todo o mundo: Helsínquia, Hamburgo, São Petersburgo, Melbourne, Jerusalém, Budapeste, Chicago, Florença, Vancouver, Singapura, Copenhaga, Filadélfia, Milão, Hong Kong, Tóquio, Roterdão. A convite do teatro lisboeta, Tiago Sousa propõe uma abordagem a este conceito.
Partindo de textos enviados pelo público do Teatro Maria Matos, Tiago Sousa e Joana Rosa criaram este espectáculo a partir de questões levantadas pelos manifestos e chegaram à ideia de separação. Da separação inerente à condição do cidadão, que entrega o seu poder à esfera política, à separação entre autor e público, nos seus papéis de emissor e receptor.
À ideia iluminista que vê o Autor como um agente de intelectualidade, ou de sensibilidade, vedada ao público comum, ignorante da arte enquanto prática, propõe-se a ideia de que tanto o autor quanto o espectador são emissores e receptores de ideias, potenciais criadores de um diálogo dinâmico de partilha.
Os autores propõem a oposição desse sujeito pensante que se reconhece como tal separado de sentido e de corpo, a um novo sujeito pensante que se expressa pela via da acção. Exercendo-a sobre si mesmo e sobre os outros. Buscando a sua harmonização e realização de modo colectivo e emancipatório.
Créditos:
Créditos:
conceptualização, piano e composição Tiago Sousa
conceptualização, edição e escrita de textos Joana Rosa
clarinete soprano Ricardo Ribeiro
violoncelo Ulrich Mitzlaff
soprano Beatriz Nunes
actriz Inês Nogueira
uma encomenda Maria Matos Teatro Municipal
agradecimentos Os autores agradecem aos amigos, familiares e a toda a equipa do Teatro Maria Matos pelo contributo dado na realização deste disco. Em especial a Mark Deputter e Pedro Santos. Por fim, agradecem a todos os que contribuíram com os seus manifestos e ideias.
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01 A Terra Treme
a partir do original de Mónica Amaral Ferreira
A Terra Treme (a casa cai)
02 Antígona
Joana Rosa
Quando erguidos e retos
Descobriremos insurretos
Antiga Antígona
Primeira lei interior
Anterior às leis dos homens
03 Cinco crimes por dia, amor meu, e seremos nossos
Joana Rosa
I.
Preparai-vos
Saí de vós
Desfazer não
Traz temor se
Confiais na
Promessa que
Se esconde
Atrás da
Cortina de fogo
II.
Manifesta-se a
Estrada cortada
Ao espanto
Anunciada
Por um Piano
Na barricada
III.
A primordial
Forma do mundo
Inspira, é mimética
Imago Mundi aberta
IV.
Dirigi-vos
Entrai em vós
Chegar não é louvor
Se vos focais na meta
Não vês que é certa
A perda de sentido
Do caminhar
V.
Libertai
Da Mente
Os pássaros
Como Prometeu
O fogo
Que a dádiva
Torna livre
Aquele que dá.
04
Manifesto a favor da utilização
dos transportes públicos / Manifesto pela saída de emergência
Inês Leitão
Fonte Sonora A
Faço questão do autocarro público, das pessoas contra o meu corpo, de ir para o trabalho a achar que eu sou os olhos e as mãos de todos os que passaram por mim, de todos os que me tocaram inocentemente, ostensivamente, luxuriosamente.
Faço questão dos seus olhos a fitarem os meus: dos seus olhos, de como se abrem e fecham tão rapidamente sem que eu compreenda o fenómeno do fechamento das pálpebras cansadas e da densidade das sobrancelhas. Faço questão de os ver dormir quando o cansaço os agarra e de os ver despertar para sair, automáticos e autónomos. Gosto de dar atenção às suas expressões, àquilo que a sua cara diz quando se silenciam sozinhos e falam para dentro onde eu não oiço.
Faço questão dos dedos, de lhe contar os pelos da pele das mãos, de lhes conhecer perfeitamente as mãos sem que se apercebam dos meus olhos na sua pele.
Faço questão do tamanho das unhas, do contorno da barba, do desenho do queixo na anatomia total do corpo a que pertencem.
Faço questão que o autocarro chegue cheio e quente de gente e que o vapor se instale na janela para eu poder desenhar e escrever. Faço questão de desenhar e escrever no vapor deles.
Faço questão do número de senhoras da minha idade, de lhes analisar as ancas e adivinhar quantas pessoas lhes dormiram no útero durante nove meses de gestação.
Faço questão das roupas que usam de manhã e que trazem no fim do dia. Faço questão de pensar neles sem roupa
(o ato de vestir é o mais terrível ato de egoísmo individual sobre a humanidade)
e faço questão da transpiração.
9
Faço questão das gotas de água a saírem de poros invisíveis e audaciosos, faço questão do milagre do suor do corpo quando somos tantos no mesmo espaço, tantos a respirar o mesmo ar, tantos a suar os mesmos medos. Faço questão do barulho do motor do autocarro, de me agarrar a ferros mornos de gente para resistir à queda. Faço questão de sentir o ferro e de invejar a sorte da sua condição de ferro de autocarro público: tão tocado por tantos. Faço questão de não esquecer
(não esquecer um só)
e de me sentir feliz sempre que os vejo chegar à hora certa (a perturbação invade-me e as minhas mãos tremem ao pensar no que pode ter causado a ausência)
Faço questão que o autocarro venha cheio de corpos para eu poder entrar de lado e jurar a todos com licença. Faço questão de gravar as suas vozes na minha memória para poder reproduzi-las quando me deito e penso que a cidade de Lisboa é muda à noite
(só à noite)
quando não há ninguém nem nada de novo a acontecer nas paredes do meu quarto. Faço questão do cheiro do champô deles no autocarro, do desodorizante, dos perfumes, dos roupeiros
(tantos, tantos, tantos).
Faço questão de me encostar aos seus corpos de propósito, de aproveitar os instantes das travagens abruptas do autocarro para poder tocar-lhes e olhar cada um nos olhos a suplicar perdão pelo toque usurpador
— com licença, desculpe,
senhora, o seu perdão
Faço questão de repetir o transtorno
— com licença, por favor, desculpe
vezes sem conta,
— perdão, senhor, perdão
por todos os corpos presentes, até ser a minha vez de tocar para sair, triste e em tropeço, agarrando as mãos ao ferro como uma despedida de dor com cheiro a aço, colocando o dedo na campainha com a certeza de que os meus ouvidos ouvirão
— dlim-dlão
dlim-dlão
Fonte Sonora B
1. Contra o vento do metro na minha cara
quando eu vou trabalhar,
contra o Jornal de Negócios no degrau do
escritório de manhã,
contra todas as saídas de emergência desta
cidade,
plim.
2. Contra o rating,
contra a precariedade e contra o capitalismo
desenfreado,
plim.
3. Contra o BPN,
o BPP,
a Standard & Poor,
plim.
10
4. Contra mim,
contra o meu corpo carregado de
precariedade,
plim.
5. Contra o que podemos comer e
contra o que não podemos comer,
plim.
6. Contra todo o tédio,
contra a minha cara numa entrevista de
emprego falhada e contra a alma do meu
avô, sindicalista antes de 1974,
plim.
7. Contra a minha vagina,
contra a precariedade da minha vagina e
contra as pilas que já passaram por ela sem
a olhar,
plim.
8. Contra a raiva que tenho entre os dentes
à laia de cárie dentária que levo na boca até
à cadeira do meu trabalho,
plim.
9. Contra a pele dos meus lábios a queimar
à beira da chávena de uma bica demasiado
quente às 08:46 da manhã
antes do serviço,
plim.
10. Contra a pequena janela que tenho à
minha frente e
contra os meus dedos a bater com violência
na chapa plástica do teclado do meu
computador,
plim.
11. Contra o meu carro na oficina há três
meses por falta de pagamento,
contra a ideia de ter de comer o meu chefe
para subir de escalão e
ganhar mais do que os meus colegas: contra
aquilo que a minha boca não diz e
a minha cabeça pensa,
plim.
12. Contra o meu corpo,
contra a ideia de esmagar a minha cabeça
na parede com muita força até a abrir e tudo
se tornar irreversível,
plim.
13. Contra o mundo todo,
contra todos os movimentos pela paz,
plim.
14. Contra o Ghandi,
contra o Luther King e
contra o Mick Jagger,
plim.
15. Contra o José Luís Goucha,
contra a Júlia Pinheiro e
contra a saliva do Sr. Silva,
plim.
16. Contra os carros,
contra os pneus dos carros e
contra as bicicletas que não poluem,
plim.
17. Contra a morte de Saramago e
contra os ecos do livro de Lobo Antunes na
minha cabeça,
plim plim.
18. Contra a minha cabeça,
plim.
19. Contra a cabeça da minha mãe e
do meu pai,
plim.
20. Contra a violência da solidão e o cheiro
da urina seca num beco de Lisboa,
plim.
21. Contra o ar condicionado e contra a
escravatura do clima controlado,
plim.
22. Contra o blazer preto e contra o inverno,
plim.
23. Contra a chuva,
contra o medo e contra os fascistas da
Faculdade de Letras em 2006,
plim.
24. Contra o temor,
contra o Mário Crespo e o pânico na cara
dos outros,
plim.
25. Contra a violência,
o despudor,
contra as gralhas do jornal da SIC,
plim.
26. Contra o engano,
contra as baratas e contra os escaravelhos
amigos escondidos de mim,
plim.
27. Contra os que tropeçam e caem em
balsas quando os barcos se afundam com
pessoas presas lá dentro,
contra o mau tempo no canal,
plim.
28. Contra o mundo todo e todos os
mundos,
contra a vida que levamos e aquilo que
corremos,
plim.
29. Contra a resistência dos resistentes,
contra a sobrevivência dos malditos:
contra o meu umbigo e contra a democracia
que temos,
plim.
30. Contra mim, que tenho 30 anos, e
contra a geração fon-fon-fon:
contra ti e contra aquilo que nos tornámos
os dois multiplicados por tantos,
plim.
A favor de todas e quaisquer saídas de emergência intencionais e
criteriosas que nos levem daqui para fora,
dlim-dlão,
dlim-dlão
05 Sentados nas pernas
Joana Rosa
As pernas cruzadas
Freiam a alma
Ignotas do uso
Desconhecem acreditar
E do pensamento só saía
O espanto de um corpo
Que não se sentia
A vontade tocando
Não existia
Alguém — Quem?
Lavou e torceu
Esse pano
Para secar
06 O que é um coro?
… e um coro de vontades?
Paulo Carvalho
Se de vivos falamos, o todo é infinitamente mais pequeno do que as partes. O todo — a civilização (ocidental ou oriental), o continente, o país, a classe, a multidão, a instituição, o partido, o gang, a turma, o género, a família… — são as verdadeiras partes, meras ideias (ainda que armadilhadas), estilhaços de violência implícita, prontas a serem arremessadas ou defendidas, ameaças distantes ou baluartes próximos, que nada são quando comparadas contigo, que és imensidão, que não és parte (ainda que participes), porque não és um triângulo de vidro ou peça de puzzle que se encaixe ou solde. Não és um soldado, ainda que te solidarizes. Também não és inteiramente sólido. Partes só e esburacado para o encontro, encontras-te só e esburacado depois dele. O vento passa dentro desses buracos e no interior dos buracos do encontro. Infinito, entre infinitos, és tu, sou eu. Se te afastas, sentes frio; se te aproximas demais, corres o risco de sufocar. E eu contigo. Não nos conhecemos, conhecemos reações, alquimias a que damos nomes grandes (pelo medo de não sabermos). Infinito é apenas um dos nomes do mistério que te habita e que és. Que me habita e que sou. Foi por isso que, antes dos nomes, a voz sobreveio ao mutismo do corpo. A tua no teu, a minha no meu, a dele no seu. E a primeira forma da voz foi o grito. E o grito, assim fora do corpo, atemorizava. E foi para vencer esse medo que o tímpano — a primeira fonte do medo — se tornou fino e, muito antes da afinação, procurou a afinidade. E, desde então, cada voz existe na distância em que outra a deixa ser. É, pois, o tímpano que marca a distância: pela escuta. Da tua voz, da minha. E da terceira voz, a dele. E assim nasce o canto plural, que já não é só voz, mas cada voz unida a outras vozes singulares modelando os gritos: as vontades na distância exata — que nunca é exata, ou que o é apenas na procura do tom comum. O coro já não é um todo, difusa ideia a combater ou a defender, é a convergência de vozes singulares em ação.