Pó, Cinza e Recordações
J. Rentes de Carvalho
Editora: Quetzal
Sinopse: Escrito entre Maio de 1999 e Maio do ano 2000, este é o diário do milénio de um dos mais relevantes autores portugueses da actualidade, J. Rentes de Carvalho, então a caminho dos setenta anos. Excerto da primeira entrada, a 15 de Maio: «É essa uma das poucas vantagens da velhice: poder viajar no tempo. Não como o faz a juventude, com o privilégio de ansiar pelo futuro, mas ironicamente em marcha-atrás. Recebendo lições de modéstia, deixando pelo caminho as certezas que o não eram, rindo de ter tomado a sério a palavra eternidade. A caminho dos setenta. (…) A sopesar se me restam ainda cinco, dez, quinze anos, ou se amanhã – nunca hoje, sempre amanhã! – a Parca se canse de dobar o meu fio e o corte de uma tesourada.»
Opinião: 2016 começou de uma forma muito particular. Não me consegui decidir sobre que livro começar a ler e então decidi reler outros dois que já tinha lido há algum tempo. Terminados, a sensação de nostalgia continuou. O ano era novo, mas eu não me sentia propriamente renovada, afinal o tempo é continuo por muito que falemos em novos começos e novas metas em determinadas alturas, e quando olhei para as minhas estantes Pó, Cinza e Recordações atraiu-me até si. Em parte pelo título, em parte pelo autor que é e o arcaboiço que traz consigo, ainda para mais sendo um livro-diário e não um romance. Todo este misto de emoções levou-me a pegar nesta obra e, embora tenha passado um mês desde que o comecei, foi o livro certo na altura certa.
Bem sei que um diário talvez não seja a melhor forma de entrar em contacto com a escrita de um, essencialmente, romancista, mas também penso que é a forma mais pura de talvez conhecer alguma da sua essência. Romanceadas ou não, as entradas percorrem vivências do autor, mas também algumas reflexões e devaneios. Tenho a curiosidade de me ter apaixonado pelos registos ao Domingo. Passo a explicar. Aqui no blogue eu tenho uma rubrica que são as Citações Aleatórias em que vou partilhando pequenos excertos que de alguma maneira me tocam enquanto leio alguma obra. Nem sempre tenho a oportunidade de registar convenientemente essas partes, mas sempre que posso lá o faço e dei por mim a encontrar o padrão de Domingo em cada um dos registos que seleccionava. Claro que se calhar o autor ou mesmo qualquer leitor nunca fez este registo, mas achei uma curiosa coincidência, principalmente por serem entradas extremamente pessoais.
Quando não são assim tão pessoais, as descrições centram-se principalmente em acontecimentos com personalidades potencialmente conhecidas ou meros habitantes da aldeia onde vivia. Os pequenos e grandes incómodos da intromissão da vida alheia ou apenas o reconhecimento e valorização das pequenas coisas que podem fazer alguma diferença. Noto principalmente um espírito muito crítico e inconformado. Dividindo-se entre Portugal e Alemanha, tendo um estatuto misto em cada um dos países, onde tanto o reconhecem como talvez o desprezem, J. Rentes de Carvalho mostra uma humanidade nos seus registos que podem impressionar pela sinceridade, mesmo quando parece roçar um pouco a arrogância ou até a vergonha da admissão.
Acima de tudo, Pó, Cinza e Recordações transmite uma sinceridade rara nos dias de hoje. Os medos, as perspectivas, as esperanças, os orgulhos, as vergonhas, tudo num raio-x do que pode compor um ser humano, mas que nem todos têm a coragem de, olhando-se ao espelho, admitir. Ao longo deste ano que podemos acompanhar, o autor escreveu Ernestina, romance que tenho por aqui, e estou cheia de vontade de pegar nele. Lembro-me de uma entrada em que J. Rentes de Carvalho admite que os seus romances têm como protagonistas muitas destas pessoas que se cruzam com ele. Quem sabe o que poderei encontrar em romances anteriores que ainda venha a reconhecer? Para quem o quiser colocar na sua lista de compras e o vier a adquirir, aconselho apenas que o consumam com moderação, levem o vosso tento a percorrer as entradas e não tenham pressa, correm o risco de perder preciosismos muito bons na ânsia de saber mais.
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