Silêncio, por Helena Ales Pereira

anja niemi

Silêncio

Sinto rasgar. Sou eu. A dor é indescritível. Mas já não a sinto.

“We’ll be too far away

‘Cause we’re all drifting farther every day”

Drifters, by Patrick Watson

São 21h30. Lá fora chove. Ela está concentrada no trabalho, não sente fome e não percebe a noite chegar. É inverno e a noite chega cedo. Qualquer hora parece 10 da noite, quando anoitece no inverno. Principalmente quando chove, como hoje.

-Bolas, já são nove e meia. Merda, fiquei de ir a casa dos meus pais depois do jantar, diz para si. Agora não vale a pena. Os pais jantam cedo e a esta hora estão enrolados na cama. A mãe a ler, como sempre, o pai a ver séries, para descansar a cabeça, como gosta de dizer, depois de passar o dia com a cabeça enfiada em papéis. É contabilista.

Silêncio

Sinto o hálito pesado em cima de mim. O cheiro a álcool. A respiração ofegante. Agonia-me.

“And you find yourself far from home.”

Blackwind, by Patrick Watson

Prepara-se para sair. Aperta o casaco de malha e veste a gabardina. Amaldiçoa a saia, mas a reunião de manhã pedia um fato mais formal. Substitui os sapatos pelas galochas que, nos dias de chuva, traz sempre consigo num saco. É prática. E bonita. Os cabelos, castanhos, mal tocam nos ombros e os olhos são castanhos-claros. A boca, bem desenhada, larga, convida a muita coisa, mas pouco à conversa. É reservada.

Silêncio

Deixa de doer. A adrenalina tem esse efeito. Anestesia.

“Bad day, looking for a way home,

looking for the great escape.”

The Great Escape, by Patrick Watson

Desce as escadas. São quatro andares sem elevador num prédio velho. A zona onde está localizado é industrial. Uma daquelas que, aos poucos, se converte num local de moda. Escritórios baratos em antigas fábricas, prédios devolutos de fachada Arte Nova. Aproveitadas por jovens empresários que os transformam em locais hype. Onde todos querem trabalhar, porque é o que está a dar.

Vai descendo lentamente. Não há pressa. Afinal vai para casa. Telefonou aos pais a avisar que se tinha distraído com o trabalho. Amanhã passava por lá.

-Sim, mãe, eu juro que janto mais do que um prato de cereais, prometeu ela, uns minutos antes.

Talvez aqueça uma sopa. Talvez uma taça de leite para comer os cereais.

O que me apetecia mesmo era sushi, pensa. Mas não gosta de ir a restaurantes sozinha e a esta hora já é tarde para ligar a alguém. São 9h48 da noite.

Silêncio

Já não o oiço. Já deixei de o sentir há algum tempo. Já não choro.

So one day

We fall, fall for a long time

Fall, by Patrick Watson

Tem de andar cerca de três minutos a pé até ao carro. Quando chegou da reunião da manhã, já só havia lugares no descampado que fica mais afastado. Continua a chover. Os pés estão protegidos da lama e da chuva pelas galochas. A cabeça por um chapéu impermeável. Não gosta de chapéus-de-chuva. Prefere molhar-se. Sentir a chuva. Bob Dylan dizia que há quem sinta a chuva e há quem apenas se molhe. Ela gosta de acreditar que faz parte do primeiro grupo. Dos que sentem. Dos que vivem.

Silêncio

Não percebo que já passou. Percebo que nunca mais serei a mesma.

“It’s quiet again

Too much for noise to go on

To fill up the space”

Noisy Sunday, by Patrick Watson

O estacionamento está deserto. Estão apenas dois carros, juntos, ligeiramente afastados do dela. Faltam poucos metros. Ao longe, destranca a porta com o comando. Só com o segundo toque se abrem as portas todas, por isso, não corre o risco de alguém entrar por uma das outras portas, enquanto ela entra no carro.

Silêncio

Abro a porta do carro. Não o ouço chegar. É demasiado rápido. Grita-me: puta, estava mesmo à tua espera! Sinto a pancada na cabeça, como uma bofetada. Grito. Atira-me contra o carro. Tento dar socos para trás, para o atingir, e isso enfurece-o. Força-me a dobrar o corpo, até sentir as pernas a enfraquecerem e a darem de si. Empurra-me a cara contra o assento do carro e acabo por cair de joelhos. Tapa-me a boca com a outra mão, enquanto me diz: se gritares só te vai doer mais, porque te parto toda. O cheiro da boca é de álcool misturado com a comida de várias refeições, o da mão fede a dias e dias sem água, um cheiro seboso, que me dá vómitos. Ele percebe e ri-se. És muito fina. Foda-se, podia ter aproveitado a água da chuva, penso eu. Estou a ser atacada por um estranho e penso que ele devia ter tomado banho?! A mente é torcida…

Quando me solta a boca, torno a gritar e tento levantar-me. Mas ele segura-me as mãos atrás das minhas costas. Sinto a lama a entrar-me nas botas e a roupa a ensopar-se em lama e água. Continuo a espernear e a tentar lutar. Não sei com o quê. Ele perde a cabeça. Vira-me para ele e começa a esbofetear-me e dar-me socos na cara. Sinto o nariz a estalar, os dentes a ceder, os olhos a fecharam-se para se protegeram e a fecharem-se porque rapidamente reagem às pancadas e começam a inchar. Já te disse que te parto toda, minha puta!

O sangue escorre-me pela boca e pelo nariz. As lágrimas correm-me pelo rosto, mas não me sinto a chorar. Só sinto a água a sair dos olhos, inchados e fechados.

Arrasta-me para dentro do carro e deita-me por cima dos bancos da frente. Sinto o travão de mão espetado nas costas. Coloca as mãos por baixo do banco do condutor e puxa a alavanca para este recuar mais. Faz o mesmo com o outro. Tudo rapidamente. Está deitado em cima de mim e continua a segurar-me os braços com uma mão, atrás das minhas costas. Deixei de me mexer. Deixei de debater-me.

Começa a beijar-me. És bonita, cheiras bem, excitas-me. Lambe-me a cara. Lambe-me o sangue, as lágrimas e diz-me: pronto, pronto, já passou, viste? O que é que me fizeste fazer, viste? Agora não vou conseguir olhar-te nos olhos… Tenta forçar-me a abrir os olhos. A dor, a dor… Choro mais. E tens uns olhos tão bonitos, é uma pena. O peso em cima de mim impede-me de me mexer. Larga-me as mãos, agarra-me o cabelo e com a outra mão começa a procurar-me o sexo. Só agora percebo o que vai fazer, só agora sinto o desespero a invadir-me, o medo, o pânico, sabendo que se prepara outra invasão. A do meu corpo. Começo a gemer: por favor, por favor, não me magoe, não me faça mal, eu não digo nada, mas não me magoe, não me faça mal, por favor. Digo as palavras sem acreditar nelas, sem lhes colocar fé, porque os dedos dele já me afastam as cuecas, já me tocam a vulva, que se contrai, que se fecha.

Eu não te vou magoar, eu nunca magoo ninguém, só faço isto porque te amo, porque és bonita, irresistível, cheiras bem.

Penso: relaxa, Carolina, relaxa, senão vai doer-te. Pensa noutra coisa. Relaxa. Sinto o sexo duro contra as minhas pernas e começo a chorar: por favor, por favor…

Shiiiiiiiiiuuuuu, já passou, já passou, continua ele. Tenta enfiar-me os dedos na vagina, mas não consegue. Estou completamente contraída e só penso na dor, na invasão, que aquilo é um sonho, um pesadelo, que vai tudo acabar, que vai tudo acabar… Carolina, relaxa, relaxa, senão vai doer. Ouço-o a desapertar as calças e só penso: relaxa, relaxa, senão vai doer. Mas como é que se relaxa? Como é que relaxa quando alguns dos nossos maiores medos se transformam em realidade. Quando ouvimos dizer que uma em cada três mulheres serão vítimas de algum tipo de abuso, durante a vida, e nós pensamos sempre que somos as outras duas? Como é que se relaxa quando nada, ninguém me preparou para isto? Como é que se relaxa quando o meu corpo deixa de ser meu? Como é que se relaxa quando me invadem?

A respiração é ofegante, nauseabunda. A minha é acelerada, descontrolada. Uma respiração que se mistura com choro, com dor, com medo, com vazio.

És tão bonita, tão boa, tão macia, continua ele. Passa a mão pelo interior da minha coxa, belisca-me, aperta-me a carne, aperta-me mais o cabelo com a outra mão e roça o rosto, a pele, a barba, na minha pele, que se cobre de sangue, de lágrimas, de desespero.

Sinto tremer. Tudo, o carro, ele, a minha vida. Sou eu. É o meu corpo que treme, de forma descontrolada, involuntariamente. Como o sossego? Só quero acordar, forço os olhos, que já estão fechados pelo inchaço, a fecharem-se mais. Doem-me. Doem-me as costas. Doem-me os cabelos. Doem-me as pernas dos beliscões. Dói-me por dentro. Dói-me a alma que não vejo, mas sinto-a a quebrar. Nunca mais vai sarar.

Desce as calças. Força o sexo duro contra o meu. Uma… Duas… Três… Estás bem fechada, puta, sussurra. Não, por favor, ouço-me a dizer. Choro como uma criança, que se afasta dos pais: assustada, perdida. Não vai entrar, vai doer, penso para mim. Ele vai perceber e vai largar-me, penso. Ele disse que não me magoava. Rasga-me. Assim, de repente. Sinto um ardor, uma queimadura, vou morrer, morrer. Pai, mãe, quero voltar a ser criança, quero dormir entre vocês, como quando adoecia, quero chorar no colo da mãe, andar às cavalitas do pai, quero as prendas de Natal, as leituras da mãe em voz alta no sofá, quero as panquecas de canela do pai. Já não quero acordar, quero esquecer. Quero as palmadas da mãe e o olhar severo do pai, quando se zanga, quando me castiga. Quero as palavras duras da mãe, quando as notas são más, e o olhar concordante do pai, que me faz sentir só. Quero voltar a ter medo do escuro, medo de olhar debaixo da cama, quero chorar porque me bateram na escola. Quero chorar a meio da noite, quando penso que estou sozinha. Quero gritar de medo, quando caio e parto o pé, o osso de fora. Quero tudo isso, agora. Todos os medos, todos os choros, todas as angústias, todas as solidões. Ultrapassei-os a todos, quero lutar contra eles, outra vez.

Não quero isto… Esta dor. Este tremor. Esta invasão. Não quero este sexo nojento que me penetra, que me continua a rasgar. Não quero este homem. Não quero esta respiração ofegante, de prazer. Não quero as palavras que me continua a dizer. Que cona tão apertada, és tão linda. Não quero estas mãos no meu cabelo, na minha pele. Não quero esta noite. Não quero saber das estatísticas, dos números, das mulheres que são atacadas. Não quero sentir a alma a partir-se, a querer fugir de mim. Não quero ter de ultrapassar isto. Não quero o amanhã.

Mexe-se cada vez mais. Respira cada vez com mais força. Sinto cada vez com menos intensidade. Deixo de ouvir. Deixo de sentir o peso em cima de mim. Ausento-me. Morro.

Acordo com um grito, o dele. O de um homem que acabou de se vir, o esgar do prazer dele, que estará reflectido no olhar, na boca que se contorcerá, na saliva que lhe escorrerá da boca para cima da minha cara. Só sinto, os olhos continuam fechados pela dor, pela ausência, pelo pânico. Não quero olhar para o meu invasor. Já não me lembro da cara dele, mas vou lembrar-me para sempre deste cheiro, deste peso, desta dor.

És linda, diz. Tão boa, continua. Sai de dentro de mim e sinto algo a escorrer, esperma com sangue. A dor e o alívio são irmãos. Faz-me uma festa no rosto, beija-me a boca. Mas estou morta.

Estou sozinha. Não sei quanto tempo passou. Sei que este tempo nunca passará.

Helena Ales Pereira

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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