Suponho, continuei eu, que seja uma definição do amor, a crença em alguma coisa que somente aquelas duas pessoas conseguem ver, e, neste caso, veio a revelar-se um fundamento precário da vida. (…) Era difícil, disse eu, não ver nesta transposição do amor para a facticidade um espelho das outras coisas que se estavam a passar na nossa casa naquela altura. O mais surpreendente naquela transição era a pura capacidade negativa da intimidade que eles partilhavam anteriormente: era como se tudo o que estivera no interior se tivesse mudado para o exterior, peça por peça, como mobília tirada de dentro de uma casa e colocada no passeio. Parecia ser tão intenso porque o que estava invisível era agora visível; o que fora útil era agora redundante. O antagonismo entre ambos surgia na exacta proporção à sua anterior harmonia, mas, enquanto a harmonia fora intemporal e inefável, o antagonismo ocupava espaço e tempo. O intangível tornara-se sólido, o visionário encarnara, em guerra, o privado era agora público: quando a paz se transforma em ódio, há alguma coisa que nasce para a vida, um impulso de pura mortalidade. Se o amor é aquilo a que nos agarramos para nos tornarmos imortais, o ódio é o inverso. E o mais espantoso é a profusão de pormenores que este reúne para si mesmo, de modo que nada permanece intocado por si. (…) debatiam-se para se libertarem um do outro, porém a última coisa que poderiam fazer era deixar o outro só. Lutavam por tudo, disputavam posse do objecto mais insignificante, ficavam enfurecidos pela mais leve variação do discurso e, quando por fim ficavam enlouquecidos pelo pormenor, irrompiam na violência física, golpeando-se e arranhando-se um ou outro; o que, obviamente, os devolvia à loucura do pormenor, pois a violência física acarreta o longo e arrastado processo da justiça e da lei. A história de quem tinha feito o quê a quem tinha de ser contada, e as questões da culpa e do castigo, identificadas, embora tal nunca satisfizesse nenhum dos dois; na realidade, piorava as coisas, porque parecia prometer uma resolução que nunca chegava. Quanto mais os meandros eram particularizados, maior e mais real a discussão se tornava. Cada um deles desejava acima de tudo ser declarado o detentor da razão e que o outro fosse declarado como estando errado, mas era impossível atribuir inteiramente a responsabilidade a qualquer um deles. E acabei por compreender, concluí eu, que isso nunca poderia ser resolvido, pelo menos enquanto o objectivo fosse estabelecer a verdade, pois já não existia uma só verdade, e isso era a questão. Já não existia uma visão partilhada, ou até mesmo uma realidade partilhada. Cada qual via agora as coisas unicamente a parti da sua própria perspectiva: e existia apenas um ponto de vista.
A Contraluz, Rachel Cusk