Encontrei cabelos teus numa escova. Foste-te embora há uma semana e ainda tenho cabelos teus na escova. Que eu odiava. Como odiava encontrar os cabelos no fundo da banheira, no chão da casa, agarrado aos casacos, presos nas almofadas. Como odiava os pelos cortados no fundo da banheira, na gilette, no lavatório. Os restos das unhas presos no corta-unhas, bocados de papel higiénico agarrados às paredes da sanita. Todos aqueles restos de ti espalhados pela casa, que já não te pertenciam, mas que marcavam todos os cantos. Agora, há sombras a mais, vazios a mais, silêncio a mais. Levaste tudo. As t-shirts, as camisolas, as calças, as meias, levaste a roupa para o frio e para o quente. Levaste os cremes, o champô para cabelos frágeis e o perfume que te acabava de vestir todas as manhãs. Levaste a música indie pop rock nostálgica moderna e os livros que deixavas abertos no sofá, na mesinha de cabeceira, na secretária, na bancada da cozinha, menos na casa-de-banho, porque um sítio com merda e humidade é péssimo para os livros, dizias.
Levaste as fotografias e as nossas memórias, as nossas férias a dois, na humidade dos países asiáticos de catálogo turístico; na frieza das grandes cidades, onde perdíamos o rasto dos gestos íntimos entre multidões de gente desconhecida; na costa alentejana, onde os nossos amigos mantinham montes alentejanos perfeitamente enquadrados na paisagem, perfeitamente desenquadrados das suas vidas citadinas; nos desertos solitários, onde a areia nos rodeava e nos invadia os poros, por mais que nos declarássemos apaixonados por aquela aridez, por aquela imensidão de nada; porque era já o nada que nos cobria a nós. O cabelo, a pele, os olhos que evitámos deitar um sobre o outro, o toque que preferíamos desperdiçar em gestos secos do que pousar no corpo do outro. E naquele deserto não havia espaço para o deserto que nós éramos, porque o nosso desamor era mais imenso, mais seco, mais vivo.
Sentia nojo de ti. Agora, sinto nojo da tua ausência, que me cobre a casa toda. A tua ausência vertida em todos os cantos, em todos os pratos onde já não comes, nos copos que já não usas para beber vinho ou água, porque a cerveja preferias beber pela garrafa. Nos talheres, perfeitamente dispostos na mesa; nos tachos onde gostavas de confecionar os teus pratos inventados, que oferecias aos amigos, para compensar as férias nos montes alentejanos. E custa-me este silêncio que se faz sentir em todo o lado. O silêncio pós-festa… A voz que já não vai dizer bom dia, boa noite, jantas em casa?, se vais à rua, traz-me gengibre que quero fazer um chá bem forte para a minha garganta. Caralho para garganta, para o gengibre, para o indiano da mercearia que está sempre a perguntar por ti, porque conseguiu arranjar aquele caril de Goa que tinhas pedido. Eu não lhe respondo, não quero justificar nada, não quero contar as novelas da minha vida em primeira mão e em exclusivo na mercearia da rua. Não quero lembrar-me do vazio, das paredes vazias com a marca dos quadros que levaste. Não quero lembrar-me de como amava odiar-te.
Helena Ales Pereira