Instrumental
James Rhodes
Editora: Alfaguara
Sinopse: «Abusaram de mim aos seis anos. Internaram-me num hospital psiquiátrico. Fui viciado em drogas e álcool. Tentei suicidar-me cinco vezes. Separaram-me do meu filho. Mas não vou falar disso. Vou falar de música. Porque Bach salvou-me a vida. E eu amo a vida.» James confiava naquele homem simpático. Por que não haveria de confiar? Era seu professor na escola primária. A primeira oferta foi uma caixa de fósforos, um maravilhoso objecto de desejo para um menino de seis anos. Depois seguiram-se outros pequenos presentes, acompanhados de sorrisos, palavras de incentivo, gestos atenciosos. Depois começaram os abusos sexuais, que duraram vários anos, sem que ninguém na escola e na família se apercebesse. Quando terminaram, James afundou-se progressivamente num abismo de relações obsessivas, hospitais psiquiátricos e vícios destrutivos, uma espiral que o afastou do piano, para o qual revelara talento precoce. Mas foi um adágio de Bach, escutado durante um internamento, que o salvou de anos e anos no fundo do poço. Ao descobrir que também os génios por trás das mais sublimes composições eram homens com existências dramáticas, James encontrou nos pequenos milagres da música o reduto para sobreviver aos seus demónios pessoais. Um encontro inesperado com um desconhecido deu-lhe o impulso que James para reencontrar o seu caminho na música. Hoje é um pianista aclamado em todo o mundo. Instrumental é um testemunho apaixonado e apaixonante, negro e luminoso sobre o poder terapêutico da música e a sua capacidade de transformar as nossas vidas, mas também, e sobretudo, sobre a nossa própria capacidade de reinvenção.
OPINIÃO: Ler este livro foi toda uma experiência. A primeira publicação deste livro foi a 25 de Maio de 2015, e a primeira pergunta que me ocorreu quando pousei o livro foi: como será que tem sido a sua vida até agora? Poderão perguntar-se porque é que um intervalo relativamente pequeno poderia causar tanta comoção, mas quem decidir pegar neste livro e mergulhar nele vai perceber que dois anos é tempo suficiente para uma vida levar uma volta de 180 graus (pernas para o ar) ou mais. E a James Rhodes isso aconteceu, não raras vezes. Este é um livro de coragem, de loucura, de emoções fortes e de alguma agressão também. Ninguém fica impune. Nem James Rhodes, que certamente enfrentou uns quantos demónios para o escrever, nem o leitor, que volta e meia leva com um murro no estômago, quer queira, quer não.
Há um aviso que o autor faz, e que eu acho que merece ser reforçado: para quem já sofreu de abusos sexuais, teve tendências suicidas ou alguma experiência/internamento em alas psiquiátricas, sem dúvida que se arriscam a que uma série de gatilhos sejam activados, sem preparação, de forma crua e brutal. Uma vez, em conversa com um psiquiatra este disse: “Não importa o que vivemos no passado, os acontecimentos em si. Não podemos voltar atrás e mudar o que se passou, nem o podemos apagar da memória. O que também não podemos fazer é trazer esses acontecimentos e essas memórias constantemente para o presente. Já não interessa o que se viveu, interessa o que se faz com o que se viveu. E ninguém aguenta trazer consigo, constantemente, no presente, todo o peso do que já foi vivido.” Vocês poderão argumentar: “é mais fácil dizer do que fazer”, ou então “qual é a novidade?”. E a novidade aqui pode não ser nenhuma, mas a forma como se olha para si mesmo pode mudar. E esse é o trabalho deste livro. Parece-me que este livro era algo extremamente necessário para James Rhodes de alguma maneira também se perdoar. Porque quem sofre de abusos traz sempre consigo um sentimento de culpa enorme, mesmo que completamente estapafúrdio e injustificado (pelo menos para quem está de fora e tem dois dedos de testa).
Há passagens que vão ficar marcadas durante muito tempo. Continua-me a parecer incrível, de uma forma aterradora, como é que ninguém desconfia seriamente, nem tenta averiguar, sobre o que se passa com uma criança de cinco ou seis anos que chora porque não quer ir para a aula de ginástica – quando antes adorava – e chega a aparecer com sangue a escorrer pelas pernas. Perdoem-me o grafismo, mas como é que se fecha os olhos a estas coisas? Bem, não me cabe a mim criticar professores e pais, ou outra coisa que o valha, mas que este livro sirva de abre-olhos a quem o ler. O impacto que estas sucessivas violações tiveram na sua vida só têm descrição possível pelas suas próprias palavras. Será sempre de louvar todo o amor que o pianista demonstra pelo seu filho. Esse sentimento tão visceral que lhe provocou tanto medo como admiração.
O livro está organizado de forma curiosa. Apesar de ser uma obra autobiográfica, cada capítulo tem uma introdução biográfica de compositores e intérpretes que James Rhodes admira. Claro que, como poderia ser previsível, James foca-se tanto na genialidade dos músicos, como na sua instabilidade mental. É engraçado que ao mesmo tempo deste livro estava a ler outro, Carne, de Rosa Montero, em que a protagonista quer fazer uma exposição sobre escritores malditos – escritores que ou se suicidaram ou mataram alguém, portanto, escritores geniais que tiveram algum tipo de perturbação. Não pude deixar quase de sorrir, mesmo que tristemente, por esta coincidência. As introduções de cada capítulo poderiam figurar numa exposição de compositores malditos. Génios em composição e ao piano, um desastre socialmente e pessoalmente.
Poderia estar aqui eternamente a falar deste livro, mas penso que basta resumir que esta é uma leitura urgente, se bem que com consequências imprevisíveis. Terá um impacto diferente para cada pessoa e até poderá afectar nervos diferentes consoante a profissão. James Rhodes não se fez de rogado a criticar a rigidez que normalmente se associa à música clássica, e os últimos capítulos servem precisamente para marcar posição em relação a isso mesmo. James não vê problema nenhum em ir confortavelmente de sapatilhas para uma performance, ou em falar com o público entre músicas: coisa impensável nas performances clássicas. Termino este texto com uma nota pessoal: um adágio de Bach salvou James Rhodes, comigo, numa fase difícil, lembro-me que foi a clássica Moonlight Sonata de Beethoven. E é verdade o que Rhodes diz, a música salva pessoas. Para quem é mais resistente à música clássica, se calhar também está na hora de lhe dar uma nova oportunidade 🙂