© Vera Marmelo/ Culturgest |
O Grande Auditório da Culturgest, em Lisboa, estava bem composto, para receber Gabriel Ferrandini, o seu convidado alemão, Alexander Von Schlippenbach, e os restantes músicos. Desmontar a música de Thelonious Monk e subverter o Free jazz mais canónico eram as intenções anunciadas. Mas, se os Três Mosqueteiros eram quatro, o quarteto fez-se pentágono, com a parte final do concerto enriquecida por um convidado-surpresa.
Por João Morales
Na antecâmara deste concerto está todo um processo de reaprendizagem pessoal, de investigação sonora, que Gabriel Ferrandini já explicou em algumas entrevistas, processo esse que foi habitado por diferentes formações, incluindo o trio com Pedro Sousa (saxofone tenor) e Hernâni Faustino (contrabaixo) com quem gravou o álbum Volúpias. E é este ´disco que serve de ponto de partida, acrescido de um convidado muito especial, Alexander Von Schlippenbach.
A noite começa com o histórico pianista alemão (Von Schlippenbach criou na década de 60 a Globe Unity Orchestra, por onde passaram os maiores nomes da improvisação alemã – e não só – enquanto se colocavam em lume pouco brando todas as concepções pré-adquiridas para a composição orquestral). A solo, calmo, metódico, demonstrando a contenção de quem conhece demasiado bem os caminhos da improvisação para deixar que a chama se precipite.
Aproveitando até os espaços em branco, a conjuntura colectiva vai ganhando corpo e os restantes músicos vão entrando neste convívio, contribuindo para o seu crescendo. O toque do baterista, americano de nascença, mas filho de um moçambicano e de uma mãe «meio brasileira, meio italiana, meia espanhola», revela-se peculiar, devedor de estéticas disseminadas pela chamada Música Improvisada. Explora padrões rítmicos, aposta em diversas abordagens à bateria ao longo de cada composição. O prolongamento do som dos pratos, a textura metálica, a brevidade com que as baquetas assentam em cada peça da bateria.
O ambiente vai acalmando, até que o tema terminar.
O segundo tema começa com Pedro Sousa a solo. Já acompanha Ferrandini há muito, gravaram conjuntamente com Thurston Moore (ex-Sonic youth), e é um dos nomes mais importantes da nova vaga de improvisadores portugueses.
Divaga com um sopro seguro, mesclando instantes já compostos, com outros alinhados na sua cabeça, outros ainda gerados no momento. Os comparsas juntam-se e a consolidação dos quatro é evidente. Hernâni Faustino é um experiente músico, ligado a diversas facetas do Jazz em Portugal há muitos anos, seguidor dos grandes nomes, e já tocou com músicos como John Butcher, Carlos Zíngaro, Paal-Nilssen-LOve, Taylor Ho Bynum ou Mats Gustafsson.
Seguindo a mesma lógica, foi ele quem iniciou o terceiro tema, usando o contrabaixo com arco. Ferrandini volta a demonstrar que não está disposto a fazer concessões, o grupo levanta âncora e denuncia os ecos de um Free Jazz algo mais musculado – o que deixa Alexander Von Schlippenbach completamente em casa, no seu habitat natural, traçando caminhos com as suas linhas seguras, apenas aos ouvidos mais desatentos em segundo plano. A orgânica salienta a relação entre Pedro Sousa e Hernâni Faustino, com o convidado alemão a pontuar, fazendo uso de um ritmo muito seu que não passa pelo be bop ou pelo swing, mas não deixa de ter uma componente de dança de salão. E o nosso Gabriel a completar este quarteto de executantes, com mestria, elegância, discrição e uma personalidade bem vincada pela qual tem perorado (em algumas passagens a fazer lembrar bateristas menos ortodoxos, como o também alemão Paul Lovens, ou o inglês Tony Oxley, citando dois gigantes que tocaram, justamente, com Alexander Von Schlippenbach).
No final de um quarto tema, iniciado justamente por si, na lógica dos anteriores, Ferrandini dirigiu-se ao público, apresentou os seus comparsas, explicou que tínhamos estado a escutar incursões pelo reportório de Thelonious Monk e trouxe-nos uma enorme surpresa. Havia mais um convidado, “the one and and only Peter Evans”, como lhe chamou, desencadeando a euforia na plateia.
E, verdade seja dita, este último tema, com cerca de 15/ 20 minutos (num concerto de aproximadamente 75), em que Evans rapidamente tomou conta das atenções – e das direcções – foi uma experiência fantástica, dada a invulgar qualidade do trompetista. Ora mais lentos, ora mais rápidos, lá nos guiaram os cinco numa demonstração de contemporaneidade descomplexada.
Evans é hoje um dos grandes músicos da actualidade, experimentando, desafiando os limites do seu instrumento, pondo em causa os sons que habitualmente escutamos. A dada altura, quem fechasse os olhos ouviria sem grande dificuldade uma flauta asiática, apoiada numa técnica exímia de respiração que permitia frases extensas, mas com diversas oscilações e variantes. Contudo, era o jovem Evans quem nos espantava com o seu trompete, com o seu fôlego, ritmo, criatividade e capacidade de aventura, oferendo-nos uma das mais espantosas versões de “’Round Midnight” de que tenho memória. Monk novamente, portanto.
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