A Cozinha Canibal
Roland Topor (tradução de Júlio Henriques)
Antígona
128 págs
10 euros
Se a época natalícia é propícia à abundância culinária, nada como variar: «Ponha as sobras de anão numa panela cheia de água a ferver. Tempere com sal e deixe cozer lentamente durante cerca de três horas. Na altura de servir, dilua seis gemas de ovo num pouco de cozedura suficientemente amornada e junte-o à sopa com uma porção de manteiga fresca ou um pouco de natas.
Se o anão que escolheu for muito pequeno, pode acudir a isso juntando duas batatas»
A receita que acabam de ler faz parte de uma das grandes surpresas editoriais de 2019, o regresso (agora em edição de bolso) de um dos mais fantásticos livros de humor negro, e talvez o título mais icónico o do seu autor. A Cozinha Canibal, escrito por Roland Topor (1938-1997) e enriquecido com ilustrações suas.
Pintor, desenhador, romancista, escritor de difícil classificação, oferece-nos nesta obra – merecidamente devedora da influência surrealista – uma selecção de receitas para preparar corpos humanos – ou partes deles – receituário decorado com magníficos desenhos e um design que evoca os tempos do cabaret, dos espectáculos em bares, dos programas de variedades e boémia alucinante. A pontuar estes saberes de um Pantagruel antropófago, encontramos boutades como o poema “A Cabeça do Patrão”, apócrifos títulos de imprensa e momentos de sapiência antiga (como “o coninhas serve-se com um bocadinho de óleo e um fiozinho de azeite” ou “a viúva degusta-se em começo de decomposição, acompanhada de uma porção igual de recheio e de guarnição”).
A provocação deste parisiense descendente de polacos (cujo romance O Inquilino deu origem ao filme homónimo de Roman Polansky, em 1976) é uma delirante derivação do histórico livro de Johanthan Swift, Uma Modesta Proposta, onde sugere que os pobres vendam os filhos para os rios se banquetearem com eles (o título original prossegue: “para prevenir que, na Irlanda, as crianças dos pobres sejam um fardo para os pais ou para o país, e para as tornar benéficas para a República”).
Uma delícia a cada página, entre Bochechas do Chefe em Canapé, Fígado de Homem Normal, Picadinho de Milionário com Pão Ralado, Sobras de Automobilista em Fricassé, Múmia em Salada ou Conviva Açucarado.
João Morales