Opinião: Lá Onde o Vento Chora, de Delia Owens

Lá Onde o Vento Chora

Lá Onde o Vento Chora
Delia Owens

Editora: Porto Editora

É engraçado como algumas histórias chegam até nós. A verdade é que foi preciso mudar-me para o outro lado do oceano para ler este livro. E nem sequer o li em inglês. Esta foi uma das minhas escolhas impulsivas quando me deparei com a decisão de ter de escolher apenas três livros. Ainda assim, demorei a pegar nele. Parecia que quanto mais elogios sobre ele lia, quanto mais a Amazon mo recomendava, mais eu ganhava resistência em lê-lo.

Já vos aconteceu algo parecido? Verem um livro a ser tão falado que ao contrário do esperado a curiosidade baixa em vez de aumentar? É um fenómeno um pouco estranho, admito, porém também defendo que são os livros que escolhem quando devem ser lidos. Há coisa de um mês, Lá Onde o Vento Chora pegou-me pela entranhas. 

Lembram-se do meu último post sobre a vontade e a resistência de voltar a escrever? As emoções evocadas por esse processo? A leitura deste livro foi muito semelhante. Provocou-me uma espécie de desconforto, incitando-me ao mesmo tempo a continuar e a “não fechar os olhos” à história. Quando li que este era o primeiro romance de Delia Owens, não quis acreditar.

No entanto, dada a sua biografia, a  maturidade gritante e o nível de consciência primeva passou a fazer mais de sentido. Entrar nesta leitura tem o perigo de nos sentirmos a mergulhar num universo tão visceral que é fácil perdermo-nos em emoções arrebatadoras. Quantos de nós nunca se sentiram completamente fora do seu habitat natural, desenquadrados num mundo cujas regras nem sempre são compreensíveis e que avança sem nos pedir autorização, evoluindo independentemente do nosso querer e da nossa limitada percepção ou compreensão? 

O caminho que fazemos com Kya é este. Uma miúda que cresce longe do que é considerado “a vida normal”, numa pequena casa num pântano, com uma família disfuncional (o pai bate na mãe e nos irmãos e só não lhe bate a ela porque ainda não calhou) que vai desaparecendo aos poucos. Cada um, começando pela mãe e depois pelos irmãos, saem pela porta fora sem nunca mais voltarem. Kya espera todos os dias no alpendre da casa pelo regresso da mãe, mas todos sabemos como é que esta parte da história acaba, certo?

Não, não tanto assim, mas deixo isso para vocês descobrirem quando lerem o livro. Não obstante, Kya tem de aprender a sobreviver, a subsistir, a crescer num isolamento que só peca por os seres humanos não serem tão bons companheiros como a mãe natureza e os seus animais. A interação de Kya com outras pessoas vai ensinando-a que não há lugar para ela em quase lado nenhum senão no pântano. Ainda assim quem é que aguenta uma vida inteira de solidão humana depois de já ter sentido um pouco do poder de gostar de alguém? 

Do desaparecimento da sua família à sua vida adulta passam vários capítulos. Durante esses capítulos somos quase levados a crer que o livro é sobre a morte misteriosa que aconteceu na povoação, porém todos sentimos a verdade a pulsar nas nossas veias. Tem muito mais a ver com o íntimo do ser humano do que com um mero mistério.

E Delia Owens foi por demais inteligente a montar a narrativa. A escritora envolve-nos nas suas descrições da natureza, força-nos a olhar e a sentir tudo de forma genuína e sem filtros, com calma e paciência. Obriga-nos a compreender a íntima relação perdida dos ser humano com o universo e a sua natureza selvagem. E quando nos esquecemos e não respeitamos, as consequências conseguem ser brutais. A incompreensão e a intolerância são os dois ingredientes que fazem deste livro o sucesso que ele tem.

Dito isto, Lá Onde o Vento Chora foi uma bela surpresa. Não sinto que foi um dos melhores livros da minha vida, mas sem dúvida foi uma leitura que me tocou em sítios muito familiares. Comoveu-me, enfureceu-me, fez-me rir e quase chorar, mas mais importante ainda surpreendeu-me com o nível de profundidade a que ainda conseguimos ir às origens. Ao mundo em que aprendizagem, comércio, relações pessoais e sobrevivência têm como base o instinto e a confiança inocente da partilha. E tal como já tinha sido descrito num dos textos mais antigos de sempre, a bíblia, o acordar para a traição pode ter consequências tremendas e fatais. Gostei bastante e recomendo. 

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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