Passar a montanha, por Helena Ales Pereira

Ilha de Santo Antão

Texto e fotografias por Helena Ales Pereira

Passar a montanha

Os passos ressoam na pedra, na terra, nas folhas caídas das árvores. Os pés, incansáveis, que sobem e descem a montanha, os braços e as cabeças carregando banana, cana, batata, estrume. A fruta esquecida no chão, alimentando os animais da noite, como pequenos ratos que confundem veneno com amêndoa e acabam mortos na beira de um caminho, ou ainda meio grogues na boca de um cão que brincará com esse ser quase inanimado até ele definhar de vez.

A gente que sobe e desce a montanha, porque é assim que se vive em Santo Antão, as mentes e as almas carregando ausências, saudades, mortes demasiado precoces, uma gravidez não planeada, um nascimento há muito desejado, os sonhos de uma criança, as recordações de um velho. 

O vento ecoa nos ouvidos desprotegidos do frio da manhã e faz-se ouvir nas folhas das bananeiras, nas espigas do milho, nos troncos despojados das papaeiras, estes restos de vida mortos de pé, numa terra onde os homens morrem de todas as maneiras, não raras vezes de suicídio. A mente quer divagar mas encontra limites nas paredes duras da montanha e nem mesmo a riqueza deste verde, albergue de tantas plantas, é suficiente para apaziguar as angústias que consomem a alma por dentro, com a mesma rapidez com que o vento e o sol curtem a pele, secando-a para uma idade não condizente com a marcada num pedaço de papel de um registo.

Os nomes que se perdem na memória, as histórias reais de descendências perdidas no tempo de outros tempos misturadas com as histórias irreais da ilha, os seres do sobrenatural que acompanham os passos das gentes na noite. O agitar das folhas da cana que parece transformar-se nas passadas ligeiras de alguém a sussurrar nos ouvidos de um distraído, um tronco velho e seco que range como uma porta velha numa casa esquecida na encosta da montanha, vazia de alegria e tristeza.

As folhas largas de bananeira que se agitam na noite são vozes de pessoas que chamam a gente da montanha para a escuridão das lendas. E é preciso ter na ponta da língua o saber para lidar com estes seres que, não bastando esconderem-se na montanha, procuram também refúgio dentro das casas, debaixo das camas. Vozes mais velhas confessam que não conhecem tais lendas, mas é o medo de as evocar, e com isso despertá-las, que as fazem negar tais mitos cabo-verdianos e não o privilégio de terem crescido na ignorância.

Ilha de Santo Antão

Bale a cabra, muge a vaca, ronca o porco, ladra o cão, canta o grilo, bebe o homem. O grogue escorre pela garganta e aquece o vazio que se cola por dentro da pele, amolecendo as carnes, enrijecendo a alma. O álcool serve as festas e serve o luto. É companheiro de batizados e casamentos, das conversas que se arrastam do sol para a lua, dos quartos vazios, das mesas de um único prato.

A calda que se espreme da cana mistura-se com laranja ou limão, o ligeiramente ácido para cortar todo aquele açúcar que se prefere deixar repousar, levar ao alambique e transformar em grogue, porque o açúcar que adoça a vida parece uma toalha que cobre a madeira estragada de uma mesa: disfarça, mas não consegue mentir quando destapada.

Os carros torneiam a montanha num vai e vem. A fuga diante dos olhos, numa volta à ilha sem fim, na beira de estrada junto ao mar que parece prolongar a sensação infinita e irónica desta imensidão, encurralada pela água que a cerca. A liberdade tem apenas o espaço de um quarto fechado, limitada por aquilo que nos dá a sensação de infinito: o mar. Liberdade e prisão numa imensidão incapaz de caber em todos os olhos da ilha.

Os risos, os choros, as mulheres, os homens, as crianças, os animais, as casas outrora cheias, agora cheias de nada, abertas apenas para dias de festa em férias gozadas por quem conseguiu perceber a prisão que a montanha negoceia com o mar, sempre que alguém nasce. Inventa uma lenda para que não se arrisquem muito na montanha; inventa outra para que não se arrisquem demasiado no mar que bate, imenso, contra a rocha, transformando-a numa bátega de areia negra, a cor dos homens e a cor da alma.

Alguns dias por ano, as casas renascem, as mesas enchem-se de comida, e os quartos, de corpos habituados a outros confortos. Nesses breves instantes, Santo Antão volta ao passado das famílias grandes e das casas que descansarão sozinhas quando o vento voltar a soprar mais frio. A luz apaga-se. E a montanha assiste a tudo, dominante.

Ilha de Santo Antão
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Eva Duarte
Eva Duarte
3 anos atrás

maravilhoso, ja li variasvezes

  • Sobre

    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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