Krabat – O Moinho do Feiticeiro
Otfried Preussler (tradução de Gabriela Fragoso)
Sextante Editora
256 págs
16,60 euros
por João Morales
«Na véspera de Ano Novo os rapazes foram para a cama mais cedo do que era habitual. O Mestre não tinha aparecido durante todo o dia. Talvez estivesse na Câmara Negra, trancado lá dentro, como tantas vezes fazia… ou talvez tivesse ido dar uma volta no seu trenó puxado por cavalos. Ninguém sentia a sua falta, ninguém falava dele.
Os rapazes tinham-se enfiado nos enxergões, em silêncio, logo depois do jantar. “Boa noite”, disse Krabat, como fazia todas as noites, porque era assim que um aprendiz devia proceder.
Hoje, porém, os companheiros pareceram levar-lhe isso a mal.
– Cala o bico! – assanhou-se Petar, e Lyschko atirou-lhe com um sapato.
– Ouve lá! – exclamou Krabat, levantando-se de um pulo.
– Calminha aí! Ainda se deve poder desejar boa noite, não?
Voou novo sapato que lhe passou a roçar o ombro, o terceiro foi intercetado por Tonda.
– Deixem o miúdo em paz! – ordenou ele. – Esta noite também há-de passar.
Depois, voltou-se para Krabat:
– É melhor que te deites, rapaz, e que fiques quieto.
Krabat obedecu. Deixou que Tonda o tapasse e lhe pusesse a mão na testa.
– Dorme bem, Krabat… e entra bem no novo ano!»
Quando a história começa, quase um ano antes, entre o Ano Novo e o Dia de Reis, Krabat era um orfão de 14 anos, mais um desgraçado a quem estava destinada a esmola e a permanente mendicidade, não fora ir parar a Koselbruch e a uma estranha azenha, na Água Negra. Acaba por engrossar as fileiras dos aprendizes de Magia Negra do moleiro, mas não sem rapidamente entender que o domínio de artes superiores, a certeza das refeições ou a companhia dos restantes aprendizes implicam um preço. Que pode mesmo atingir a vida por valor – a sua e a sua amada.
Krabat – O Moinho do Feiticeiro foi uma boa surpresa do mercado editorial português, em 2018. Escrito pelo alemão Otfried Preussler (1923-2013), publicado originalmente em 1971, tem por cenário a Sorábia, região do Norte da Alemanha, duramente conflitos bélicos na primeira metade do séc. XVIII.
O ponto de partida mais evidente é o confronto entre o Bem e o Mal, embora no caso deste Mestre algumas referências surjam truncadas, baralhando as coordenadas que alicerçam o imaginário ancestral ocidental. Por exemplo, veja-se a alusão à Páscoa, como sendo a altura do ano em que o Mestre obtém mais poder. Se nos lembrarmos que é na Páscoa que celebramos renascimento de Cristo (e cedo intuímos que os valores do Mestre não serão exactamente os mesmo) aumenta a estranheza.
Por outro lado, na literatura clássica alemã (ou, pelo menos, em alguns títulos que hoje integram com facilidade essa categoria), esta relação de subserviência, de contrato com o Desconhecido em prol da ganância e o desejo de bem-estar, conta com alguns exemplos muito fortes. Sem sequer falarmos das fábulas (onde alguns episódios criados pelos irmãos Grimmm teriam facilmente cabimento) lembremos apenas Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), mas também A História Fabulosa de Peter Schlemihl, escrito por Adelbert von Chamisso (1781-1838), narrativa espantosa sobre um homem que abdica da sua sombra sem perceber a importância daquilo que todos temos (livro que, em certa medida, haveria de inspirar O Homem sem Sombra, de António Torrado).
A narrativa é habitada por inúmeros simbolismos (como bem explica o óptimo prefácio da tradutora, Gabriela Fragoso), explorando com mestria um registo de literatura adequado a um público juvenil, que nem sempre consegue encontrar textos apelativos com este equilíbrio entre uma história dinâmica e repleta de acção e um conjunto de elementos que permitem fazer a ponte para outro tipo de conhecimentos – como a questão da numerologia, as implicações do Sábado ou a dimensão profética dos sonhos.
Os discípulos do moleiro são doze, o que pode remeter facilmente para os meses do ano, numa construção que se apoa por diversas vezes na passagem e na medição do tempo. Mas não é menos verdade que, num texto onde os ensinamentos e a doutrina são continuamente referidos (há mesmo alusões a um livro, de onde emanará o saber, se correctamente lido e entendido) se possa duvidar da coincidência com o número de convivas que acompanhou Jesus Cristo na Última ceia…
O texto é tão rico e propenso a leituras atentas – ou em diferentes idades, talvez – que até permite descortinar algumas considerações de carácter socio-político, facilmente transponíveis para algumas críticas tão actuais, sobre a forma como o Sistema (e só para este termo seria necessário um outro texto) tem a capacidade de integrar as vozes e críticas e torná-las num apoio insuspeito, num maquiavélico bailado ideológico:
« – Quem pode desabafar uma vez no ano – continuou Krabat –, mais facilmente aceita que o submetam nos restantes meses. E verás que aqui, na Azenha do Koselbruch, isso já é muito.»