Produzido na Bélgica e nomeado para o óscar de melhor filme estrangeiro deste ano, Ciclo Interrompido é um filme em que nunca está tudo bem. Cronologicamente, sim, a história começa bem: há o momento boy meets girl – Didier, um músico bluegrass (o “country na sua forma mais pura”), conhece Elise, uma tatuadora – e o desenvolvimento de uma relação saudável e apaixonada, assente no gosto partilhado pela cultura norte-americana e num certo desequilíbrio de personalidades que acaba por se complementar (o amor tem destas coisas). Os dois têm uma grande diferença básica: Didier é um ateu convicto e palavroso, enquanto Elise é religiosa e espiritual. Nada disto é fonte de problemas para a sua relação, claro, até o começar a ser. A forma algo abrupta como este confronto entra no filme é uma das poucas críticas a fazer.
O casal encontra dois grandes motivos de felicidade. O primeiro é a banda de bluegrass de Didier e seus amigos, onde Elise se integra como uma peça chave que faltava. O segundo é Maybelle, a filha que entretanto completa a família. O estado de felicidade em que se encontram é, no entanto, rapidamente interrompido quando Maybelle adoece com cancro e tem que ser internada. Um dos pontos mais fortes do filme é, obviamente, o confronto dos pais com a doença e perda de um filho, mas não é o ponto principal: o filme nunca se afasta da relação entre Didier e Elise.
Assistimos, principalmente, ao conjunto de forças que atraem ou afastam o casal, sejam elas interiores ou exteriores a eles próprios, e é a coerência com esse propósito que torna o filme certeiro e eficaz. Além disso, existe uma honestidade (como outro nome para um realismo que foge às convenções) no que o filme mostra: se alguns acontecimentos da narrativa podem ser óbvios, os personagens, com a sua evolução e as suas reacções, nunca o são.
Mas nada disto é apresentado cronologicamente. Vemos logo de início uma cena com a filha internada no hospital, e só a meio assistimos à época do seu nascimento, por exemplo. Por isso digo no início do texto que, neste filme, nunca está tudo bem. Esta forma narrativa serve como uma camada adicional de interesse – não tanto para truques de enredo ou relações de significado entre as cenas, mas, principalmente, para que adquiram uma tensão dramática que contamina todo o filme.
Para isso também contribui, e muito, o trabalho do realizador e dos actores, que são revelações (não sendo estreantes, são aqui revelados ao mundo, e ainda bem). Felix van Groeningen tem um trabalho sereno, mas preciso e eficaz, nomeadamente na forma com aproveita as excelentes interpretações dos dois actores principais. Johan Heldenbergh, no papel de Didier, e Veerle Baetens, no de Elise, mostram-se tão capazes nas maiores subtilezas como nos momentos mais emotivos.
Para terminar, há que falar também de um dos elementos essenciais do filme: a música. Especialmente a música bluegrass, ouvida não só como inspiração principal na banda sonora, mas principalmente nas várias cenas em que assistimos a actuações da banda, que vão pontuando o filme e acrescentando-lhe sentido.
Embora o possa parecer, por não utilizar quaisquer subterfúgios que o afastem do realismo, Ciclo Interrompido não é um filme “cru”. É duro e emotivo, sim, mas também é especialmente sensível e, apesar de tudo, belo. Não é um feel good movie, mas tem um apelo universal e comovente.
Emanuel Madalena