Sala com vista, de Helena Ales Pereira

Sala com vista

Casa com vista

A janela da sala dava para a avenida mais movimentada da cidade. Um corrupio de pessoas, carros, motos, autocarros, camiões do lixo e vozes. As das pessoas, de dia, e as dos cães que rompiam de dia ou de noite, independentemente da hora, porque aos cãos tanto se lhes dá se tiveram de dar sinal de alguma coisa que os ameace ou perturbe.

Do outro lado da rua, a casa. Um prédio de três andares, quase sempre em silêncio. Varandas compostas com móveis modernos e uma absoluta quietude, excepto num andar, o último. Ali via o casal que, algumas vezes, assomava àquela varanda e se deixava ver, mais junto ou mais afastado, a dois ou um de cada vez. Ficava a olhá-los e a imaginar as conversas que teriam naqueles momentos fugazes que o ocaso poderia trazer, naquela hora e naquela luz que dá para as pessoas fazerem divagações sobre as suas vidas, sobre as suas próprias decisões, motivadas pelo momento contemplativo.

Estariam juntos há muitos anos, porque aquela hora do dia, que inspira abraços e promessas, raras vezes os aproximava de uma forma íntima e mesmo quando isso acontecia, havia naquele par um cansaço, uma normalidade que enche a vida que se partilha há muito. Imaginava as conversas sobre os filhos – se os havia, porque nunca os tinha visto naquela varanda –, o dia-a-dia do trabalho, da casa, dos conhecidos, da família, da rua, talvez de um livro que se andasse a ler ou de um filme que se teria visto na noite anterior ou se agendava para ver já há algum tempo.

A visão do casal, e da sua rotina, trazia, naqueles dias em que sentia mais a sua própria vida, uma inveja por não partilhar o mesmo com alguém, uma solidão que se colava mais à pele quando se toma consciência que independência pode também significar o estar-se só. Nos dias que ventava mais ou o sol se deixava esconder pelas nuvens mais escuras dos dias invernosos, o casal raramente assomava à janela e isso causava-lhe mais inveja do que o normal.

Imaginava-os a partilhar um sofá, uma manta a cobrir as pernas; ele talvez a ler um jornal ou um livro, ela dedicada a um livro ou a uma daquelas actividades caseiras que algumas mulheres gostam de experimentar, como fazer malha. O ruído de uma casa habitada por um casal tornaria o seu próprio silêncio ainda mais ensurdecedor, aquele movimento constante só lhe daria para notar como a sua própria casa era tão quieta.

Em casa, olharia para o seu computador e encheria a cabeça com as imagens de uma série ou de palavras de algum artigo que estivesse a ler na Internet, uma distração que fizesse esquecer a sua própria existência, mais vazia, sem histórias a dois num final de dia numa varanda com vista para a rua. Lá fora, a avenida continuaria a sua vida de sempre, enchendo-se de ruídos e de vozes, até que o sol levasse tudo com ele. 

Helena Ales Pereira

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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