Uma Palavra Começada por N, de noiserv
“Eram 27 metros de salto mas parou, meio picotado neste andar, neutro, sem tempo, por arrasto, sempre rente ao chão.”
Cada vez que noiserv lança um disco sabemos que, mais do que um conjunto de músicas, o que nos chega às mãos é uma autêntica composição artística em que sonoridade, estética e lirismo se conjugam de forma a que o todo não seja a soma das partes, mas antes uma espécie de ser vivo a viver as suas diferentes fases de metamorfose.
Eram dias mortos numa luta de querer ser sempre
Uma palavra começada por N, a meu ver, marca um ponto de destaque no caminho que David Santos tem percorrido na música. Entre o projecto noiserv e You Can’t Win Charlie Brown, o conceptualismo e a engenharia musical têm sido a grande imagem de marca do artista português. Cada disco de noiserv tem-se revelado uma partilha íntima e que de alguma forma se liga a uma manifestação necessária do universo interior e complexo da sua mente. Conhecido como o homem-orquestra, as suas criações evocam fascínio, empatia, alegria, mas também melancolia.
Eram 27 partes de um olhar, aquele que tu nunca vais querer parar
Neste disco, não só temos todas essas componentes como também é fácil sentir uma maior aproximação de um lado talvez ainda mais vulnerável e pessoal do artista português. Depois de em 00:00:00:00 termos voltado a ouvir noiserv em português (que só tinha acontecido numa canção – Palco do Tempo), eis que temos um registo completo na língua de camões. E porque é que destaco este aspecto? Porque, na minha opinião, existe uma maior intensidade emotiva quando noiserv canta em português.
Porque nunca vês o que nunca te dói
O seu timbre associado à sua sonoridade faz com que as frases mais simples sejam sentidas no nosso âmago que nem pedras num charco. Por outro lado, esta combinação também acontece no sentido oposto, fazendo com que declarações mais intensas sejam recebidas de forma mais leve. Esta dualidade entre a luz e as sombras de um espírito inquieto, numa demanda que cada um forma na sua cabeça, é enriquecida pela exploração de diferentes paisagens instrumentais que têm sempre algo em comum – uma espécie de omnipresença e omnisciência estruturalmente rica que une todos os temas.
Mas é o céu que me desfaz, aperta um pouco ao respirar
Honestamente acho que é o melhor disco de noiserv até ao momento. Não digo isto de ânimo leve, dado o significado especial que tem A.V.O, mas acho que é preciso coragem para dar o passo de se mudar não só a língua a que os fãs estão habituados a ouvir, como também a nível visual acho que foi feito um trabalho extraordinário. A colaboração com a Casota Collective na produção dos vídeos de cada uma das músicas do disco resultou muito bem e a imagética explorada reforça este contraste entre leveza e intensidade, desorganização e concentração emocionais. Para além disso, o facto de terem sido lançados com um mês de intervalo até à saída do disco, revelou-se uma estratégia vencedora.
Eu já me remendo por dentro, sem tocar
Acho que a única coisa que ainda me aperta o coração é não ter tido a oportunidade de ver nenhuns dos espectáculos esgotados. Ainda me lembro que quando o disco saiu, ainda eu estava a viver nos Estados Unidos, acordei antes das 7h da manhã e logo depois do yoga liguei o Spotify para finalmente ouvir a obra completa oficialmente cá fora e sorri. Um sorriso que emergiu de uma espécie de luto (que eu sentia devido a circunstâncias da minha vida) que se viu finalmente manifestado numa obra sonora a que me podia agarrar, assim libertando-me. Obrigada, noiserv.
Não estar é perto de ser o que não fui.
Quando ouço alguém a descrever uma experiência da Ayahuasca, em que descrevem que parece que se acede a um plano superior da sua realidade, eu lembro-me sempre de noiserv. É o que sinto sempre que o ouço. É difícil ouvir sem ser de olhos fechados, e parece que cada vibração ressoa com um pensamento e célula diferentes. Olha, não consigo explicar. Sou fã, mesmo, e este teu post só fez que vá agora ouvir noiserv hoje. Sempre um bom reminder!
Olha que descrição tão bela! 🙂