É com muito gosto que vos apresento a segunda entrevista feita ao David Soares para o blog Morrighan. Desde que o entrevistei pela última vez, muito já se passou e há pouco tempo o autor anunciou que tinha um novo projecto em mãos. Fiquemos então com o balanço dos últimos dois anos de David Soares e com algumas pistas para o que o futuro nos espera em relação ao mesmo. (Podem ler a primeira entrevista AQUI)
1 – Já passaram quase dois anos quando deste a primeira entrevista ao blog Morrighan. Entretanto fizeste mais algumas publicações, incluindo um álbum de BD. Decorreu bastante tempo desde que editaste Banda Desenhada em Portugal pela última vez. Que feedback tens tido do “É de Noite que Faço as Perguntas”?
Desde a entrevista anterior escrevi “A Luz Miserável”, um livro de contos, “Batalha”, um romance, e “É de Noite Que Faço as Perguntas” e “O Pequeno Deus Cego”, dois álbuns de banda desenhada. Todos tiveram excelentes críticas, o que consiste para mim uma grande alegria.
O álbum “É de Noite Que Faço as Perguntas” tem surpreendido quem acreditava ser impossível escrever uma historia autoral e pertinente sob convite institucional: ora, eu como não sabia que era impossível, meti mãos-à-obra e fi-lo. À superfície é uma ficção passada no período da primeira república portuguesa, mas observado por outro ponto de vista percebe-se que também é um libelo anti-autoritário. É o meu contributo de bom republicanismo para alumiar este tempo autoritário em que vivemos, no qual a Hungria vive uma Primavera fascista e a Bielorrússia já “nacionalizou” a Internet.
Pode achar-se que a distância geográfica e cultural que separa a Europa “civilizada” destes países do Leste é suficiente para não levarmos estas notícias a sério, mas lembro que as duas guerras mundiais do século passado ocorreram por culpa de sismografias sociais resultantes do Leste. Para a maioria dos indivíduos, o autoritarismo é apenas algo conhecido dos filmes de Hollywood, mas se falarem com os vossos avós certamente que eles vos contarão experiências pessoais passadas sob a égide autoritarista. Estes fenómenos ocorrem em qualquer altura, quanto mais em momentos de “crise” – cuja ameaça abstracta é sempre uma óptima desculpa para se instituírem as mais draconianas condições de vida. Nesse sentido, se “É de Noite Que Faço as Perguntas”, cujo final é negríssimo, servir para esclarecer, inspirar e ensinar uma única pessoa já será excelente. Existe muita informação, mas pouco conhecimento, o que é paradoxal, por essa razão empreguei agora a palavra “ensinar” com propriedade: hoje é quase um palavrão, mas, de facto, urge recuperá-la e ao seu sentido; em principal, por quem conhece os assuntos sobre os quais se digna a falar ou a escrever.
2 – Como é que vês o estado da BD em Portugal neste momento?
Acho que o mercado português de edição de banda desenhada está pior do que estava há dez anos atrás, sinceramente. Em 2000, quando criei a minha chancela Círculo de Abuso para editar banda desenhada e prosa minhas e de outros autores, existia uma facilidade enorme em distribuir os livros nas grandes superfícies comerciais e em fazê-los chegar aos grandes meios de comunicação, mas hoje os pequenos editores portugueses de banda desenhada, cujo volume anual de publicações e números de tiragens são quase residuais quanto comparados com os das grandes editoras, têm alguma dificuldade em mover-se. É claro que os leitores que gostam de banda desenhada e estão atentos sabem sempre como comprar os livros que desejam, em última análise pela Internet, mas o interregno dourado que se viveu entre 2000 e 2004 não se repetirá tão cedo. Os autores que, na verdade, desejam trabalhar profissionalmente e construir uma carreira visível, continuam a investir na estratégia de publicarem no mercado estrangeiro, que, quando existe talento e vontade de trabalhar, é sempre uma boa estratégia; embora mais fácil de pôr em prática por quem desenha do que por quem escreve. A banda desenhada portuguesa continua, pois, a orbitar um mercado português pequeno e pouco atractivo, o que, felizmente, não tem estorvado a publicação de livros de grande qualidade e o aparecimento de autores muitíssimo interessantes.
3 – Fala-nos um pouco sobre ‘Batalha’, o teu mais recente romance.
É um romance sobre o fenómeno religioso, sobre arte e sobre linguagem. Esses são os temas principais, que procurei observar sob diversos pontos de vista. “Batalha” é, também, um romance alegórico, ocultista, erudito, desenvergonhadamente polissémico e que me orgulha intensamente. Contém passagens que, na minha opinião, concentram tudo aquilo que eu sempre quis dizer: o trecho em que a ratazana Batalha diz a Pedranceiro, o gigante feito de pedra de ançã – que deseja ser mais como os homens e menos como as pedras – que ele será mais homem e menos pedra se ficar com o cão é, para já, aquele que eu considero o meu melhor momento ficcional.
4 – O que te levou a utilizar os animais como protagonistas neste livro?
Todos os meus romances inscrevem-se no mesmo universo autoral, cujos temas basilares são o fantástico, o oculto, a história. O romance “Batalha” faz parte dessa cosmogonia, mas, ao apresentar animais como protagonistas, difere dos romances anteriores. Neste livro existe uma grande alegoria principal que vai buscar material às mitologias maçónicas e alquímicas, mas também à tradição mágica portuguesa e às nossas lendas de raiz mais popular. Falar com a voz dos animais é uma boa forma de discorrer sobre os nossos próprios assuntos, porque estabelece um distanciamento que nos faz reflectir sobre as coisas de um modo isento. A isenção é essencial para se chegar a conclusões pertinentes. A distância resultante de falar sobre o fenómeno religioso a partir da voz dos animais permitiu introduzir a minha própria voz, que, no que diz respeito à crença, é céptica. Foi uma óptima forma que encontrei de reunir essas duas vozes: a autoral e a pessoal.
Apesar de escrever romances em que o fantástico se entrosa com o oculto, o hermetismo, o mitológico, não tenho crenças nenhumas no sobrenatural, nem no religioso, nem na vida após a morte. Enquanto indivíduo, sou ateu. Mas a minha voz autoral dirige-se para esses assuntos e gosto muito de falar sobre eles. Ora, a visão da ratazana Batalha sobre a religião é distante, como a minha. Do ponto de vista científico é legítimo questionar se os animais têm religião. Está provado pela neurociência que os animais têm superstições. Nesse sentido, são parecidos connosco. Agora, para darem o passo seguinte e acreditarem numa religião, seria preciso que tivessem consciência da sua própria mortalidade, coisa que nem todas as espécies poderão ter. Aquilo que separa uma religião de outra crença partilhada é que uma religião promete sempre a salvação após a morte: sem a promessa da salvação após a morte, um sistema de crença partilhada, seja ele qual for, não é uma religião.
5 – Nos últimos dois anos, houve um Boom em termos de literatura fantástica em Portugal. São lançados cada vez mais livros deste género, acabando, por vezes, por ser mais do mesmo. Qual a tua opinião sobre a literatura fantástica em Portugal neste momento?
Estou sempre concentrado no meu trabalho, seja a escrever ou a ler, daí que preste pouquíssima atenção aos livros que vão sendo editados, sejam títulos portugueses ou estrangeiros, o que, por vezes, até poderá ser aborrecido, pois devem ter saído coisas bem interessantes, certamente. A maioria das minhas leituras, sejam livros que precise de ler para poder escrever os meus romances ou livros que escolho para recreação pessoal, são de não-ficção. Cada vez mais observo a leitura de ficção como uma perda de tempo e eu tenho, com efeito, pouquíssimo tempo livre. Por conseguinte, prefiro ler sobre história, divulgação científica, filosofia, ensaios sobre os mais variados assuntos, que são pobres no que concerne ao valor literário dos seus textos, mas que são riquíssimos em todos os outros aspectos. Quanto à pouca ficção que ainda vou lendo, escolho-a criteriosamente e, mesmo assim, tenho imensa ficção ainda por ler.
6 – Anunciaste há pouco tempo que a tua próxima obra será um livro de não-ficção em que referes o livro “Les Vampires de l’Alfama”. Há alguma coisa que possas adiantar em primeira mão ou está tudo no segredo dos deuses?
Vontade para revelar coisas sobre o meu novo livro não me falta, mas ainda é cedo para oferecer pormenores. Todavia, posso dizer que estou neste momento a cerca de quarenta páginas de acabá-lo. Será, como anunciei, um livro de não-ficção e, sim, vai abordar numa das suas partes o espectacular livro “Les Vampires de l’Alfama”. Mas de que forma e em que contexto é matéria que preciso deixar ainda por desvendar. Uma coisa eu sei e posso garantir: o livro novo vai dar que falar!
7 – O que podemos esperar do David Soares em 2012?
Para já, pode esperar-se o livro de não-ficção, que deverá sair algures no primeiro semestre do ano e será uma bomba.
Em seguida, perto do final do ano, irá ser editado mais um álbum de banda desenhada, que acabei de escrever em Novembro do ano passado e que está, neste momento, a ser desenhado. Também tenho um romance todo estruturado e começado, mas entretanto tive uma ideia diferente que quero incluir e vou, como tal, desestruturá-lo, o que é inédito no meu método de trabalho, porque quando fecho uma história, ela fica fechada. Se calhar só ficará pronto a tempo de ser editado em 2013. E, também na primeira metade de 2012, irá sair o meu primeiro livro para crianças, intitulado “O Homem Corvo”. É ilustrado com volumes pela ilustradora Ana Bossa e as suas figuras são fotografadas por Nuno Bouça, tendo como resultado final imagens que parecem verdadeiros fotogramas de um filme de animação. A Ana e o Nuno são fantásticos e “O Homem Corvo” será um objecto de afecto muito cativante.
8 – E já que na primeira entrevista não o fiz, faço agora a pergunta da praxe. O que achas do blog Morrighan?
Acho que é um bom ‘weblog’ de divulgação, sem preconceitos, escrito com inegável prazer e que sabe cativar os seus leitores. Obrigado.
Obras do autor desde a última entrevista:
Sinopse: O horror está de volta.
Nestas três histórias, David Soares (O Evangelho do Enforcado, Lisboa Triunfante, A Conspiração dos Antepassados) apresenta imagens de luz e trevas que não deixarão ninguém indiferente. Do ambiente exótico de A Sombra Sem Ninguém, passando pelos interiores claustrofóbicos de A Luz Miserável, até à extravagância macabra de Rei Assobio, prepare-se para conhecer personagens inesquecíveis, como um homem “quase” invisível, três soldados amaldiçoados e um velhote mutilado e vingativo. Do suspense ao splatterpunk, A Luz Miserável é um livro de contos provocadores, diabólicos e literários. Uma viagem vertiginosa ao lado negríssimo da imaginação.
Sinopse: Em Batalha, David Soares apresenta uma história em que os animais são protagonistas. Passado no início do século XV, Batalha é um romance sombrio, filosófico e comovente, que observa o fenómeno religioso do ponto de vista dos animais e especula sobre o que significa ser-se humano.
Batalha, a ratazana, procura por sentido, numa viagem arrojada que a levará até ao local de construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, o derradeiro projecto do mestre arquitecto Afonso Domingues. Entre o romance fantástico e a alegoria hermética, Batalha cruza, com sensibilidade e sofisticação, o encantamento das fábulas com o estilo negro do autor.
Sinopse: É de Noite Que Faço as Perguntas é uma história que parte da cronologia e dos factos históricos pertencentes ao período da primeira república portuguesa para se apresentar como uma poderosa observação sobre a vida, a política e o modo como ambas se influenciam. Mergulhado num regime autocrático, de natureza indefinida, em meados do século XX, um pai tenta recuperar o filho, caído no seio do partido, escrevendo-lhe as memórias que experimentou nos anos da primeira república: tempo em que o ideal de cidadania era a participação activa e não o recolhimento sob o jugo ditatorial. Escrito por David Soares e desenhado por Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho, Daniel da Silva e Richard Câmara, É de Noite Que Faço as Perguntas é, em simultâneo, um poético fresco de
época, um ensaio filosófico pungente e uma banda desenhada ímpar.
Excerto: «É a voz vermelha da morte que vai uivar esta noite.
A vida da pequena Sem-Olhos torna-se uma tragédia quando a mãe determina que ela seja iniciada num sangrento rito tradicional, mas ainda mais doloroso é o grande segredo da família, oculto no passado, que duas personagens misteriosas irão desmascarar. Poderá Sem-Olhos ser um pequeno deus sobre a terra? O Pequeno Deus Cego é uma história alegórica, de contornos herméticos, passada numa fabulada China ancestral. Filosófica e visceral, em simultâneo, é uma banda desenhada que irá resgatar o leitor das trevas para a luz.»
Obrigada David pela tua atenção e disponibilidade! Em breve haverá um passatempo para o livro ‘Batalha‘ do autor. Fiquem atentos!