Escritos Aleatórios #15

“Tu estavas sentado, muito direito, naquela tua pose altiva e descontraída ao mesmo tempo, a conversar com o resto do grupo. O jogo de tabuleiro que decorria começava a exaltar os ânimos e a euforia estava ao rubro. Claro que a tua postura era de alguém controlado, mas que se estava a divertir com a situação. Nunca foste espalhafatoso, mas sempre soubeste quando intervir. Eu tinha-me levantado para ir à cozinha buscar gelo e mais bebidas. O álcool começava a invadir o meu ser, a libertar-me de todas as amarras psicológicas e a lentamente deixar-me o espírito mais leve, a deixar-me mais destemida.

Com passos lentos dirigi-me ao centro da sala. Aproximar-me de ti, estando tu de costas para mim, deu-me vontade enorme de me baixar atrás de ti, de te deixar um beijo no teu pescoço descoberto, com aquele teu cheiro de homem misturado e bem combinado com perfume. Essa imagem na minha cabeça fez o meu estômago contorcer-se de prazer. O desejo consegue ser avassalador quando sentimos que algo podia ter lugar no tempo e no espaço. E, oh!, como eu te desejava! Obriguei-me a respirar fundo e segui caminho. Em vez de realizar a imagem que a minha mente tinha projectado segundos antes, sentei-me a teu lado, coloquei o gelo à nossa frente e passei as duas garrafas aos nossos amigos.

Durante mais duas ou três horas a excitação continuou. A meio da noite formámos pares e claro que nós fomos a dupla imbatível. Nem nos conhecíamos assim há tanto tempo, mas uma certa empatia surgiu automaticamente e com o tempo construímos uma amizade sólida. Eram quase três da manhã quando os nossos amigos começaram a abandonar o apartamento. Tinha-me mudado há cerca de uma semana e esta era a inauguração dita oficial. Ajudaste com os copos espalhados, as cartas soltas e os sofás desalinhados. Enquanto eu lavava a louça, e já só restávamos nós os dois, foi a tua vez de me surpreenderes.

A minha cabeça estava perdida em devaneios. O efeito do álcool tinha passado, o cansaço começava-se a instalar e eu pensava no quão grata me sentia em ter este grupo de amigos, que é mais do que uma família, e como tinha sido surpreendente e inesperado passares a fazer parte da minha vida. Precisamente quando me assaltaste o pensamento, senti umas mãos nos meus ombros em tom de massagem. Na tua voz cansada, agradeceste-me pelas horas divertidas e pediste desculpa por ter ficado ainda com tanto por limpar. Um pouco sem ar e até atrapalhada, respondi-te que o tinha feito com todo o gosto e que só esperava poder voltar a repetir.

Desliguei a torneira, ainda consciente da tua proximidade, e, sem me virar, peguei num pano e sequei as mãos. Nesse instante, perdi o contacto contigo, tiraste as tuas mãos de mim e eu senti-me desamparada por momentos. Naqueles milésimos de segundo, pensei que talvez tivesses ido buscar a tua carteira e as tuas chaves, que também tu irias agora embora, ficando eu sozinha naquele novo espaço a que passei a chamar casa. Virei-me e ali estavas tu, nem a meio metro de mim. Dei um pequeno pulo, sobressaltada, não esperava a tua presença ainda tão próxima. Encarei-te directamente e tu a olhar para mim, numa postura que exalava auto-controlo, rígidez, mas com um rosto sem expressão.

Dei por mim a dar um passo e a ficar frente-a-frente contigo. “Estás bem? O que é que se passa?”, perguntei-te eu. A tua resposta não se fez tardar, mas para mim foi como se tivesse demorado demasiado. Ouvi-te a respiração profunda a acelerar e, num murmúrio rouco e profundo, pediste-me desculpa. “Desculpa, mas …”, e viraste costas. Fiquei atónita, chocada, tentei perceber que raio se tinha passado, mas já saías porta fora.

Devagar e com as pernas bambas, dirigi-me a um dos sofás. Tinha o coração a bater tão, mas tão depressa, que sentia claramente o peito a sofrer com a força das batidas e os meus ouvidos ribombavam com o som. Foi como se tudo o que eu tinha desejado essa noite se tivesse tornado num pesadelo. Não fazia ideia do que podia ter feito de errado. Obriguei-me a reagir, levantei-me e continuei a arrumar tudo. Encontrei os óculos de Sol de uma amiga caídos perto da mesa do telefone e tomei a nota mental de ir buscar o telemóvel para a avisar.

A campainha tocou pouco depois e eu pensei “Bem, certamente já não vou precisar do telemóvel”. Abri a porta e deparei-me contigo, despenteado, atormentado. Eu sabia que ainda há pouco tempo tinhas passado por uma fase menos boa, que ainda andavas a tentar recompor-te e à tua vida. Podia ter dito alguma coisa naquele momento, mas decidi dar um passo atrás e tu entraste como se de um convite se tratasse. Da tua boca saiu “Não consigo conduzir, penso que ainda tenho demasiado álcool no sangue.” Se me tivessem dado uma chapada, não teria ficado mais surpreendida. Depois do momento insólito há minutos antes, era aquilo que tinhas para me dizer e ambos sabíamos que já tinha passado tempo suficiente para o efeito do álcool atenuar.

“Tudo bem.”, disse eu, “Podes ficar no sofá. Eu vou subir e descansar, estou exausta.”, e tu mal conseguias olhar para mim. Subi, tomei um duche, vesti o pijama e no meio disto tudo só conseguia pensar em ti, na minha sala, tentando adivinhar o que ia na tua cabeça, nessa teia complexa que é sempre a tua maneira de ser. Antes de me deitar, fui ao corredor, até às escadas, espreitar se já terias desligado a luz do candeeiro e adormecido. Ao contrário do que seria de esperar, reparei que lá de baixo emergia alguma iluminação, mas não era de um candeeiro. Olhei para a janela do meu quarto e vi que estava lua cheia. “Normal, então.”, pensei eu. Dado o teu ar esgotado quando entraste novamente em casa, achei que talvez seria melhor fechar as portadas para não levares com o sol logo ao início do dia.

Desci as escadas devagarinho e, ao contorná-las para sala, reparei que não estava ninguém no sofá. Encaminhei-me até às portas da varanda e lá estavas tu. Perdido, a olhar para o vazio. Fiquei uns momentos ali, mas decidi avançar, tentar falar contigo. Desde que tivemos a primeira conversa, poucas horas depois de nos conhecermos, que sempre encontraste facilidade em falar comigo, porém, naquele dia, estava complicado. Cheguei junto a ti e tu não reagiste. Encostei a minha cabeça ao teu ombro e pedi-te “Conta-me o que se passa contigo. Sabes que comigo podes falar, que seja o que for, eu ajudo-te.”.

Esperei, mas nada. Não sou uma mulher de grande sensibilidade, confesso. Quando vi que a bem não ia conseguir nada de ti, levantei a cabeça, virei-te para mim e confrontei-te. O que vi surpreendeu-me e deixou-me deliciosamente aterrorizada. Ia começar a formular algum pensamento quando colaste a tua testa

à minha e sussurraste: “Sinto-me perdido. Não sou quem era, mas não sei se consigo encontrar-me novamente. Desejo-te, mas sinto que só nos prejudicaria se arriscasse sequer tentar alguma coisa e agora aqui estou eu, a confessar-te as minhas merdas, a ser um otário contigo e provavelmente a foder tudo.”

Não precisei de pensar sequer, coloquei as minhas mãos na tua cara e beijei-te. Primeiro um beijo leve, que te deixou estupefacto e de olhos arregalados, mas ainda assim com ansiedade evidente espelhada neles. Acabei por fechar os meus, por puxar-te para mim e, no que me pareceu uma eternidade, mas que foi instantâneo, rodeaste-me com os teus braços, devolveste-me o beijo de forma profunda, desesperada e urgente. Lentamente, diminuindo a frequência e a intensidade, fomos parando. Por fim abraçaste-me. Sem palavras. Apenas o meu coração a bater perto do teu, ambos a uma velocidade avassaladora. Um começo atribuladamente delicioso sem fim à vista.”

Morrighan 4/09/2013 – 16h30

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2 Comentários
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Unknown
Unknown
10 anos atrás

Então muita gente lê e ninguém comenta? Isso é um crime! Gostei do texto, tão bem construído, seria giro pegares depois nestes escritos e formares um livrinho 🙂

Este pequeno texto, fez-me desejar-te pelo TUS. A sério. lol
Isto é porque o TUS é algo demasiado importante para mim, apesar de não o ser para os outros….hihihi

Adorei. Não digo mais nada, ora essa! ☺

Morrighan
Morrighan
10 anos atrás

Amanhã a ver se começo o TUS! Prometo que vou tentar 😀

Obrigada, minha querida, por comentares! Mesmo mesmo 🙂

  • Sobre

    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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