Dado o trabalho desenvolvido pelo blogue Morrighan ao longo destes 5 anos, ajudando a divulgar a literatura fantástica e os autores nacionais, o Fantasy & Co. decidiu participar nas comemorações do quinto aniversário, associando-se como parceiro, dedicando um conto à deusa que dá nome a este blogue.
Desde já o meu muito obrigada e já sabem que da minha parte estou sempre disponível para ajudar no que puder. Aqui fica o conto:
Owen deixou o líquido escorrer pela garganta numa
celebração envenenada. Naquela noite bebiam, na manhã seguinte combateriam. O
álcool emprestar-lhes-ia fulgor. Ou levá-los-ia à sua morte. Uma ou outra. O
meio-termo era algo que não existia: a sua honra não permitiria que se
rendessem, ou que se dessem como prisioneiros.
Em seu redor, os amigos urravam. À luz das
fogueiras, cada um deles assemelhava-se mais a um espírito maligno que a um
guerreiro humano. Se assim se mantivessem, e se os deuses os ajudassem…
O crocitar do corvo desviou a atenção do irlandês.
Franziu as sobrancelhas louras, baixando o braço com que segurava a caneca. Nem
aquele era um animal nocturno, nem o seu ruído teria a potência suficiente para
se fazer ouvir por entre a algazarra dos guerreiros.
Croc. Croc.
Mas repetia-se. Semicerrou os olhos e viu-o,
saltando pelas ervas, uma silhueta negra mal se distinguindo na escuridão da
noite. Os olhos pretos olhavam-no de lado, a cabeça ligeiramente torcida.
Croc. Croc.
A caneca voou na direcção do corvo, que se apressou
a levantar voo. Por muito estranho que fosse o bicho, acabava por se comportar
como todos os outros quando confrontado com aquelas arremetidas mais perigosas.
Owen riu-se, talvez já incentivado pelo álcool. A mundanidade regressou por
momentos, pouco beliscada pelo pequeno episódio.
Por minutos.
Croc. Croc.
Afastara-se para aliviar a bexiga. O corvo
observava-o de um galho. Mal o deveria distinguir, mas bem o via, a cabeça
ligeiramente inclinada, o olhar de quem troçava… Saltou novamente para as
ervas, crocitando.
“Quer que o siga” apercebeu-se. A compreensão
afastou a névoa bem-disposta da celebração – ou despedida – que antecedia a
batalha. “Um mensageiro dos deuses.” O pensamento abismava-o ao mesmo tempo que
o atemorizava. Mas nenhuma outra explicação lhe parecia plausível. O corvo não
era um animal noctívago. O corvo não se fazia visível na escuridão. Mas aquele
era-o e fazia-se.
Owen não hesitou. O corvo saltitou à sua frente,
não voltando a olhá-lo, como se convencido que, uma vez seguido, não mais
precisaria de persuadir. Estava correcto. Ave e guerreiro afastaram-se no
interior da noite, ultrapassando os limites do acampamento, e caminhando até se
ouvir o correr do ribeiro.
Croc. Croc.
Desapareceu. Owen franziu o sobrolho, desconfiado,
desfazendo-o logo de seguida. Os lábios entreabriram-se, acompanhando o único
passo de recuo. A figura crescia, adelgaçava-se, perdia penas e ganhava formas.
Os cabelos negros caíam pelas costas da mulher desnuda, que o observava com a
troça do corvo.
– Morrighan – exalou. A deusa da guerra e das
batalhas. A balança em cujas mãos estavam a vida ou morte do guerreiro. A seu
modo, uma tecedora de destinos.
– Meu bravo guerreiro. – A jocosidade subvertia as
palavras de encanto. – Que farias caso aquela caneca me tivesse ofendido?
Owen empalideceu, recordando o objecto que lhe
atirara para afugentar o corvo. A deusa riu-se, pousando-lhe a mão na face.
– Descansa. É preciso mais para me ofender. Mas –
acrescentou, o semblante entristecendo – não poderei alterar o dia de amanhã.
Uma pena. Há muito que te acompanho e protejo. Honraste-me bem em batalha,
Owen. Não tomes o teu fim como uma vingança. Não está tanto nas minhas mãos
quanto vocês o julgam.
Afastou-se, deixando-o hirto, a cabeça num
fervilhar de pensamentos. A deusa aparecera-lhe. Bela, como a diziam. Poderosa.
Tudo em seu redor se submetia à sua presença, adequando-se a ela. Que lhe
dissera? Que o seu fim não era vingança.
– Morrighan! – chamou, saindo abruptamente do seu
torpor. A deusa ignorou-o, debruçada sobre o ribeiro. O objecto nas suas mãos
rebrilhava pela Lua. Ele não precisou de se aproximar para o reconhecer, para
saber do que se tratava.
Uma pena.
Morrighan lavava a sua armadura na corrente do
ribeiro.
Há muito que
te acompanho e protejo.
Mas não no dia seguinte. Owen conhecia a lenda,
todos a conheciam. Morrighan fizera-se ver por ele, lavando-lhe a armadura.
Não está
tanto nas minhas mãos quanto vocês o julgam.
Na manhã seguinte, morreria.
– Porquê eu?
Morrighan imobilizou-se. As costas arquearam-se,
enquanto mergulhava o escudo uma última vez, antes de o pousar ao lado dos
restantes objectos. A súbita sensação de alerta tomou Owen. Ela ia desaparecer.
Deixá-lo-ia sem uma resposta, uma explicação… Atirou-se adiante, a mão
estendida para a agarrar, num gesto inútil.
O corvo esvoaçou, afastando-se. Na noite, um único
som:
Croc. Croc.
Inês Montenegro