Aos 26 anos, Manuel Bogalheiro, que dá vida ao seu alter ego Mr. Herbert Quain, este sem qualquer idade, é considerado, por quem o ouve, um músico do século XXI que ousa ir além do convencional trazendo até ao ouvinte uma experiência única. Faz doutoramento em Ciências Sociais e Humanas e estreou-se oficialmente sob a chancela da ZirgurArtists em Outubro de 2012 com o lançamento do seu primeiro álbum How I Learned to Stop Worrying and Start Loving the Waiting. A 10 de Março saiu outro disco seu, que não é considerado nem EP nem LP, mas um disco de transição, Forgetting is a Liability, que ainda antes de estar completamente disponibilizado já começara a criar a burburinho. Depois de o descobrir através do João Pedro Fonseca, gostei tanto da sua música que tornou-se inevitável convidá-lo para uma entrevista em que falasse mais sobre este projecto tão diferente do que se faz por cá. Fiquem então a saber mais sobre Mr. Herbert Quain.
Já produzes música há alguns anos, como é que foi o teu percurso até chegares à identidade Mr. Herbert Quain?
Quando era mais novo, até cerca dos 17 anos, fiz o conservatório de guitarra clássica. Depois disso descobri o computador enquanto ferramenta criativa que permite infinitas possibilidades de manipulação através do digital em relação à guitarra, em que eram precisas muitas horas de trabalho diário de uma forma muito formatada e rigorosa. Essa descoberta mostrou-me que a tecnologia possibilitava coisas que o ser humano não consegue fazer, isto é, um acorde de guitarra pode ser manipulado ao infinito de forma digital, por exemplo. Inicialmente, e motivado por isso, comecei a fazer música numa tentativa de recriar coisas que eu ouvia muito na altura, os Portishead, os Massive Attack, basicamente aquela onda do trip-hop de Bristol. Começou por aí, algumas coisas eram quase pequenos edits de músicas de que eu gostava muito. Na altura surgiu-me o nome de Herbert Quain para dar uma espécie de personalidade ao que fazia. Mais tarde peguei em músicas portuguesas da Simone de Oliveira e da Madalena Iglésias que acabaram por passar na rádio Oxigénio. E o início mais sério terá talvez começado quando surgiu a hipótese de lançar o álbum pela Zigur Artists. Na altura tinha ouvido uma rúbrica na rádio sobre um EP do Morsa, que também faz parte da editora, gostei muito e fui pesquisar sobre a Zigur Artists. Agradou-me e acabei por lhes enviar algum material que tinha. Eles responderam-me no próprio dia a dizer que tinham gostado. Quando mais tarde conheci o António M. Silva, percebi que tinha sido uma boa aposta e que estava a ter a possibilidade de fazer algo completamente livre sem quaisquer condicionamentos. Foi com o lançamento do álbum em 2012 que oficialmente ficou marcado o início do projecto.
Fizeste então o conservatório de guitarra clássica, mas hoje em dia a música que produzes é considerada entre o experimental e a electrónica. Foi a tal possibilidade de criares coisas através dos computadores que são humanamente impossíveis com instrumentos clássicos que te levou a seguir por esse caminho?
Claramente. O computador é uma ferramenta extraordinária que permite criar algo com uma economia de meios impensável há vinte ou trinta anos atrás. E claro que tanto se pode tratar de uma canção pop, num registo mais convencional, como de algo completamente abstracto num registo para o qual ainda não há categoria para o definir. Mas quando se grava qualquer coisa na rua e com aquilo se faz uma batida, aí já se está a fazer aquilo que talvez nunca tenha sido ouvido e que apenas é permitido por algo tecnológico. Não quero dizer com isto que se trate de uma pura simplificação do processo de fazer música. Talvez antes pelo contrário se complexifiquem algumas coisas. E não deixa de existir a necessidade dessas possibilidades tecnológicas serem preenchidas com a musicalidade, com o lado que é sempre irredutivelmente humano. Mas sem dúvida que o computador e as pequenas máquinas que utilizo são vistas como criadores de sons ou recuperadores, quando samplo outras músicas, de qualquer coisa que nunca tivesse sido ouvida antes, nem que seja pelo novo contexto em que aparece. Parece algo ambicioso, mas não é e às vezes é quase o erro que dá origem a qualquer coisa original. Aliás, o meu método de produção é muitas vezes por tentativa e erro, tentar cruzar uma coisa com outra, colocar um excerto a 10 BPM (em que a música fica mesmo muito lenta) e descobrir que novas texturas surgem daí, etc.. Daí ser um processo que me entretém, que me estimula e que, apesar de ser tão focado na técnica, não se torna uma coisa formatada, nunca se torna num processo mecânico. É um processo criativo.
A tua identidade enquanto músico, Mr. Herbert Quain, está fortemente ligada à personagem de Jorge Luís Borges. Porquê essa escolha? Que relação existe entre essa personagem e a tua música?
Herbert Quain é um escritor ficcional criado pelo Borges a quem ele escreve uma espécie de obituário. O curioso é que o Herbert Quain nunca existiu na realidade, portanto o Borges escreveu sobre os livros, que não foram escritos, e a vida de alguém que não existiu a não ser naquele obituário. Além de ter gostado da forma como o nome soava, percebi que esta ficção poderia ter um pouco a ver com a forma como vejo a música que faço. Fazendo eu música muito a partir de samples e de excertos do passado, acaba por resultar uma manta de retalhos ou um puzzle que podia ser de qualquer um. E aí, enquanto autor, sinto que poderia desaparecer e aquilo ficar como uma espécie de património de acasos do tempo, das combinações do antigo e o novo. No limite, ficar apenas uma personagem e uma obra, sempre com a dúvida do que é ficcional, do que é real, do que é que é samplado, do que é realmente composto e tocado, etc.
How I Learned to Stop Worrying and Start Loving the Waiting, o teu primeiro álbum, acaba por reflectir toda essa tua filosofia de misturar o antigo com o nome, a imagética das personagens, dos filmes, etc. Como é que se deu o processo criativo? Vês os filmes ou ouves as músicas com o propósito de as usares ou acaba por acontecer naturalmente?
Varia muito, às vezes é quase aleatório. Às vezes estou a ver um filme e há ali um diálogo que me chama a atenção e que sinto que me transmite algo que quero explorar. Outras vezes é o contrário, estou a produzir uma música e sinto que quero injectar ali um sentido narrativo e acabo por me lembrar de filmes que já tenha visto ou livros que já tenha lido. Não há uma regra, por assim dizer. É algo que também acontece em relação às músicas que samplo. Por vezes o processo começa com a samplagem de fragmentos de músicas de que gosto e que quero recontextualizar. Outras vezes, começo com a composição original de algo e acabam por surgir samples que ilustram aquilo que foi escrito por mim. Depende sempre, acaba por ser tudo muito sem regras, muito indefinido. Acho que cada música pode ter uma história de produção diferente das outras.
A tua história pessoal interfere na música que compões?
De uma forma directa não. Há sempre parte da nossa história pessoal naquilo que criamos. Mas quando penso numa certa narrativa para uma música ou para um disco nunca é propriamente autobiográfica e associo-a sempre à personagem do Mr. Quain.
O que tens produzido está tudo em formato digital e 100% disponível para download gratuito. Sendo a ZigurArtists precisamente uma netlabel, explica-nos como é que esta conjugação acabou por funcionar para a tua música sair cá para fora com um maior destaque.
Em relação a isso, tenho para eles um enorme sentimento de gratidão. Eu tinha o meu círculo de amigos que já sabia disto, houve alguma atenção do Rui Portulez da rádio Oxigénio antes de eu conhecer a ZigurArtists, mas depois essa pequenina erupção para a Antena 3 e para outras rádios, para alguns blogues e para o surgimento dos lives foi, sem dúvida, graças à ZigurArtists e à forma como souberam dar uma imagem mais institucional, por assim dizer, ao conceito Mr. Herbert Quain. O João Pedro Fonseca, por exemplo, não faz música e às vezes é quase como se fosse metade disto. Para além dos monólogos ou dos diálogos que integro nas músicas e que já contribuem para ver algo, por assim dizer, há uma outra dimensão imagética na música, e há sempre momentos hipotéticos de despedidas ou reencontros, de confissões ou de desabafos, e o João faz o trabalho de ilustrar isso de forma concreta, visual, seja no ecrã ou na tela, nas capas… A estética partiu de mim, o preto e branco, os filmes noir, o vintage, isso partiu de mim e geralmente sou eu quem escolho as imagens mas efectivamente é ele quem depois dá contexto concreto a isso. Mas toda a estrutura da ZigurArtists teve um papel muito importante, sem o qual o Mr. Herbert Quain não existiria da forma em que existe hoje. Tenho muito a agradecer ao António M. Silva, ao Afonso Lima, ao Manuel Guimarães, ao José Silva, entre outros que talvez agora me esqueça. Todos eles, sem qualquer ordem, deram um contributo em que cada um à sua maneira foi essencial.
Associaram muito o teu álbum a trabalhos de Nicolas Jaar e DJ Shadow. São fontes directas de inspiração para o que produzes?
São inspirações, claramente. Tanto um como outro. O Endtroducing… do DJ Shadow é dos meus álbuns preferidos; tudo o que o Nicolas Jaar faz bate-me e fica cá. Mas acho que essas associações se fazem mais por terem saído no primeiro press realease do álbum, acabando por catalogá-lo mais do que aquilo que efectivamente representa. E há muitas outras fontes de inspiração, algumas até mais directas, que estão reflectidas na minha música e que raramente são referidas.
Tal como disseste, o João Pedro Fonseca dá forma visual ao teu projecto actuando como VJ nas tuas actuações ao vivo. Como é que essa dinâmica tem funcionado?
Tem funcionado muito bem. O trabalho dele é incrível tanto a escolher as imagens dos filmes para utilizar, como depois a manipular as imagens ao vivo de acordo com a música. Penso que se gera ali um diálogo de imagem-música que naquele momento consegue interpretar muito bem aquilo que está a acontecer. Acaba por existir um clímax musical que ele consegue traduzir num clímax visual, tratando com imagens as quebras, os drops, etc. Entretanto tornámo-nos muito amigos e o projecto ganhou com essa cumplicidade em que existe um entendimento quase tácito. Tenho mesmo muita sorte em poder contar com ele.
Fazendo jus ao nome do teu primeiro álbum, foi preciso aprendermos a amar a espera para voltarmos a ver um novo trabalho teu cá fora. Forgetting is a Liability sai finalmente a 10 de Março…
Sim, possivelmente, eu também precisei de esperar. Aconteceu que o primeiro álbum deu-me mais do que aquilo que eu estava à espera. Não estava à espera das rádios ou de, por exemplo, ser integrado na compilação dos Novos Talentos da Fnac. Foi óptima a forma como o álbum foi recebido na Antena 3, em especial pelo Rui Estêvão, que esteve lá desde o primeiro momento e que acabou por se tornar numa grande fonte de incentivo, mas também pelo Henrique Amaro na Portugália ou pelo Rui Vargas. Como não esperava tanto, tive que assentar e tentar perceber realmente o que é que era isto para mim. Colocou-me uma responsabilidade que não esperava vir a ter para um segundo disco.
Esse impacto na comunicação social repercutiu-se no público em geral?
Foi muito gratificante ter chegado às rádios, por exemplo, mas não me esqueço, e nem convivo mal com isso, de que isto continua a ser a uma escala quase microscópica de pequenos nichos. Não penso que se possa dizer que isto tenha tido uma repercussão verdadeiramente popular. Agora, dentro desses nichos, o feedback tem sido óptimo, o que é muito compensador. De qualquer forma, também acabamos por desenvolver na editora uma postura low profile no que toca à imagem de Mr. Quain, gostando de pensar que estamos a criar uma espécie de comprometimento com quem nos encontra.
Achas que o facto de ter essa postura low profile te protege de alguma maneira de um escrutínio maior das grandes massas?
Qualquer pessoa que cria alguma coisa procurará sempre uma certa visibilidade. Mas essa procura em nenhum momento me condiciona o processo de criação. E achamos que também não deve necessariamente condicionar as formas de divulgação de algo. Optámos por esta postura, não por nenhum receio, mas por acharmos que é aquela que melhor reflecte o conceito do projecto.
Voltando ao lançamento do Forgetting is a Liability, depois de o ouvir fiquei com a impressão de que tem um cunho muito intimo, mais complexo que o teu trabalho anterior. Enquanto produtor do mesmo, como é que o caracterizas?
É algo ainda recente e do qual ainda não tenho um distanciamento suficiente para dizer se é mais ou menos pessoal, mais ou menos complexo. Sei que vejo este disco, sobretudo, como um lançamento de transição. Inicialmente era para ser um EP, com três ou quatro músicas, muito fechado. À medida que estava a trabalhar nas músicas, a narrativa adensou-se e senti necessidade de mais tempo, isto é, mais faixas para contar a história. Acabou por resultar em algo que não é nem um EP, nem um LP. Gostaria de o considerar como algo que está no meio do caminho até ao segundo álbum, no sentido de longa-duração. Até porque sempre coloquei um pouco mais de expectativa num segundo álbum, em que eventualmente gostaria de explorar colaborações com outros artistas, entre outro tipos de desafios a mim mesmo.
Fala-nos um pouco sobre esse conceito de Esquecimento que este disco aborda.
O primeiro disco andava à volta dessa ideia da espera. Este andará mais à volta dessa ideia do esquecimento e de um compromisso que devemos ter para esse acto. “Forgetting is a Liability” prende-se com essa ideia de necessidade, de que para viver é preciso esquecer. Contraria-se um pouco a ideia do quanto mais melhor e das vantagens da acumulação da memória. Apenas esquecendo se pode avançar. O percurso do álbum, até pelos títulos das músicas e pelas falas que estão lá, tenta transmitir um pouco isso.
Existe alguma relação directa/intencional entre os conceitos que acabaste de nos explicação e a componente científica dos teus estudos?
De forma directa, não. Em nenhum momento quero tornar isto numa coisa académica, por assim dizer. Claro que trato temas de que gosto: a memória, o passado, o tempo, o anacronismo, e que também podem ser tratados de forma académica. Mas não há uma intencionalidade propriamente dita nesse eventual cruzamento.
Em termos de actuações ao vivo, onde é que te sentiste melhor até agora?
Sendo suspeito mas sincero, o sítio onde me deu mais prazer tocar foi em Lamego, a terra da ZigurArtists. Foi lá o meu primeiro live e também foi lá o live de que disfrutei mais, no último Zigurfest em Agosto de 2013. Mas houve outros sítios onde me deu também muito prazer tocar, como por exemplo nos improváveis corredores Rádio Universitária de Coimbra.
Estando tu atrás de um ecrã durante o concerto, como é que acaba por se dar essa interacção com o público?
Eu espero que seja essencialmente pela música e, claro, pela imagem também. Tanto eu como o João estamos lá em carne e há uma energia e uma dimensão física na maneira como nós próprios reagimos à música que estamos a fazer ou a ilustrar. Mas espero que seja essencialmente pela música.
São poucos os artistas que conseguem viver da música em Portugal. Enquanto músico, que impacto é que essa percepção tem em ti? Alimentas o desejo de fazer isto a tempo inteiro?
É algo em que, na verdade, não penso muito. Por enquanto é um hobbie que me dá imenso prazer fazer mas que não passa disso e que posso conciliar com o doutoramento. À parte disto, claro que gostaria que fosse contrariado o cada vez menor investimento na cultura em Portugal, que muitos contratos entre editoras e artistas fossem revistos ou que, por exemplo, houvesse um reenquadramento das leis no que toca à samplagem e à propriedade intelectual, de forma a acabar com este actual estado em que tantas vezes a criatividade é boicotada por razões estritamente mercantis. Por outro lado, vejo a internet e as redes sociais como uma forma de abrirem um quadro mais participativo e mais descentralizado em relação às grandes produtoras e às grandes editoras. Quero acreditar que a tecnologia está a dar um passo importante e que depois as editoras dominantes e os próprios sistemas jurídicos e económicos se verão obrigados a ter de acompanhar.
Agora uma pergunta um pouco mais difícil, e com todo o respeito por ambas as partes, mas imagina que uma editora grande, uma Universal por exemplo, te abordava no sentido de te migrares para lá, dando um formato físico, que sei que é algo que desejas, ao teu trabalho. Dado que tens toda essa gratidão e apreço à ZigurArtists, seria uma decisão difícil?
Não posso esconder que tenho uma ambição em um dia ter um lançamento físico. Sou comprador e coleccionador de vinil e gostaria de ter a minha música em vinil. Mas não entendo que apenas isso pudesse ser condicionar uma decisão dessas. A ZA, antes de ser uma editora, é uma plataforma de apoio à criatividade e eu gosto muito de como as coisas lá se fazem. Se um dia se colocasse a possibilidade de editar por outro selo que me pudesse dar outras condições, gostaria muito que a ZA também pudesse estar envolvida e pudesse contar com o excelente modus operandis que até hoje me lá proporcionaram.
Agora as perguntas “fáceis”:
Autores preferidos: Tenho um certo interesse por autores sul-americanos como o Julio Cortázar, o Jorge Luís Borges ou o Roberto Bolaño. Depois há o George Orwell, o Aldous Huxley ou o Philip K. Dick mais ligados a distopia tecnológicas e políticas de que também gosto muito.
Obra preferida: É muito difícil e será sempre uma resposta redutora, mas talvez o Rayuela de Julio Cortázar. Amanhã a resposta poderia ser outra!
Músico preferido: É muito difícil… e redutor também! (risos) Talvez, numa espécie de tributo a uma banda que me fez querer fazer música e marcou a minha adolescência… os Portishead.
Uma pessoa que admires: Qualquer uma da minha família.
Combinação perfeita de Prato e Bebida: Comida portuguesa e vinho tinto.
Projectos num futuro próximo:
O disco saiu esta semana, vamos apresenta-lo ao vivo dia 21 no Café au Lait no Porto e há mais concertos que podem vir a acontecer para Maio e Junho. No imediato, perceber como o disco é recebido.
Sendo Forgetting is a Liability um disco de transição para ti, quer dizer que já estás a pensar no segundo?
Não. Este é um disco de transição para algo que, no entanto, ainda não sei o que é. É perceber o que acontece, portanto.
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Obrigada Manuel, pelo teu tempo e simpatia.
Mais sobre este projecto aqui.