Escritos Aleatórios #45

“Hoje sonhei que te tinha, que
finalmente o universo se tinha tornado justo e que havia esperança no
horizonte. Começou com um beijo casto na testa, desceu para perto do ouvido e
ousei abordar o teu pescoço. A tua rendição foi suave e agressiva ao mesmo
tempo, nessa tua masculinidade inegável e quase palpável por quem te rodeia. Enlaçaste
os teus braços em mim, encostaste a tua testa à minha e proferiste as palavras
que há tanto tempo ansiava ouvir. ‘Desculpa. Desculpa ter-te feito esperar este
tempo. Estou aqui. Aqui para ti. Não pretendo sair tão cedo.’ Nem era as palavras do pedido de desculpa a mais relevante, mas a sua entoação ao saírem
da tua boa. A voz profunda e ressonante que me aqueceu assim que chegou aos
meus ouvidos. Morfeu foi bondoso comigo e proporcionou-me mais uns momentos de
intimidade extraordinária em que, apesar de ter alguma noção de que só poderia
estar a sonhar, estava também a sentir tudo com uma intensidade única, como se
fosse a derradeira oportunidade de experienciar algo assim.

Claro que quando acordei não
sabia se havia de rir, que nem uma louca alucinada, ou de chorar, que nem
alguém que sabe que jamais voltará a viver algo assim, como vivi contigo.
Amei-te em segredo, sem segredo nenhum para ti, durante os últimos anos. Éramos
os melhores amigos, maior cumplicidade não podia existir. Fazíamos uma vida comum
ainda mais intrínseca do que boa parte dos casais que se desfilam por aí, exibindo falsa felicidade e paixão cínica. Só faltava um de nós dar o primeiro passo.
Mas havia o teu passado turbulento, o meu futuro condenado, e fomo-nos
satisfazendo com as certezas que silenciosamente transmitíamos um ao outro –
que só existíamos um para o outro. Renegámo-nos assim à explosão de
sentimentos, ao arrebatar da descoberta, à realização da fogo que ir ardendo
dentro de nós.

Quis a fatalidade do destino que
tivéssemos os dias contados. Eu por doença, tu por
rivalidade do destino que decidiu arrancar-te de mim na situação mais banal de todos
os tempos, com um acidente de automóvel. Vinhas a caminho do hospital,
visitar-me, enquanto eu era submetida aos exames periódicos para ver se o
cancro finalmente retrocedia. Era eu a receber boas notícias, em como o cancro
não tinha, pelo menos, avançado, e passados alguns instantes o telefonema a
dizer que estavas na ala de cuidados intensivos do mesmo hospital. Desejei
morrer naquele instante. Que o cancro me devorasse as entranhas de vez e me
levasse para junto de ti. Não resististe à hemorragia interna de que foste
vítima. Assim, sem mais nem menos, num instante falamos ao telefone, contigo a
motivar-me e a dar-me força para mais uma bateria de testes e no outro um
condutor imprudente perde o controlo do carro e atira contigo estrada fora.

Passou um mês desde então. Ironia
do destino, tu foste, cheio de vida, sempre enérgico e de sorriso no rosto e eu
fiquei, sempre a precisar de ti, a chamar por ti, a chorar por ti, a lutar por
respeitar toda a esperança que tinhas em que eu ficasse boa. Hoje volto ao
hospital. Sinto um aperto na garganta e um nó no estômago que me afundam numa
torrente de desespero. Amaldiçoo e abençoo Morfeu por te ter trazido em sonho
para mim esta noite. Será que estejas onde estiveres, tens noção do quão
importante sempre foste para mim? Adivinhaste que precisaria de força extra
para voltar àquele local inferno e recheado de más recordações?

Sinto a tua falta. Tanto como de
oxigénio para respirar. Dizem que o pensamento positivo é meio caminho andado
para se enfrentar um cancro, mas como posso eu ter essa postura se eras tu quem
me segurava a cabeça cada vez que me davam as náuseas e os vómitos a seguir. Se
eras tu quem me levava e ia buscar à quimioterapia? Ainda assim não me sinto
pior e por muito estúpido que pareça sinto-te em mim. À tua força, à tua
alegria. Penso que penso em desistir não consigo, parece que ouço a tua voz, o
teu carinho em mim. E ainda assim só sinto cansaço, um tremendo cansaço e o
vazio, o vazio de quem não arriscou nem ousou ter mais quando podia e agora é
tarde demais.”

Morrighan 15/12/2013 – 12h29

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2 Comentários
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Anónimo
Anónimo
10 anos atrás

Este texto está lindo 😀

Morrighan
Morrighan
10 anos atrás

Muito obrigada :))

  • Sobre

    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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