Escritos Aleatórios #46

“A vida tem destas coisas inexplicáveis em que, de um dia para o outro, parece que nos tornamos pessoas completamente diferentes, com destinos inevitavelmente distintos, mas com um passado comum que, independentemente dessa mudança, existe para nos prevenir, para nos relembrar do que certas decisões nos levaram a fazer e até onde estas acções nos fizeram chegar. Esta podia ser uma história como tantas outras, talvez até seja, porém ainda hoje tento compreender como aqui cheguei, ainda me deslumbro com a forma como vou dando passo após passo, cada vez com mais certeza de que após semanas de desespero e alguma loucura, finalmente fiz algo por mim mesma que acabou por ter impacto na relação do mundo comigo e vice-versa.

As relações nunca foram um tema simples; pura e simplesmente não dá para definir todos os termos da interacção entre duas pessoas. Cada pessoa sente e lida com as suas emoções de forma diferente. Mesmo quando existem duas pessoas que se amam, nem sempre o amor é interpretado da mesma maneira, muito menos expresso de igual forma, mas isto não quer dizer que não esteja lá. O que é preciso é, no mínimo, haver uma espécie de certeza implícita de que o outro nos ama com igual intensidade. Cada indivíduo há-de ter as suas necessidades de expressão de afecto. Alguns precisam que tudo lhes seja demonstrado publicamente, colocado e gritado em todas as paredes e pelos sete ventos, enquanto outros preferem a intimidade das portas fechadas, dos gestos singelos, da comunicação quase sem palavras, ainda assim profundamente sentida. Cada um é como cada qual, mas no que toca ao equilíbrio entre duas pessoas ou se encontram no mesmo patamar ou se em patamares diferentes podem criar atritos desnecessários. Não é verdade que desde que haja amor tudo se resolve? Não, lamento, não é verdade.

E não são só os tipos de demonstrações que causam instabilidade numa relação, são também as intenções, o caminho que se deseja seguir numa relação e onde se pretende chegar. O que dizer de pessoas que trazem bagagem com elas e que, mesmo sentido que amam a pessoa com quem estão, não têm a certeza se estão preparados para avançar? Terão noção o que iniciar uma relação assim, sem um acordo tácito entre os parceiros, poderá provocar caso chegue uma altura em que não consegue ultrapassar os demónios do passado? Existem ainda os que não chegam a iniciar oficialmente uma relação, mas que vão deixando andar; umas declarações aqui, uns beijos ali, um entrelaçar de corpos de vez em quando até que chega o momento em que um dos dois quer definir o que realmente se está a passar e o outro foge, tirando o tecto e o chão a quem espera a resposta que nunca chegará.

É bonito dizer-se que se ama, é óptimo termos alguém sempre disponível para nós e para nos ajudar sempre que precisamos, mas muitas vezes esquecemo-nos de que realmente todos somos diferentes e sentimos de maneiras diferentes. O que para um pode ser um gesto de pura gentileza e simpatia, para outro pode ser entendido como um sinal de interesse. Acontecem então os desentendimentos, os corações partidos que podiam ter sido completamente evitados e as marcas que ficam e que custam a passar, principalmente quando de uma das partes o envio de sinais de interesse foi completamente dissimulado só para prender a pessoa perto de si.

Foi este último caso que aconteceu comigo. Interpretei mal todos os sinais que me davas, mesmo quando pareciam evidentes para toda a gente. Mais tarde, o choque foi tal que reparei que no fundo nem amizade havia desse lado. É com alguma humilhação que admito estas coisas, claro que sim. Como é que durante dois anos me deixei enganar, envolver, apaixonar, para quando por fim tomo coragem de colocar as cartas na mesa nem uma resposta ou reacção receber? Depois de tudo o que passámos, do que fiz por ti, do que até tu fizeste por mim… O que restou foi zero, o vazio, a suspensão das emoções. Só queria uma borracha, dessas impossíveis de existirem, que apagassem todas as memórias, sorrisos, toques, gestos, e palavras que eu pensava ser tudo sentido. Desapareceste da minha vida por uns tempos e contigo levaste a minha capacidade de me ligar às pessoas, de acreditar nelas, de sequer sentir empatia.

Parecíamos os dois sempre tão fortes, que era o suficiente para me manter a teu lado. Só pensava em estar perto de ti e como parecíamos fortalecer com o passar do tempo.  Mostravas afecto, carinho, tudo nesse teu modo bruto e irritante, mas que era compensado quando me brindavas com um daqueles sorrisos em que até os teus olhos brilhavam. Pergunto-me até que ponto dissimulaste tudo, até que ponto não terá havido ao menos uma pinga de sinceridade aí pelo meio. No entanto, é tarde demais. Não dei conta de quando te começaste a afastar sem razão aparente, só dei conta que nos últimos tempos, quando queria chegar a ti, tinha de percorrer caminhos mais sinuosos, cheios de obstáculos. Fui sentido a luz entre nós desaparecer até que só restou a escuridão dos meus sentimentos cada vez mais sufocados. Obrigaste-me a ir a uma parte de mim que desconhecia e que não gostei de conhecer; cheia de raiva e amargura, a transbordar de ressentimento. Sentia-me gelada e abandonada. Revoltei-me com a tua atitude, expressei pela primeira vez o que realmente sentia em relação a ti, a forma como me senti traída a e enganada, o egoísmo de que foste autor. Nada. Nem uma palavra. Nem um telefonema. Nada. 

Como é que se ultrapassa uma coisa assim? Como é que lidamos com a rejeição silenciosa após anos de entrega não oficial, mas de partilha inegável em que só faltava mesmo a modificação do estado civil de solteira para comprometida? Não sei, só sei que é preciso reunirmos todos os pedaços de nós mesmos. É como se depois de tudo, depois de todas as experiências, de toda a montanha russa percorrida a uma velocidade estonteante, fossemos deixados nus ao frio, a tremer, com a nossa alma a encolher até ficarmos dormentes. E aí, quando não sentimos realmente nada, mais nada em relação a seja o que for, conseguirmos dar o primeiro passo. Em que direcção? Depende de cada um. Eu dei na direcção de me recuperar a mim mesma. 

Demorei o meu tempo, sim, mais do que alguma vez desejei demorar, porém chegou o momento em que senti o gelo começar a ceder, a derreter. Parecendo vir do nada, houve alguém que ousou enfrentar o meu estado de espírito soturno, as minhas constantes negações em relação a qualquer tipo de convites por parte do sexo masculino. Um alguém que, de mansinho e através da conquista pela confiança, me voltou a colocar o sorriso nos lábios, que me tem feito sentir novamente mulher, novamente parte integrante desse mundo que parece pertencer apenas aos que sabem o que é gostar de alguém e sentir a reciprocidade do mesmo. A insinuação na minha vida foi tão subtil que tenho dado por mim a ansiar por uma mensagem, a sorrir de cada vez que o vejo ao longe para mais um café ou um lanche. Já não esperava voltar a sentir aquele acelerar do coração em que parece que nos vai saltar fora. Não depois do que tu deixaste em mim. 

Claro que estou com medo, claro que estou com receio de bater com a cara no chão novamente. Mas cada história merece começar numa página em branco e, após estas últimas semanas de descoberta, sinto-me finalmente a florescer novamente para o mundo. A desbloquear as minhas emoções, a permitir-me curar-me e deixar que a influência dele me ajude na reconstrução de mim mesma. 

Revolta-me tu pareceres ter um sexto sentido, como se diz que só as mulheres têm. Provavelmente os homens também o desenvolvem, mas só para o que não devem, como para voltar a empatar a vida de alguém que magoaram. Desde que nos cruzámos há umas semanas, como que por acidente, em que me cumprimentaste como se nada se tivesse passado, que parece que voltaste a lembrar-te que eu existo. Envias-me mensagens quase todos os dias a falar de coisa nenhuma, tacteando apenas se ainda estarei ali para ti. Não vês que isso não passa de um acto de egoísmo gigante? Que apesar de estar finalmente a seguir em frente, esse tipo de abordagem faz despoletar emoções e partes de mim que não quero que emerjam? Será pedir muito que me deixes sossegada a viver a minha vida? Tens sido simpático e falado com palavras meigas, feito piadas como se nunca nos tivéssemos deixado de falar e eu feita parva não tenho resistido em responder-te, sempre com aquela ponta de amargura. Achas que não tenho saudades? Saudades dos tempos em que eu sentia que era real? Que era eu para ti e tu para mim, que juntos seríamos capazes de ultrapassar tudo? Só que esses tempos passaram e tu não mereces que eu volte a parar a minha vida ou a congelar o meu presente por ti.

Agora existe uma terceira pessoa, ou melhor, uma segunda pessoa! Porque a primeira sou  eu, a segunda é ele, e a terceira que não vai nem pode fazer parte do quadro és tu. Não foi por falta de oportunidades, não foi por falta de certezas do que eu sentia, foi sim por teres cedido aos demónios do teu passado, teres entrado em pânico e teres decidido desaparecer para que as coisas não ficassem ainda mais reais para ti, sem sequer tentares falar comigo, sem sequer tentares perceber se te poderia ajudar. Eu sei, eu sei que te questionas em como é que sei estas coisas, mas tu esqueces-te de que te conheço melhor que tu a ti mesmo. Que fui eu quem esteve lá quando desabafaste sobre o teu passado atribulado e a quem te agarraste quando vieram os primeiro sinais de depressão preocupante. Que fui eu que te ajudei a ligares-te novamente à vida para depois me virares costas em tom de agradecimento.

Não sei o que é que o futuro me reserva, sinceramente não faço ideia se todo esta paz e harmonia que tenho agora com ele tem um futuro destinado, mas sei que estou feliz. Consigo finamente separar tudo o que senti por ti do que agora sinto em relação a mim e ao mundo. Foi preciso eu mudar a minha postura para que realmente também o mundo me correspondesse com uma nova oportunidade. Pode não dar em nada, mas também pode ser um novo início merecido. Gostava de te dizer que podes contar com a minha amizade, mas só te posso prometer tolerância. Deixo o resto para ti e contigo, faças o que fizeres tem apenas em conta que eu mereço mais do que aquilo que me deste, mais do que provavelmente tiveste intenções de me proporcionar. Digo-te, com toda a certeza do mundo, que o amor não é algo que se possa desperdiçar levianamente. Que possas, no futuro, ser novamente um sortudo, mas atenta a não tornares alguém de sorriso quente em alguém de alma fria. Já bastou comigo. 

Sem ressentimentos, 

Aquela que conheceu o melhor e o pior de ti e que por medo de ti mesmo decidiste renegar.”


Morrighan 17/12/2013 – 19:30

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4 Comentários
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Rita Mesquita
Rita Mesquita
9 anos atrás

Amei.. estou exactamente a passar pela mesma situação neste momento e está ser muito difícil de reagir sinceramente. Ler isto deu-me até um cadinho de esperança que um dia vou ter vontade de rir novamente. 😛

Morrighan
Morrighan
9 anos atrás

Há sempre esperança :))

Anónimo
Anónimo
9 anos atrás

WOW!!!!! Por momentos achei que estavas a ler a minha mente <3

Morrighan
Morrighan
9 anos atrás

Hey! Bem, dado que nem te identificaste, espero que tenha sido só achar, senão seria demasiado estranho eu ler mentes de quem não conheço :b Eheheh

Obrigada por leres <3

  • Sobre

    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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