Muitos conhecem o João Vieira como DJ Kitten, outros tantos como guitarrista dos X-Wife, mas agora é altura de juntar todo esse público e uni-lo em torno do seu mais recente projecto White Haus. Com uma belíssima vista no Miradouro de São Pedro de Alcântara, o João aceitou estar à conversa comigo sobre o seu percurso na música e o lançamento do seu primeiro LP enquanto White Haus. Falámos também da gravação do videoclip do seu primeiro single e das histórias que o álbum acaba por nos contar. Por fim, conhecemos os hábitos de leitura do nosso músico e ainda uma das obras que mais o marcou e porquê. Obrigada pela disponibilidade e simpatia, João! O sotaque é óptimo!
«Ui! Já foi há muitos anos! (risos)», é assim que o João começa por responder em relação ao início da sua carreira musical. Foi com a banda Centerfold, depois de uma demo enviada para a Roma Mega Store, que tudo começou. «Tinha influências de britpop e eu cheguei a cantar com sotaque e tudo! (risos)» João não se ficou por aqui e, passados uns meses, foi para Londres onde teve outra banda e trabalhou também como DJ e promotor. Quando voltou para Lisboa, voltou a essa mesma rotina: DJ, promotor, formou os X-Wife, mas parece que a grande mudança estava marcada para 12 anos depois. «Tem sido um percurso longo que nunca pensei que tivesse tantas etapas, muito sinceramente. Pensei que estas coisas eram uma banda, um projecto, e ficava por ali, mas afinal ainda há muita coisa para fazer.»
A música sempre esteve na vida de João Vieira e, ao recuarmos no tempo, é com nostalgia que recordamos os meios com que há duas décadas se gravava e fazia música: «A primeira coisa que eu comprei com o meu dinheiro, que poupei, foi um gravador duplo de cassetes para poder copiar e fazer cassetes. Gravava músicas de rádio e editava e gravava. Fazia cassetes para as festas… Com 11, 12 anos já punha música nas festas. Tenho irmãos muito mais velhos e o meu cunhado, que é músico, nessa altura tocava numa banda que eram os Taxi, e eu comecei a ver concertos muito miúdo. Com 8 anos já ia ver os Taxi e os Trabalhadores do Comércio, e bandas da altura do new wave português. Cresci rodeado de música, os meus irmãos tinham muitos discos, ouvia muita coisa, e eu tenho essa imagem das capas dos vinis lá pousados e fui ganhando interesse.»
White Haus surge, principalmente, pela necessidade de João Vieira produzir música de dança para crescer como DJ. «O meu percurso como DJ já existe há muitos anos e hoje em dia é muito difícil tu seres só DJ. Podes ser, mas para teres algum sucesso ou destaque, precisas de produzir música também. Depois pelo desafio, saber se era capaz de o fazer. Sabia que iria ser complicado e que iria exigir muito trabalho de estudo para começar a produzir música. Aprender os instrumentos, a parte das batidas, dos ritmos, etc. Mas quis tentar.» Também o facto de um dos elementos dos X-Wife ter vindo viver para Lisboa acabou por dar o empurrão que White Haus pudesse precisar para nascer: «Nós parámos. Tínhamos aquela rotina de ensaios que desapareceu. Deixámos de ensaiar e eu deixei de ter que fazer música. Não sabia bem o que havia de fazer e pensei que era a oportunidade certa para pensar no projecto. Eu não queria misturar as coisas, não queria ter um projecto paralelo aos X-Wife em que eu fosse o vocalista, isso poderia prejudicar a banda e confundir as pessoas. Achei então que era uma boa altura. Comecei só por instrumentais, mas senti a necessidade de colocar voz. Foi algo muito natural.»
Surge assim The White Haus Album, o LP tão esperado desde que o primeiro EP foi lançado há cerca de um ano atrás. Se normalmente a música de dança está associada a EPs e singles, neste álbum João Vieira pretende contrariar um pouco essa tendência: «O primeiro foi um EP, claramente mais virado para a pista de dança. Este aqui é um álbum que, embora tenha um elemento ou outro mais de dança, é para ser ouvido como um disco; eu tive essa preocupação. Acho que os álbuns de música de dança falham muito. A música de dança, quanto a mim, não é para ouvir um mesmo artista durante dez músicas seguidas, salvo raras excepções em que isso funciona. Até artistas como os Daft Punk, que são música de dança e passa em clubs, têm a preocupação de fazer algo com alguma lógica, com temas que funcionam melhor em álbum. No The White Haus Album eu tive muito esse cuidado. Havia muitos temas que eu tinha que não fariam sentido num vinil de 12 polegadas. Mesmo no processo de masterização, eu falei com a pessoa que masterizou e disse-lhe “Isto é um álbum, não quero que seja algo agressivo de pista, as pessoas vão-se cansar. Pensa como um álbum de ouvir do princípio ao fim.”»
João Vieira explica-nos que este disco conta muitas histórias, experiências de vida, e que é muito auto-biográfico. Sendo observador por natureza, diz-nos que «Ao longo dos anos comecei a aperceber-me que isto da vida é muito complicado. As pessoas são muito complicadas, complicam muito as vidas delas, quando podiam facilitá-las. Eu vou buscar muito essas coisas. A partir de uma certa idade, há uma insatisfação que eu acho que paira em cima das pessoas. As pessoas não sabem bem aquilo que querem, nunca estão bem, estão sempre à procura de algo. Isto pode ser positivo, por mostrar alguma ambição, mas também pode ser stressante. Falo de como, por exemplo, ainda há pouco tempo parecia que estava em Londres e agora já passou tanto tempo. São experiências pessoais, sem aprofundar muito, não falo de ninguém em concreto, falo de coisas, de apartamentos (risos). Há uma música que fala de um apartamento, tenho uma memória muito visual dele, de me lembrar da mesa da sala de jantar virada para um jardim. Posso lembrar-me disso e falar sobre isso.»
Quanto às influências na sua sonoridade, White Haus vai buscar tanto coisas contemporâneas como música da sua adolescência: «Eu cresci a ouvir música dos anos 80 e fui descobrindo coisas dos anos 70 ao longos dos anos. E é tudo isso com coisas contemporâneas. Tenho esse trabalho de procurar e investigar música moderna. Tento criar uma identidade muito própria, em que não vou atrás de uma referência só, de uma década, mas vou buscar também outras coisas. Eu procuro surpreender e também fugir um bocadinho àquilo que é óbvio. Acho que a música tem-se tornado um pouco repetitiva, ouço muito rádio e às tantas parece tudo mais do mesmo. Gosto de bandas que se distanciam desse conceito “mais um”. Não tenho grandes ambições de vendas ou de salas de concertos e por isso há uma certa disponibilidade e desprendimento da minha parte de querer agradar a críticos ou assim. O que eu queria era fazer um disco com que me sentisse bem.»
O videoclipe de Far From Everything, o primeiro single do disco, foi gravado em Hong Kong com realização de Vasco Mendes. A história passa pela colaboração entre músico e realizador e um conceito simples numa viagem longínqua: «O Vasco disse que ia fazer uma viagem a Hong Kong e, quando lhe mostrei as músicas do álbum, ele disse que esta era a ideal para fazer o video. Ainda para mais a música chama-se Far From Everything, que quer dizer “Longe de Tudo”, e Hong Kong é longe não só em termos de distância, mas também em termos culturais e de mentalidades. É como se estivesses noutro mundo, noutro universo. Nunca lá fui, mas deve ser uma coisa completamente diferente de estar na Europa ou nos Estados Unidos. Achámos que ficava bem o conceito de uma rapariga, francesa, perdida naquele mundo.»
Embora seja um projecto a solo, ao vivo conta com três músicos que o acompanham: «Quando fazes as coisas em estúdio, e te começas a entusiasmar e a criar novas músicas, não estás a pensar nos concertos ao vivo e tens de reproduzir tudo o que gravaste. Sozinho é impossível.»
Dada a experiência de João Vieira no mundo da música, questionei-o sobre a diferença de há duas décadas para cá no panorama musical português. A resposta foi peremptória: «Antes era mais fácil, havia mais facilidade em tocar em certos locais e havia espaço para muitos. Hoje já não é assim. Antigamente não havia esta enormidade de festivais que há agora, com todas as bandas estrangeiras. Eu vejo muitos festivais com bandas estrangeiras a terem spots no alinhamento muito mais privilegiados do que projectos portugueses com mais qualidade. “É português abre, o espanhol fecha.” Tem que se mudar esta mentalidade. Há muita qualidade no que se faz por cá, que em nada ficam atrás dos projectos lá fora.»
Indo um pouco para as minhas questões tradicionais que relacionam a música dos artistas com a literatura, João Vieira conta-nos que lê bastante, mais nas férias, e que o livro que mais o marcou foi O Estrangeiro de Alberto Camus: «Na altura vivia em Londres e leva-me muito para esse lado. Eu estava doente, com gripe, um amigo meu levou-me e devorei-o completamente. Foi a primeira vez que um livro me prendeu do início ao fim.» Já recentemente leu Just Kids de Patty Smith: «Foi um livro que adorei porque me revi imenso nele. Fala dos anos 70 em Nova Iorque, da pobreza dos artistas dessa época. E também me lembrei de Londres, do tempo em que era DJ lá e havia aquela maluqueira toda. Levou-me a viajar no passado e também é interessante sob a perspectiva de que Patty Smith, que é agora um ícon, uma lenda viva, passou por imensas dificuldades e pobreza, como tanta gente e artistas, por coisas mesmo trágicas. Foi o último livro que li e que me marcou mesmo.»
Reportagem do concerto no Musicbox: http://www.branmorrighan.com/2014/06/foto-reportagem-white-haus-no-musicbox.html