Quase que bastam os créditos iniciais em letras góticas, num fundo negro de estrelas rodopiantes, até aos planos picados que imitam o disco de vinil a girar na aparelhagem, pairando sobre cada um dos dois personagens principais, para percebermos imediatamente que estamos perante um filme especial. No final não resta qualquer dúvida: Só os Amantes Sobrevivem é especial.
Esta é a história de Adão e Eva. Têm milénios de idade, mas estão muito bem conservados. São aquilo que nunca é dito no filme: vampiros. São mesmo vampiros, com tudo a que têm direito: caninos afiados, vidas nocturnas, insaciedade por sangue, e a possibilidade de viverem para sempre. Além disso, são nostálgicos e profundamente desolados com o mundo de hoje e os que nele habitam, enquanto tentam reprimir os seus impulsos animalescos de atacar à vista do sangue – em vez disso, deliciam-se com cálices do mais requintado O negativo e com gelados de sangue.
Tom Hiddleston é Adão, um músico talentoso mas recolhido, romântico e com tendências suicidas (conviveu com Shelley e Byron, não admira). Tilda Swinton, bem… é a Tilda Swinton. A sua imagem única e o seu talento único fazem com que se torne, depois de vermos o filme, a única actriz possível para o papel de Eva, uma mulher hipersensível a tudo o que a rodeia, capaz de reconhecer a idade de qualquer objecto apenas com o toque. E que adora livros, tratando-os como os pedaços de eternidade que realmente são.
Depois temos o moço de recados de Adão, que lhe leva guitarras e balas de madeira; a adolescente e problemática irmã de Eva, também vampira; e Marlowe, que diz ser o autor de Hamlet – Christopher Marlowe é o contemporâneo de Shakespeare que algumas pessoas acreditam ter fingido a sua morte e assumido a identidade deste último (este quase fetichismo com as referências é um dos exemplos do humor excêntrico do filme).
A narrativa é anémica (!), mas o filme não. O que mais interessa ao realizador Jim Jarmusch é o lado emocional da ligação transcendente que existe entre os dois, e a história deambula por entre a busca de sentido num mundo decadente e a sobrevivência dos dois amantes (“amantes” como em “os que se amam”). Quem não suporta filmes sem acção, provavelmente não vai gostar deste (conta-se que Jarmusch planeava que existisse alguma, mas removeu tudo quando lhe pediram para que incluísse mais acção no filme).
Este filme, como todo o percurso do realizador, não se inscreve nos códigos habituais do cinema actual, e só assim pode florescer. Nem sequer abusa do estilo como ponto de partida, mas doseia-o e permite-lhe ser subtil – e só assim eficaz. Jarmusch está no seu território com a vida nocturna, os travellings, a música envolvente e a edição lânguida, mas o filme sobressai também com a fotografia e a composição ao milímetro da cenografia e da estética dos personagens.
No final do ano, quando vierem os balanços e as listas dos melhores do ano, talvez este filme não esteja em nenhuma. No entanto, Só os Amantes Sobrevivem, com todo o seu estilo e “coolness”, fará sempre parte de qualquer retrospectiva relevante – nem que seja apenas como uma irresistível pequena pérola num colar à parte.
Num filme onde a nostalgia é inevitável e a eternidade é possível, desculpa-se a tentação de prever o futuro: como é que isto vai envelhecer e ser visto daqui a uns anos? Só os que se amam sobrevivem – é o que podemos dizer dos filmes.
Emanuel Madalena
Este filme parece mesmo o meu estilo… a Tilda Swinton só por si é um incentivo para o ver. Obrigada por partilhar, Emanuel 🙂
Bárbara
https://bloguinhasparadise.blogspot.com/