Só o título já é todo um programa. Este filme húngaro (co-produzido também na Alemanha e Suécia) é uma grande metáfora, ou várias, sobre a opressão, sobre o poder de um “deus” — o homem branco como opressor máximo, quer seja no especismo, no racismo, no sexismo, etc. Neste caso, cria-se tanto uma alegoria como uma retórica concreta, em que o grupo oprimido são os cães, nomeadamente os rafeiros, que não pertencem a raças puras, e que por isso não têm direitos, onerando, além disso, os seus donos com mais deveres. É o caso de Hagen (interpretado pelos gémeos Luke e Body), o cão de Lili (Zsófia Psotta), uma adolescente de treze anos que vai passar uma temporada com o pai, levando Hagen com ela. O pai de Lili, inspector veterinário num matadouro, odeia Hagen e não o quer em casa, e acaba por deixá-lo à beira da estrada, abandonando-o, com Lili a assistir, impotente, na cena mais dilacerante do filme. Depois de breves cenas iniciais de conflito com o pai e de testemunho da amizade e do respeito entre Lili e Hagen, e a partir do abandono, acompanhamos tanto os esforços de Lili para reencontrar Hagen como as “aventuras” (desafortunadas) do próprio cão pelas ruas da cidade.
É a partir daqui que o filme começa a falhar. Já no início, a acompanhar o intrigante título, surge uma epígrafe de Rilke — “Tudo o que é terrível merece o nosso amor” — que baralha os dados, e essa confusão cresce à medida que o filme avança por caminhos curtos, incompletos, ou, por vezes, injustificados. Depois de ser abandonado, Hagen encontra diversas personagens, vilões caricaturais (que, à partida, funcionam na fábula), dos quais arranja forma de se escapar, inserido, por vezes, numa imensa colónia de outros cães rafeiros na mesma situação, reunida nuns arrabaldes da cidade. Encontrará, por exemplo, um homem que o prepara para lutar com outros cães, e, mais tarde, passará pelo cativeiro de um canil, de onde escapa para liderar a rebelião, qual Espártaco, cheia de sangue derramado por ambos os lados. Percebe-se a vingança e cumpre-se a alegoria, mas talvez não se aplauda a violência e a insistência em separar cães e humanos em lados opostos. Talvez um epílogo convincente resolvesse alguma coisa, mas o final, algo aberto, não traz nenhuma solução, mesmo que traga algum alento.
Admito que eu não seja a pessoa indicada para falar sobre este filme. Algumas das cenas são-me quase insuportáveis (e nem sequer me refiro às cenas com os cadáveres das vacas, no matadouro), e a violência mostrada no filme, mesmo simulada (obviamente), causa-me uma repulsa que, admito, pode ter contaminado todo o filme. A realização é muito eficaz, com um uso regrado da câmara subjectiva que só contribui para a empatia, tal como o som, usado quer para aumentar o realismo como para cobrir aquilo que acontece, misericordiosamente, fora do ecrã (embora soe um pouco a falso na cena da luta entre cães — aparentemente, os gemidos, uivos e rosnadelas, bastante realistas, foram gravados por vozes humanas!). Só que é essa eficácia, precisamente, que torna tudo tão doloroso. Dei por mim a pensar: “Não preciso de ver isto. Não queria ver isto”. Assim como não preciso de ver fotografias de animais estropiados, por exemplo, partilhadas nas redes sociais com a melhor das intenções, claro, mas também com aquilo que só pode ser masoquismo. A própria ideia de mostrar uma frieza e um calculismo inaudito nos cães, ainda que possa servir a fábula, é levá-la um pouco longe demais, na minha opinião. Talvez seja até contra produtivo, podendo dar a certas (in)sensibilidades motivos a favor do status quo opressivo.
Mesmo assim, tento ser justo. Deus Branco é interessante e é “um filme do caraças”. Consegue ser empolgante e emocionante, embora de uma forma óbvia, notando-se o esforço (que não é muito, dado o tema). Objectivamente, falha também nos tais caminhos que ficam curtos e inconsequentes, noutras camadas que se ficam pela rama, como a da relação pai-filha e, até, a de uma incipiente história de amor adolescente. Os diálogos e a pouca dimensão das personagens secundárias não ajudam, de qualquer forma, apesar do esforço dos actores.
O tom do final é belo e apaziguador, mesmo sem solução, e, em última análise, revela o que mais interessa em Deus Branco — a força da metáfora, o protagonismo canino, que se saúda, e a beleza com que certas cenas são filmadas. Nesse aspecto o filme é muito bem-sucedido, com uma rara intencionalidade e, ao mesmo tempo, naturalidade nos cães protagonistas (qual Lassie, qual quê!). Para a produção de Deus Branco foram precisos quase 300 cães, o que dá logo ideia da dimensão das cenas. No fim da rodagem, a produção organizou uma campanha e todos os cães foram adoptados. Nem que seja só por isso, já valeu a pena.
Emanuel Madalena
TRAILER