O início de Respira insere-o logo num território muito confortável e reconhecível a um certo “tom” do cinema francês: o ambiente suburbano e o contexto escolar. Seguimos Charlie (Joséphine Japy) pela sua rotina entre a escola, onde Charlie encontra o seu espaço, e a casa, onde a mãe lida com o afastamento do marido (e a própria Charlie, claro, com o do pai). Esta rotina, já de si frágil, leva um abanão com a chegada de uma nova aluna, Sarah (Lou de Laâge), mais desassombrada e experiente que Charlie. (Se fosse numa aldeia portuguesa, em Agosto, Sarah seria “a prima da França”, sofisticada e misteriosa. Na França têm de ter outro nome, como a salada russa na Rússia… Mas adiante.)
Vai surgindo entre elas uma amizade intensa, muito íntima, desequilibrada pelo fascínio que Charlie tem por Sarah. A ligação cresce rapidamente, e ainda mais se desenvolve numas férias passadas com a tia e a mãe de Charlie, entre os chalés, na margem de um sossegado lago, enquanto ao mesmo tempo começa a ser posta à prova. Uma relação como esta, cúmplice, algo sensual, quase amorosa (não acedemos à mente de Charlie, por isso não podemos dizer mais), trará também um outro lado, quando ela percebe que nem tudo é um mar de rosas e que nem a amiga nem a sua amizade são assim tão perfeitas. É assim que o filme vai mudando de tom e descola, entre as férias assombradas por dúvidas e o regresso à escola, assombrado, também, mas por certezas – a certeza de que, afinal, Sarah é calculista e manipuladora, que não é bem quem mostrava ser. A vida de Charlie começa a ficar negra, a ser feita negra por Sarah, que também vive asfixiada por uma vida difícil.
Tão relevante para a agenda mediática destes dias, infelizmente, este filme é uma boa ilustração do bullying psicológico que acontece na escola, e de como as vítimas surgem de uma forma silenciosa, no próprio círculo de amigos. Eventualmente, nada é o que parece nestes personagens, e a própria narrativa tenta ser honesta com os dois lados, fazendo com que nem sequer haja necessidade de instituir dois lados. De vítima, Charlie passará a agressora, para se defender, mas não me alongo em pormenores (de qualquer forma, je suis Charlie!). Em último caso, assistimos ao esforço que faz para crescer e aprender a ter controlo sobre a sua vida, e isso leva a um final um pouco estridente e definitivo demais, mas ainda assim apropriado ao crescendo do filme, e aos high stakes que a história cria (por favor, digam-me um bom equivalente em português para high stakes).
Respira é um pequeno filme em âmbito, o que faz com que não se atire para fora de pé, e por isso é grande em foco e inteligência, na forma como trabalha o material, com a preciosa ajuda da impecável interpretação das duas jovens actrizes. O argumento é escrito a partir de um romance de Anne-Sophie Brasme (aparentemente bem sucedido), por Julien Lambroschini e Mélanie Laurent, a própria realizadora, conhecida mais como actriz – foi a Shosanna de Sacanas Sem Lei, por exemplo, e Mary, a namorada de Adam, o historiador d’O Homem Duplicado. Este filme é a segunda longa-metragem de Mélanie Laurent, realizado com eficácia e subtileza q.b., sempre em nome das personagens, da história e do ambiente.
O cinema francês não pára de encontrar novos protagonistas, gente que sabe sempre o que faz, mesmo em filmes mais pequenos, como Respira, sobre estas questões tão próximas, suburbanas e escolares, mas em último caso universais, necessárias, trabalhadas com uma profundidade psicológica e uma sensibilidade bastante airosa, bem oxigenada, nada asfixiante, com espaço para respirar (ao contrário desta longa frase).
Emanuel Madalena