João Jorri Silva e João Rui são as duas caras de a Jigsaw, projecto musical existente desde 2 de Dezembro de 1999. A formação já teve outros elementos, mas chegado o último disco, No True Magic, em 2014, ficaram os dois para ao vivo terem uma banda inteira a acompanhá-los, os The Great Moonshiners. Um percurso com mais de 15 anos foi, num fim de manhã solarengo, revisitado e explorado, abordando não só o último trabalho como também o próprio início e um balanço do que tem sido a vida da banda tanto em Portugal como no estrangeiro.
Jorri começa por nos explicar como é que vem a conhecer o João Rui: «Eu nasci em Coimbra, mas sou de Alcobaça e em 97 já tinha algumas bandas por lá. Na altura de ir para a faculdade fui o único a ir para Coimbra, os restantes vieram para Lisboa, e no início ainda se ia todos os fins-de-semana a casa e continuava-se a ensaiar, mas depois cada um começou a seguir o seu caminho. Por coincidência, no segundo ano que eu estava a estudar em Coimbra, o Filipe Castilho, que foi o nosso primeiro baterista na formação inicial, veio estudar para o meu curso e um amigo comum disse que tinha um amigo que andava à procura de um baixista. Sim, porque eu sou baixista… (risos) Por coincidência, eles andavam à procura de um baixista e eu à procura de uma banda. Lá se combinou um encontro para nos conhecermos. A primeira vez que fomos apresentados um ao outro pelo Filipe foi num concerto dos Therapy na Queima das Fitas de Coimbra, ao pé de uma cena onde se saltava de trampolim e as pessoas ficavam de costas. Não sei quem é que patrocinava aquilo, mas vestias um fato de velcros, saltavas e ficavas cravado na parede. (risos) [“Nós não fazíamos parte disso!”, diz o João Rui] Foi aí que fomos apresentados um ao outro e depois o primeiro ensaio oficial foi dia 2 de Dezembro de ’99. Já fez 15 anos… Entretanto o Filipe saiu, o Gonçalo que na altura era o guitarrista também saiu e nós os dois continuámos desde essa altura.»
O início foi caracterizado por começarem logo a produzir originais e também é raro encontrar uma banda que, dadas as transformações na formação, não mude de nome ao longo do tempo: «Muitas bandas acabam por fazer quando há tantas alterações, mas como nós os dois somos as pedras angulares dos a Jigsaw, nunca mudámos. O primeiro EP sai em 2004, mas o primeiro álbum é realmente onde começa o legado, a vida das bandas ou da parte visível ao público… Isso aconteceu em 2007. Para nós acaba por ser quase como se fôssemos uma entidade, uma pessoa que não mudou o nome… Não era o Tozé quando começou a gatinhar e depois passou a chamar-se António Maria quando começou a andar (risos). Simplesmente nunca renegamos esse nome e mantemos até agora.»
Durante alguns anos, a Jigsaw era conhecido como um trio, em que a presença feminina da Susana acabou por se destacar. Eles contaram-nos um pouco sobre esses tempos e como passaram da guitarra acústica e do baixo para 27 instrumentos num só disco: «Nós quando gravámos o primeiro álbum estava eu, o Jorri e o Augusto Cardoso. A Susana veio tocar duas canções, no Letters From the Boatman, como convidada, mas quando começámos a preparar o álbum para colocá-lo na estrada, a preparar as nossas tournés, ela entrou definitivamente para a banda. Foi com ela que compusemos o Like the Wolf, o nosso segundo álbum, e foi nessa altura também que começámos a tocar uma enormidade de instrumentos, até porque na altura do primeiro álbum eu tocava a acústica e cantava e o Jorri tocava baixo. No segundo álbum, alargamos isto bastante e entre nós os dois e a Susana, acabámos por tocar 27 instrumentos no álbum. Isto fruto de que no Letters tivemos 16 convidados e nós, quando começámos a colocar as músicas ao vivo, pensámos “Isto vai ser um grande problema só tocar a acústica e se ele só tocar baixo!”. Então o João começou a expandir-se para a bateria e depois mais tarde para o piano, já na altura do Drunken Sailors, e agora é difícil arrancá-lo de muitos instrumentos. Eu fico sempre preocupado quando ele vê instrumentos novos, já sei que eventualmente vão encontrar o seu caminho até ao álbum. (risos) Mas essas entradas são frutos de decisões bastante pensadas e se a canção, de facto, as pede ou não. Foram seis anos e embora não tenha composto o Letters From the Boatman connosco, pegou nele logo desde o início da promoção e depois acompanhou os outros álbuns todos, para além de que ajudou na criação da nossa identidade enquanto banda, do nosso conhecimento musical, tudo. Foi uma viagem que nós fizemos os três e isso teve um impacto tremendo naquilo que somos hoje.»
Tendo a Susana feito parte dessa identidade e toque feminino, dado que o No True Magic o próprio artwork reforça o duo, será que já houve alguma manifestação, por parte dos fãs, no sentido de sentirem a falta dessa presença? «Por acaso, não, não temos sentido. Isso também porque foi um processo. Há dois anos que a Susana não está connosco, portanto, tem-se vindo a diluir um pouco essa imagem e nós os dois vamos estar sempre presentes. Mas tal como nos outros discos, também temos presenças femininas. A Susana volta a tocar em duas canções porque nós convidámos. A maneira mais fácil e comum que as pessoas têm de contacto connosco é ao vivo. No álbum, agora no artwork, claro que nós quisemos vincar que agora só estamos os dois, mas ao vivo as pessoas têm contacto connosco e, embora a Susana tenha saído, continuamos a ter, por coincidência, uma rapariga que continua a tocar violino ao vivo. Essa imagem feminina continua a existir, claro que não é a Susana, agora é a Maria Corte, mas isso nunca deixou de existir. Em relação ao artwork, os outros dois álbuns tinham sido com ilustrações e neste quisemos colocar uma fotografia em que nós tínhamos que aparecer. Porque ainda acontecia, muitas vezes, quando aparecíamos só os dois, já nesta fase e mesmo na fase final do Drunken Sailors em que a Susana já não estava connosco “Então? A rapariga não vem? A Susana não está?” e nós “Ela já não está nos a Jigsaw.” Isso foi mesmo para marcar isso. E a presença feminina faz parte do nosso trabalho e agora vincamos ainda mais isso porque antigamente nós costumávamos estar nós os dois e tínhamos connosco o Guilherme Pimenta e a Maria Corte a acompanhar-nos ao vivo, mas agora nós criámos mesmo uma banda suporte que tem uma identidade, tem um nome, que são os The Great Moonshiners Band, na qual temos três raparigas neste momento, Tracy Vandal na voz, Paula Nozzari nas precursões, a Maria Corte na harpa celta, harmónio e violino, também temos o Guilherme Pimenta na bateria, Pedro Serra no contrabaixo e o grande e gigantesco Vítor Torpedo na guitarra eléctrica.»
A conceptualidade tem sido uma constante nos discos de a Jigsaw e eles fizeram uma pequena tour pelos seus trabalhos, focando-se agora na escolha para o No True Magic, que aborda a morte: «Nós na altura que estávamos a compor o Drunken Sailors & Happy Pirates, fizemos um distanciamento em relação ao Like the Wolf. O Like the Wolf falava um pouco da perda da inocência, da perda dessa ilusão do conhecimento, que há falhas nas nossas raízes e que é nas nossas falhas que há a construção de um nós enquanto pessoas. Quando começámos a compor o Drunken Sailors & Happy Pirates, tínhamos decidido “Vamos escrever o nosso álbum mais negro de sempre”. Decidimos falar sobre a construção da identidade – do que é que faz nós sermos o que somos, do como é que chegámos a ser aquilo o que somos. Uma vez terminado isso, nós começámos a pensar “O que é que nós vamos fazer a seguir?”. E pensámos “Tem que ser ainda mais negro. Tem que ser ainda mais negro do que o Drunken Sailors & Happy Pirates.” E então decidimos “Vamos falar da morte”. Apesar que a morte esteve sempre presente em todos os álbuns, tal como no Letters From the Boatman em que falámos do Caronte, mas mais humano. Mas queríamos falar mesmo dela sem artifícios ou talvez que ela deixasse de ser um figurante e passasse a ser o personagem principal no palco do que íamos tratar a seguir. Então essa é a razão que está por trás, queríamos ir ainda mais fundo e mais negro e não haveria nada mais negro do que a própria morte.»
Claro que a pergunta seguinte foca-se no porquê destes temas. Pessoalmente, encanta-me esta dicotomia entre a energia que se passa com a música e as letras, o conceito, que se passa através delas. «Esses temas obviamente que se baseiam em nós. Não numa forma autobiográfica. Para nós a música ou a arte não é exactamente uma operação de catarse, não há essa libertação. Há a perseguição em si daquilo que achamos que será uma obra de arte e é isso que tentamos perseguir quando criamos estes mundos. Quando criamos estes conceitos e os definimos, fazêmo-lo de modo a que depois possamos estar a trabalhar para eles, para os servir, para sermos fiéis servos da nossa arte. Porque nós vamos ter que conviver com isto e tem que ser uma boa convivência. Vamos conviver com isto quando estamos a gravar, quando estamos a falar contigo agora e quando convivermos daqui a vinte anos e olharmos para trás temos de saber que houve uma razão muito forte para o que está ali, para cada palavra, cada acorde, cada nota… Para tudo que está ali naquele álbum e que se encerrou. E nós temos um distanciamento suficiente em relação àquilo que estamos a trabalhar – em relação aos álbuns, aos conceitos – estamos a falar da morte, mas tanto eu como o João somos pessoas extremamente felizes. (risos)»
Ora, e como é que se fala da morte num concerto sem que se viva um ambiente mortiço e ainda se consiga passar alguma alegria? «Há alegria entre as canções, mas durante as canções – e isso é muito importante para nós – temos de servi-las bem. Ninguém nos vai encontrar a rir, a não ser que caia alguma coisa ou o palco comece a cair (risos), a meio de uma canção, a não ser que se exija de forma cénica que haja ali um riso. Quer dizer, o resto da banda… nós não somos responsáveis por eles. Eles são os The Great Moonshiners Band, eles riem-se disso. Nós tentamos sempre, cada vez que tocamos uma das canções, entregarmo-nos em tudo, tudo, tudo. Porque nós estamos ali a reacender a chama, a recriar aquele momento em que a criámos.»
É um disco que, na minha opinião, precisa de mais do que uma audição para o conseguirmos absorver na totalidade. Partilhei esta minha perspectiva com eles e não só concordaram como reforçaram: «Já houve mais do que um jornalista que depois de ter escrito a crítica do álbum, veio falar connosco como quem diz “Epá, vou ter de escrever outra crítica. Voltei a ouvir o álbum!” e nós temos consciência disso, nós aí não colocámos nenhum facilitismo ao que fazemos e nem estamos preocupados com pensamentos do género “Será que as pessoas vão gostar de ouvir isto?” ou “Será que as rádios vão pegar nisto?” Esperamos que sim, esperamos que eles peguem e que gostem e que dêem o tempo que é preciso a estas músicas. O nosso trabalho é sempre uma coisa na qual nós abrimos o nosso coração e obviamente há sempre uma esperança que do outro lado haja alguém que também abra o coração e encontre espaço para receber estas canções. Não nos preocupamos se é radiofónico ou não, nós apenas queremos ser justos em relação à nossa arte. Não tem propriamente de retratar experiências que tivemos, não retrata que neste período entre um álbum e o outro resolvemos escrever sobre a morte porque, de repente, houve uma tragédia… Na arte, em geral, e quando se questiona um artista “Porque é que fizeste isto? O que é que tem a ver com isto?” acho que o principal é… ele tem que saber por que razão ele fez aquilo, para ele aquilo tem que fazer sentido. As outras pessoas não têm propriamente de ter o mesmo sentido do que para ele.»
Neste sentido, tal como nos livros e nos filmes, cada pessoa acaba por ter a sua própria interpretação daquilo que ouve e lê. Eles próprios já tiveram uma experiência em que uma fã lhes disse que a música deles naquele momento era a banda sonora da vida dela: «O que nós tentamos é isso. É que as pessoas abram o coração quando ouvirem as nossas músicas e que aquilo não lhes seja indiferente. Com o Drunken Sailors, uma vez num concerto em Espanha, uma rapariga antes do concerto veio falar connosco e disse que a nossa música, naquele momento, era a banda sonora da vida dela. Era o que ela ouvia e aquilo fazia-lhe sentido como momento da vida dela ou que ela viveu. Ou seja, é isso que eu acho que todos os artistas tentam… é que a obra deles toque as pessoas. Agora esse tocar não quer dizer que seja, já que o álbum é negro, de uma maneira que a pessoa fique deprimida. É que faça as pessoas sonharem, viajarem, imaginarem e pensarem… É importante que te tenha levado a algum lado. Fez-te sentir coisas que desconheces ou que não tens tanto contacto… que estão dentro de ti. Quando comentam isso em relação às nossas canções nós gostamos, quando as pessoas vêm ao concerto e no final dizem “Eu passei o vosso concerto de olhos fechados a viajar”, é perfeito.»
Virando agora um pouco para a parte da divulgação e da aceitação da imprensa, foi fascinante confirmar como muitas vezes temos bandas portuguesas que mais rapidamente são valorizadas e destacadas no estrangeiro do que em Portugal: «A primeira coisa que nos surpreendeu foi que as primeiras grandes críticas que começámos a receber do estrangeiro falavam com um grande nível de detalhe das nossas letras, o que obviamente nos deixou animados, é uma coisa que faz parte da nossa música. Cá em Portugal é muito raro falarem sobre isso. Já ouvi alguns jornalistas a dizerem “Ah, nós temos pouco espaço para o poder fazer!” – parece malandrice. Lá fora as críticas chegaram a dar algumas ideias do que para eles seriam as nossas influências, tanto em termos musicais como em termos literários e falavam, inclusive, em escritores portugueses, ou seja, teria de ser alguém que chegou ao ponto de saber ou ter algum conhecimento sobre escritores portugueses… Falaram, por exemplo, que Mário Sá-Carneiro podia ser uma influência nossa…
Nós conseguimos perceber, quando estamos a ler essas críticas acerca do álbum, se realmente a pessoa ouviu e se lhe deu o tempo necessário para ter autoridade para falar sobre ele. Com o tempo, depois de recebermos as primeiras críticas internacionais em que nem sabíamos como é que tinham chegado aos nossos discos, o mesmo trabalho de promoção que fazemos em Portugal acabámos por fazer no estrangeiro. A diferença é que em Portugal os jornalistas e todas as pessoas que trabalham na indústria musical têm sempre a tendência que não há uma urgência porque “eles” estão cá. Posso marcar uma entrevista agora, daqui a um mês ou daqui a uma semana e às vezes essa semana passa e nada, porque há sempre coisas novas a aparecer. Já chegámos a fazer uma entrevista, em Barcelona, durante um almoço, só porque o jornalista tinha uma agenda complicadíssima, mas ainda assim insistiu em falar connosco. Cá isso não acontece.»
Uma das experiências mais marcantes da banda foi precisamente em Espanha, na Rádio 3, rádio nacional espanhola: «Nós chegámos lá feitos desconhecidos, era a primeira vez que estávamos a sair de Portugal para Espanha e fomos para a rádio nacional a pensar “Por que raios estes gajos nos querem aqui?” e foi engraçadíssimo. A entrevista começa, em vez de serem eles a falar ou a fazer-nos uma pergunta ou o que seja, passa um excerto do filme SAW, que tem uma personagem chamada Jigsaw e eu “Não, não é isto”… Passa também um excerto de uma música de uma banda australiana que se chama Jigsaw e eu “Não, não é isto”… Passa um excerto da música Jigsaw You dos dEUS e nós somos “a Jigsaw” por causa dessa música e, depois só a seguir, somos “a Jigsaw de Portugal” e arranca a entrevista. Nós ficamos tipo… “Caramba, isto houve trabalho de pesquisa!”
Mas o mais estranho aqui é que nós não devíamos estar surpreendidos com isso. Porque isso, de facto, é o trabalho que tem de ser feito! Obviamente, eles encontram uma maneira muito criativa de o fazer, mas eles tinham esse conhecimento por investigar, foram saber sobre nós e, depois, a parte criativa da construção, obviamente, foi a parte divertida, mas nós não devíamos estar surpreendidos com eles terem essa informação. É supostamente isso que eles têm de fazer, porque se eles vão entrevistar uma pessoa, têm de saber, tal como tu sabes, muitas coisas sobre nós e, portanto, não devia de ser estranho alguém daquele lado saber isso. Isso agradou-nos muito e, por regra, nas entrevistas sabem sempre muito sobre nós e nós “Ah, sim senhor… Excelente trabalho!” Claro que é um espanto de profissionalismo e é isso que tem de ser feito. O estranho é não o fazerem e em Portugal não é raro passar ao lado dos jornalistas o que se passa na área musical.»
O paralelismo entre Portugal e Espanha não se fica por aqui. É verdade que é em Lisboa que se concentram grande parte dos principais meios de comunicação, tal como é verdade que nem sempre se fazem grandes deslocações só para se ir a concertos ou fazer entrevistas. A título de um exemplo específico fica o registo de uma iniciativa da Rádio 3 em Portugal que nunca teve espelho em Espanha: «Eles vão ver os concertos e deslocam-se quilómetros e quilómetros para nos fazer as entrevistas e tudo! Cá em Portugal às vezes cem quilómetros é… os jornalistas não fazem isso.
A partir do momento em que nós começámos a viajar muito, mesmo a noção de distância para nós, cem quilómetros, para nós, passou a ser uma ida ali ao lado e então isso ainda nos faz mais confusão. Acredita, acho que falamos por todos os músicos, para nós é super gratificante quando se deslocam ao sítio para estar presentes em eventos. Realmente, no fundo, é fazer o que deviam fazer que é estar no sítio quando as coisas acontecem nesse sítio. Nós, de há uns anos para cá, fazemos sempre os nossos concertos de aniversário no Salão Brazil, preparámos sempre uns concertos diferentes e nunca repetimos aquilo e tentámos sempre fazer realmente uma festa. Nós convidamos sempre a imprensa, nós sabemos que se fizéssemos isso em Lisboa, provavelmente, teríamos imprensa ou essa possibilidade era maior. Em Coimbra nós sabemos que, provavelmente, ninguém se vai deslocar por muito que convidemos, até porque mandámos algumas propostas a convidados e eles não vêm. No caso do ano passado, até parece que temos algum contrato com a Rádio 3 espanhola, nós convidámos o apresentador do programa da manhã da Rádio 3, o Ángel Carmona, e ele veio de Espanha. O Director da Route 66 só não veio de Espanha porque não podia mesmo, senão tinha vindo. Porque era a nossa festa e eles iam com todo o gosto.
Nós numa brincadeira, uma vez em Espanha, convidámos para vir fazer um programa em Portugal e eu pensava “Eu estou a mandar aqui uma coisa completamente utópica, a convidar equipa da manhã da Rádio 3 para vir fazer o programa a Portugal!” e passado uns tempos eles mandaram um e-mail “Então? Sempre vamos fazer isto?” e eu “Ok, ok…”. A direcção da rádio deu o OK. Isto está a fazer três anos, no nosso aniversário eles vieram a Portugal e fizeram o programa da manhã em directo em Portugal num estúdio da Antena 3. Fizeram um programa de quatro horas só a passar música portuguesa. Convidámos algumas bandas a tocar nos estúdios e foi feito algo inédito. Eles levaram uma injecção de música portuguesa… Depois confessaram que tinha trazido, em algumas malas, CDs e músicas deles a pensar “Se calhar não vamos conseguir fazer quatro horas de música portuguesa” e depois saíram daqui “Pá, vocês têm uma qualidade músical, de qualquer género, a qualidade é absurda.” Eles estavam comovidos a fazer o programa. Porque aquilo era uma coisa que nunca se tinha feito, era uma coisa em Portugal, estar só a passar música portuguesa para Espanha… Por exemplo, eu acho que esse programa devia ter passado em tempo real em Portugal e Espanha e não passou cá. Estava a ser feito o programa da Antena 1 e 3 e nem sequer foram verificar o que é que a equipa da Rádio 3 estava ali a fazer. A ideia era depois ser feito o contrário. O director espanhol da equipa, o Gustavo, quando foi embora, estava a chorar quando se despediu. Que tinha vivido uma experiência única. Ele trabalha na rádio há imenso tempo e isto, para ele, teve um significado diferente. Estamos a fazer história! Ainda por cima, nessa altura, o motivo foi de termos editado uma cassete também para homenagear o Nuno Ávila, que foi quem nos editou e quem nos passou primeiro em cassete. Isso para nós tem imenso significado e lá está, são daquelas coisas que não têm impacto comercial e mediático, mas para nós enche-nos o coração. Aquelas pessoas que naquele dia foram para a rádio às quatro da manhã preparar aquele programa, todas elas – aqui um agradecimento enorme ao Gonçalo Castro, que foi quem acompanhou isto tudo em Portugal e por ele tinha-se feito muitas mais coisas – ninguém se vai esquecer. Esses momentos valem muito mais do que, se calhar, se tivesse sido um momento mediático na altura e depois toda a gente estivesse ali só por esse mediatismo e não porque estava ali de coração. E isso fica.»
Para terminar, e dado que ambos fazem da música vida a tempo inteiro, perguntei-lhes que conselhos é que dariam às bandas mais jovens que agora ainda só conseguem sonhar com essa possibilidade: «Acho que o primeiro conselho é decidirem que é isto que querem fazer e só isto. É terem a certeza absoluta que gostam mesmo de fazer isto. É o conselho para a música ou para outra profissão qualquer. Quando se decide “Eu vou fazer isto e vou deixar outras coisas que faço para fazer isto”, a pessoa tem de realmente achar “É impossível eu viver sem fazer isto. Isto consome-me. Tudo o que eu faço pode ser uma mera maneira de conseguir pagar a conta da água e da luz, mas o que eu quero mesmo é fazer isto. Isto é uma coisa visceral. Não sou capaz de viver sem isto.” Isso é a primeira coisa, depois é dar esse passo complicado de cortar com o que não se quer fazer e tomar essa decisão, que é uma decisão difícil. Todas elas são difíceis, mas se a pessoa tiver a certeza que é aquilo que quer fazer, a partir daí… Não se pode pensar sobre uma questão de estabilidade financeira ou o que seja, porque a pensar nisso nenhuma arte que uma pessoa decida “Eu vou pintar…” ou “vou só fazer os filmes”, quer dizer… esquece, é impossível. Agora, a partir do momento em que é realmente isto que se quer e não é só o querer fazer para estar em casa sentado ou na cama à espera que venha a tal inspiração para escrever uma letra. É fazer isto e ser proactivo. Ir à procura de arranjar trabalho, arranjar concertos…
A partir do momento em que queremos ter disponibilidade total para sairmos de Portugal, para poder aceder aos convites que temos ou às propostas que temos… é impossível termos um emprego. Nós andamos, por exemplo, dois meses seguidos fora de Portugal a tocar na Europa. Só um grande chefe ou um grande patrão te dava dois meses de férias seguidos, não é? Cada um de nós tinha o tal hobby que era o day job que era onde trabalhava. Acho que depois do Like the Wolf todos sentimos que precisávamos de mais responsabilidade e a partir do momento que a assumes, não é só ter mais tempo. Se passares o tempo a dormir, se calhar, mais valia estares a trabalhar. Essa coisa de teres mais tempo faz com que “Ora bem, eu antigamente só tinha tempo para compor e para gravar quando chegava a casa depois das seis da tarde…. Eu agora tenho o dia todo para dedicar a isto.” A responsabilidade de cada vez mais fazer as coisas melhor, mais bem pensadas, não tão urgentes, de dares esse tempo de fazeres as coisas e dares esse tempo para voltares a ir ouvir e re-harmonizar as coisas que fazes… Nós precisávamos disso. Não passámos a editar um álbum todos anos, até começámos a editar mais pausadamente, mas por causa disso. Porque as coisas começaram a ser mais pensadas, mais trabalhadas.»
Artwork por Paula Lourenço, Miguel Duarte e Sofia Silva. Mais detalhes aqui.
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O meu muito obrigada pela paciência e pela conversa tão agradável. Assim sim, vale a pena conhecer os nossos artistas, com tudo o que têm para nos dar. Um exemplo sem igual, em Portugal.
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