[Cinema] Opinião: Timbuktu, de Abderrahmane Sissako

Como vem sendo assinalado, o fundamentalismo religioso em tempos de globalização tem características emergentes. Dentro dessas novidades, a mais relevante não é o uso das novas tecnologias para a transmissão da propaganda, mas o hiato que se sente entre aquilo que se apregoa e aquilo que, no fundo, se acredita. O conhecido filósofo esloveno Slavoj Žižek fala disto muito claramente – é como se os fundamentalistas, conhecendo o estilo de vida ocidental e sabendo-o agradável, desejando-o, sentissem uma contradição moral e uma frustração tão terrível que, por causa disso, resolvessem atacar esse mesmo estilo de vida. No caso dos jihadistas do autoproclamado “Estado Islâmico”, isto é levado ao extremo – a um extremo que o filme Timbuktu, ainda em exibição em Portugal, demonstra bem.

Filmado na Mauritânia, o filme passa-se numa simulação de Timbuktu (que fica no vizinho Mali), controlada pelos jihadistas. Numa cidade já anteriormente muçulmana e de costumes religiosos bem arreigados, a chegada do EI significa um conjunto insuportável de proibições para os seus habitantes – proíbem a música, por exemplo, ou o futebol, os apertos de mão, e até o estar-à-porta-de-casa-sem-fazer-nada. Mas o poder das armas não consegue vergar o espírito daquelas pessoas, por isso passam a jogar futebol “sem bola” (numa cena esplêndida, saliente-se), por exemplo, ou a tocar música com louvores religiosos, para confundir a censura. Numa série de cenas entre o sério e o anedótico, vemos então o quase desespero dos jihadistas, afinal homens ridículos que também sucumbem ao “vício”, na tentativa de impor uma ordem abstracta, fruto de interpretações e vontades aleatórias.

Agora, os habitantes de Timbuktu têm telemóveis e discutem futebol, mesmo que ainda vivam em tendas no meio do deserto. Esta contradição é facilmente admissível, mas simboliza o problema “moral” que os fundamentalistas religiosos encontram nos ecos de modernidade que inevitavelmente chegam aos valores dum povo que, para começar, nem sequer deixava de ser bastante religioso. A reacção do EI pretende um retrocesso a um status quo que nunca existiu, enquanto, como o filme nos põe a pensar, a maior “maldade” está na cabeça dos jihadistas, tão frustrados e retrógrados.

Claro que não é só isto que interessa no filme. Há deveras uma linha narrativa que faz disto tudo apenas a circunstância do enredo, mas até essa história reforça as ideias, demasiado prementes e actuais. Entretanto, é tudo filmado com imensa elegância e beleza por Abderrahmane Sissako, e só por isso já se torna difícil resistir ao exotismo de tais paragens. 

Diz-se que o filme humaniza os invasores, e é verdade, mas não os iliba, mostrando as atrocidades levianas que cometem. E este oxímoro das “atrocidades levianas”, a ser considerado, é de propósito. No fim de contas, a balança não se mexe, e o peso anedótico não faz sequer levantar um pouco o prato do horror, porque só serve para ilustrar que os jihadistas são monstros, mesmo sendo humanos. Monstros humanos, portanto – e aqui ninguém encontrará, certamente, qualquer paradoxo.

Emanuel Madalena

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